Há poucos jogadores que conseguem fazer a transição entre os relvados e o banco técnico, mas Jorge Costa fê-lo com sucesso com a mesma naturalidade com que marcava os adversários em campo. Depois de uma carreira de sucesso ao serviço do FC Porto, onde conquistou praticamente todos os títulos possíveis, o antigo defesa central português enveredou pela carreira de treinador e continuou a vencer títulos: primeiro no Olhanense, ao conquistar a II Liga, e depois na Roménia, onde foi campeão pelo Cluj.

Em entrevista ao SAPO Desporto, Jorge Costa partilhou um pouco da sua experiência enquanto 'homem do futebol' e falou dos desafios de ser treinador na atualidade.


SAPO Desporto - Costuma dizer-se que uma casa precisa de fundações para ser sólida, e que não se deve começar a construir a casa pelo telhado. Disse numa entrevista que, "um clube tem a sua cultura e é preciso percebê-la". Pergunto-lhe se essa questão é apenas para jogadores, ou se o treinador também tem de ter isso em conta para trabalhar?

Jorge Costa - Até acho que é mais para treinadores do que para jogadores. Isto começa sempre pelo clube. Um clube quando escolhe os jogadores e quando escolhe o treinador parte-se do princípio que o clube tem de ter uma estratégia, uma filosofia, e para além disso tem de ter um objetivo. E portanto deve rechear-se das pessoas que personifiquem essa mesma cultura do clube e da cidade. E acho que em Portugal comete-se muitas vezes o erro de ir buscar um treinador, e ir buscar um jogador que é muito bom aqui ou ali mas que depois não se enquadra na cultura do clube. Acho que jamais um treinador deve impor a sua cultura num clube porque os treinadores passam e os clubes ficam e portanto hoje é o A e tem a sua cultura, e amanhã já é o B e tem uma cultura diferente, e portanto, jamais um clube irá ter a sua identidade. Acho que a grande questão é essa. E o mesmo se pode dizer dos jogadores. As contratações de qualquer jogador para determinados clubes deve ser algo cirúrgico e deve-se perceber claramente se este jogador tem o perfil ideal que se enquadra nas ideias e na filosofia do clube.

SD - Em 2008 foi treinar o Olhanense na II Liga depois de uma primeira experiência no SC Braga. A II Liga é uma prova muito competitiva e conseguiu conquistá-la pelo Olhanense na primeira época em que a disputou. Em retrospectiva, onde esteve o segredo para construir uma temporada de sucesso?

Jorge Costa - Acima de tudo acho que me enquadrei bem no clube, o Olhanense na altura era um clube com cultura, com um ideal, um clube muito específico, com uma massa adepta extraordinária, pessoas do mar, pessoas de trabalho, e claramente eu enquadrei-me muito bem naquela cultura. Depois também tive a liberdade de poder escolher jogadores e de poder fazer o plantel sempre em sintonia com a direção. E acima de tudo construímos uma família bem unida à base do trabalho, da amizade e do compromisso. E esse foi seguramente [o segredo] com a qualidade individual e colectiva que tínhamos ao dispor. Havia muita vontade dos jogadores mais novos de singrarem, portanto acho que houve aqui uma mistura perfeita que só poderia dar no sucesso que deu.

SD - Fez 383 jogos pelo FC Porto e marcou 25 golos. Uma das suas características mais marcantes para quem o viu jogar ao vivo eram as constantes indicações que dava aos seus colegas de equipa. Grita mais agora como treinador do que quando era jogador?

Jorge Costa - Acho que a idade nos ensina a sermos mais contidos, a ser mais serenos. No entanto há coisas nos genes que jamais irão alterar. Não sou claramente aquilo que era como jogador, não passo os jogos a berrar, até porque nos jogos procuro como líder ser a pessoa mais sóbria e conseguir perceber o que se passa, mas basicamente a vontade de vencer e o transmitir os valores e os princípios estarão para sempre ligados à minha personalidade.

SD - Na sua primeira experiência de treinador trabalhou com João Vieira Pinto em final de carreira no SC Braga. Como foi trabalhar com um antigo adversário de campo?

Jorge Costa - Trabalhar com o João Vieira Pinto foi das melhores coisas que me podia ter acontecido no meu início como treinador. Claro que o João (Pinto) foi sempre um rival, claro que dentro de campo aquilo não corria muito bem, mas sempre fomos, e somos, amigos. O João é alguém pelo qual eu tenho um grande apreço e se já estava a um nível elevadíssimo, quando foi meu jogador fiquei com uma admiração enorme porque foi alguém que no meu início de carreira de treinador me ajudou muito. Estava eu no meu início de carreira como treinador e estava ele no final da sua carreira como jogador, respeitou sempre as minhas opções, ajudou-me, compreendeu, deu o que tinha e o que não tinha pelo clube, mas eu tenho a certeza que também por mim, eu do João só posso dizer maravilhas. Foi alguém que não me surpreendeu, porque já o conheço desde os meus 15 anos de idade e há aqui uma relação muito especial, foi alguém com o qual estarei agradecido eternamente.

SD - Conhece melhor do que ninguém os desafios de um líder de balneário. Como tem acompanhado o percurso do FC Porto com Nuno Espírito Santo visto que partilhou o balneário com ele enquanto jogador?

Jorge Costa - Não conhecendo o clube por dentro neste momento fico limitado em tudo aquilo que possa comentar em relação ao Nuno (Espírito Santo), porque o conheço bem, tive o privilégio de partilhar durante alguns anos o balneário com ele, tenho o privilégio de ser amigo dele, e vejo nele todas as competências de um líder. O ser líder é algo, que na minha opinião, não se aprende, nasce-se com. Ou se é ou não se é. Acho que um líder não se pode moldar em função do grupo de trabalho. Agora é muito complicado porque a nossa definição de liderança pode não ser a mais correcta para a matéria humana que temos à nossa frente, mas o Nuno é um líder nato, disso não há dúvidas.

SD - Como deve um treinador proteger os jogadores para factores externos que têm muitas vezes influência nos jogos, nomeadamente os erros de arbitragem?

Jorge Costa - A solução para isso não pode estar assente só no treinador, tem de haver uma estrutura que apoie o treinador, e depois, claro que há momentos que são de injustiça, em que é difícil a um treinador perante o grupo explicar o porquê de um empate ou de uma derrota quando esse empate ou derrota está ou esteve diretamente ligado a um erro de arbitragem. É evidente que isto não acontece sempre e que um treinador não se pode refugiar só nos erros da arbitragem. Quando um treinador começa a refugiar-se demasiado nos erros de arbitragem algo não está correcto, algo não está bem. E portanto, por vezes, começamos a desviar-nos da nossa função e a agarrar-nos muito aos erros de arbitragem, sendo que eles acontecem e sendo que muitas vezes são decisivos na atribuição do título de campeão, na atribuição de um lugar europeu ou de uma descida, ou não, de divisão. Um treinador tem de se focar mais naquilo que é o seu trabalho, perceber aquilo em que a equipa esteve melhor ou pior, o que a equipa tem de melhorar, e aquilo que tem de manter, sendo que existem os bons árbitros, os maus árbitros. Os erros existem, fazem parte do futebol, o treinador erra, o jogador erra, muitas vezes um erro do treinador decide o não ser campeão ou descer de divisão. Muitas vezes um erro de um jogador pode ser decisivo nesses momentos específicos e não nos podemos agarrar só aos árbitros que são humanos e também erram e temos de aceitar isso.

SD - Faltam quatro jornadas para o final do campeonato. O FC Porto desperdiçou várias oportunidades para estar agora na liderança do campeonato nacional. No seu tempo de jogador, seria inconcebível empatar em casa com o Vitória de Setúbal e perder a possibilidade de ir à Luz na condição de líder. Como viu esse empate do FC Porto? As arbitragens podem justificar este mau momento do FC Porto ou há outros factores?


Jorge Costa - Há vários factores. E depois acaba por falhar também um factor que é importante e que decide, porque não há campeões sem sorte. É um bocadinho vago, mas é verdade que o factor sorte pode dar o clique para seres campeão. O FC Porto no jogo com o Vitória de Setúbal acho que fez mais do que o suficiente para ganhar, e neste último jogo com o Feirense os últimos minutos sobraram para ganhar, o que é curto, na minha opinião, porque uma equipa que quer ser campeã não pode sê-lo só nos últimos minutos. Mas o factor sorte é decisivo. Agora é verdade que quando lutas para ser campeão, e falo apenas nestes últimos dois jogos mais recentes, perder quatro pontos em casa, com todo o respeito, como Vitória Setúbal e com o Feirense não te podes queixar. Podes invocar o factor sorte, podes invocar o árbitro, podes invocar o que quiseres mas só te podes queixar de ti próprio.

SD - A entrada de Soares na equipa do FC Porto obrigou a uma alteração de posição de André Silva em campo, e a uma diminuição de rendimento do número 10 portista. Como analisa a coexistência dos dois em campo e de que forma se podia tirar um melhor rendimento dos dois?


Jorge Costa - Vou falar como alguém do futebol e não como conhecedor do balneário do FC Porto. E essa é uma questão que eu próprio me coloco a mim e que me faz ter algumas leituras. O abaixamento de forma do André Silva coincidiu com a chegada do Soares. Não me parece que seja uma coincidência. O André perdeu algum protagonismo. Aqui não foi o caso de deixar de jogar, porque até começaram a jogar juntos. Se calhar a mudança de sistema não o beneficiou, porque não quero aqui levar as coisas para que o André Silva, em termos mentais, não tenha conseguido aguentar a pressão de ter alguém que possa ser mais influente. Acho que teve mesmo a ver com a mudança de sistema no qual o André não se identifica tão bem desde a chegada do Soares.

SD - E como se poderia resolver a situação?

Jorge Costa - Isso será apenas com trabalho de campo. Quando se muda em janeiro, praticamente não há tempo para treinar. O FC Porto ainda estava nas competições europeias, portanto era jogar e recuperar, jogar e recuperar, e quase que tem de ser em jogo que se criam as rotinas e isso não é fácil porque não é uma pré-época, não há os treinos diários para aí sim criando as rotinas.


SD - De acordo a sua experiência de defesa central, qual é o jogador mais difícil de marcar: André Silva ou Soares?

Jorge Costa - Não é uma resposta fácil. São dois jogadores de grande qualidade. O André Silva tem movimentos muito interessantes, nomeadamente com diagonais curtas e de ter a bola nas costas dos defesas o torna tudo mais complicado. O Soares é aquele jogador que anda sempre ali e que parece que a bola sobra sempre para ele, Está sempre ali no sítio certo o que se torna tudo mais difícil para os defesas. São jogadores distintos, que podem perfeitamente completar-se um ao outro é uma questão de rotinas e de treinos, mas ambos são dois letais. Se calhar o Soares mais matador, mas são dois jogadores muito imprevisíveis. Mas não tenho dúvidas que são complementares, repara, um chega em janeiro, estamos agora em abril, temos três meses de trabalho com jogos, não é fácil para nenhum treinador, nem para os jogadores de criarem as rotinas necessárias e de conhecimento mútuo um do outro dentro de campo. E se para o ano estiverem ambos juntos vão ser uma dupla bem mais forte.