O jurista Alexandre Miguel Mestre admitiu hoje que algumas normas do Regime Jurídico das Federações Desportivas (RJFD) possam ter «aplicação imediata», na Federação Portuguesa de Futebol (FPF), sem recurso a Assembleia-Geral (AG).

«A FPF tem duas vestes, além da veste de pessoa colectiva de direito privado, assume ainda as vestes de pessoa colectiva dotada do estatuto de utilidade pública desportiva», salientou o especialista em direito comunitário e desportivo, em declarações à Agência Lusa.

Como «a FPF é uma associação» tem de se reger «pelas normas do Código Civil aplicáveis às associações. Estas dizem que a alteração de estatutos deve passar necessariamente pela AG da associação e que, para o efeito, é necessário o voto favorável de 75 por cento do número dos associados presentes».

No entanto, por deter o estatuto de utilidade pública desportiva, Alexandre Miguel Mestre admite que «se possa sustentar, de entre outros limites ou compressões à autonomia estatutária da FPF, que certas normas do RJFD são de aplicação imediata, sem que haja necessidade que a FPF as incorpore ou transponha nos seus estatutos, logo sem que haja necessidade de se passar pela AG nem tampouco de qualquer deliberação da direcção da FPF».

«Refiro-me concretamente àquelas normas cuja adopção e os termos em que é feita não está na disponibilidade dos sócios ordinários da FPF. Por exemplo, a norma que proíbe votos por representação», referiu, admitindo uma adequação estatutária, como a que foi solicitada pela direcção aos serviços jurídicos federativos.

A 11 de Fevereiro, a direcção da FPF mandatou, com carácter de urgência, os seus serviços jurídicos para «ultrapassar os vícios jurídicos» apontados pelo Ministério Público (MP) aos artigos dos seus estatutos que não estão em conformidade com a Lei, incluindo o RJFD.

No sentido contrário, Alexandre Miguel Mestre sublinha que «já não será assim com aquelas normas que deixam uma margem de discricionariedade aos sócios ordinários da FPF, como por exemplo aquela que estabelece um número mínimo e um número máximo de delegados para a AG».

«Neste último caso, é necessário um acto intermédio por parte dos sócios da FPF, a definir os exactos números, e esse acto carece de aprovação em AG», rematou o jurista, acrescentando «trata-se de um raciocínio análogo ao da aplicabilidade directa dos regulamentos da União Europeia, ou seja a susceptibilidade de aplicação imediata sem necessidade de qualquer acto por parte do Estado e a impossibilidade de se impedir a vigência da norma no ordenamento jurídico interno».

Admitindo a discussão da «constitucionalidade de algumas normas do diploma, por eventualmente o Estado estar a interferir demasiado na autonomia estatutária de uma federação», Alexandre Miguel Mestre adverte que «essa autonomia tem de ser comprimida, tem de ter limites, a partir do momento em que essa mesma associação, voluntariamente, disse que se queria reger por um determinado estatuto».

«Esse estatuto sugere direitos e obrigações, o Estado quando transfere para as federações poderes do Estado e dinheiros públicos, entende o Estado que, com essa delegação de competências, possa interferir no movimento associativo», salientou.

Alexandre Miguel Mestre admite que, de acordo com o artigo 46 da Constituição da República Portuguesa, este poderá não ser o melhor regime jurídico: «Se o Estado entende que não deve haver uma entidade com mais de 50 por cento dos votos, bastava dizer isso no RJFD, não necessariamente dizer como têm de ser redistribuídos os votos na AG. Aí estaria salvaguardado o Estado, porque não atribuía uma carta em branco às federações, nem a intrometer-se demasiado na autonomia».

«O RJFD dá muito pouca autonomia aos sócios de escolher o que fica ou não fica em termos de estatutos», rematou.