Fruto das aulas de Metodologia do Futebol que leciono na Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade de Lisboa, não raras vezes me questionam, alunos e outros colegas professores, acerca da minha perspetiva e interpretação dos acontecimentos futebolísticos de cada fim-de-semana. A minha resposta começa, frequentemente, com: “o que viste tu do jogo?”.

Na verdade, a resposta não está no que se vê, nem nas propriedades ópticas do olho humano do observador. A visão é uma das grandes ferramentas que permitiu a evolução das espécies, incluindo a do ser humano. Mas os estudos demonstram que não é uma questão de optometria. As qualidades ópticas dos melhores treinadores e analistas não excedem a norma encontrada no comum adepto. Não é, portanto, por aqui que a seleção natural atua, separando os treinadores e analistas peritos dos demais seres humanos.

Para encontrarmos uma resposta temos que ultrapassar a fronteira da visão e entrar no domínio da observação. Só este entendimento nos permite compreender porque todos olhamos e vemos o mesmo jogo, mas dele retiramos diferentes lições. Porque são os peritos (treinadores e analistas do jogo) capazes de entender o significado das ações dos jogadores além do comum adepto? Como costuma dizer o Professor Júlio Garganta, “nós vemos com os olhos, mas observamos com conceitos”. E quem observa sem propósito padece, inevitavelmente, de “miopia conceptual”. E porque o olhar do adepto comum é norteado essencialmente pelos seus desejos e expectativas de resultado positivo, desconhecendo os processos conducentes ao mesmo, este tenderá a observar uma miscelânea de acontecimentos, sem lhe atribuir um significado processual. É, portanto, ao nível do domínio das ideias e dos conceitos do jogo que os peritos se diferenciam.

Mas gosto de distinguir dois níveis diferentes de profundidade na observação e interpretação do jogo, tendo em conta o domínio das suas ideias e conceitos:

1) o primeiro nível é aquele que qualquer observador treinado, com formação na área do Futebol, pode alcançar. Neste nível, o observador será capaz de contextualizar a observação das ações dos jogadores e da equipa no âmbito dos conceitos estruturantes caraterizadores da lógica interna da modalidade. Por exemplo, contextualizando as ações à zona do terreno e respetiva relação de forças estabelecida com a equipa adversária (tecnicamente denominado por fase do jogo), o observador treinado consegue interpretar e atribuir significado a essas ações. É possível, por exemplo, discriminar que ações tendem os jogadores e equipas a utilizar para conservar a bola, progredir e criar situações de remate à baliza. Ou observando na perspetiva da equipa que defende, como procuram os jogadores impedir cada uma destas situações. A partir daqui é possível entrar em níveis de detalhe tão aprofundados quanto a riqueza dos conceitos e ideias do jogo dominados e acessíveis ao observador.

2) o segundo nível é aquele que implica um domínio dos conceitos e ideias específicas que fazem parte da cultura organizacional própria de cada equipa. E por este nível necessitar deste tipo de conhecimento, normalmente só está ao alcance de um observador participante. Dito de outro modo, este nível de observação, mais profundo, tende a ser efetuado por observadores que fazem parte da equipa (ou seu staff), pois doutro modo dificilmente conhecerão com tanta profundidade os conceitos estruturantes da organização e dos processos particulares do jogo dessa equipa. E é aqui que o observador não participante, mesmo que treinado, pode, por vezes, não distinguir o essencial do acessório. É também por isso que a opinião dos observadores e analistas, que desconhecem os processos específicos de treino e construção das equipas, será sempre potencialmente limitada. E é também por isso que assistimos na grande maioria das vezes a conferencias de imprensa dos treinadores que pouco ou nada desvendam acerca das ideias e conceitos estruturantes da identidade da sua equipa. Em legítima defesa, diga-se, com o intuito de não oferecer tais armas aos seus adversários.

Por tudo isto tenho sempre reservas na emissão de opinião acerca do jogo, mesmo suspeitando acerca de alguns processos e conceitos de jogo de certos treinadores. Porque sem conhecimento efetivo de causa acerca desses processos, ideias e conceitos, a minha observação não passará do primeiro nível de observador, treinado, mas não participante.