Consegue imaginar uma conversa sobre futebol que não acabe em excessivos decibéis à boleia de impropérios e acusações exacerbadas, desprovidas da mínima racionalidade? Bem sei, não é fácil, mas ainda há exceções, boas exceções.
Este domingo, na Póvoa de Varzim, "cidade eclética que tão bem representa o desporto nacional", como alguém lembrou, juntou-se o útil ao agradável.
O útil, por reunir um conjunto de valiosos talentos antigos e atuais do futebol português a falar com um louvável conhecimento de causa, e o agradável, pelo facto de muitos deles partilharem entre si uma bonita e sã amizade, depois de tantos anos de rivalidade ao mais alto nível em Portugal e no estrangeiro.
Custódio Castro, antigo internacional e atual treinador do SC Braga B, Ukra, que recentemente colocou um ponto final na carreira aos 36 anos, David Simão, um dos capitães do atual plantel do Arouca, Ricardo, antigo guarda-redes, atual presidente do Varzim e padrinho do evento, ou ainda Fábio Faria, antigo jogador do Benfica que se viu forçado a abandonar a carreira por causa de um problema cardíaco: eis apenas alguns dos vários nomes presentes no Póvoa Fut 2024.
Um evento que fez por honrar o lado mais puro do futebol, por azar apenas contrariado pelo sol de verão e pela apetecível praia a poucos metros de distância, cenário idílico que inevitavelmente acabou por impedir uma plateia mais robusta, como se esperaria, dada a qualidade do painel apresentado.
Depois de alguns anos de paragem, o Póvoa Fut voltou em força e novamente com um relevante cariz solidário, já que a totalidade das receitas reverteu a favor na Associação Acreditar - Associação de Pais e Amigos de Criança com Cancro. E, acreditem, quem esteve presente pôde ouvir histórias guardadas a sete chaves, raramente escutadas em praça pública e perante os microfones da comunicação social. Um privilegio, portanto.
Falou-se da importância da saúde nos atletas de alta competição, na forma como a nova geração vê o futebol, da excessiva pressão dos pais (junto dos próprios filhos e dos treinadores) durante o processo de formação, das antigas guerras norte/sul que marcaram, durante vários anos, o ambiente da seleção portuguesa, ou ainda do notável crescimento do futebol feminino em Portugal.
Do Póvoa Fut 2024 fizeram também parte o guarda-redes Eduardo, antigo internacional português que terminou a carreira no SC Braga, Ricardo Costa, antigo jogador e atual treinador dos sub-19 do FC Porto, João Tomas, mítico avançado do Rio Ave que chegou a passar apelo Benfica e a representar a seleção nacional ou ainda Pimenta Machado, antigo presente do Vitória SC.
De Vale e Azevedo, "uma pessoa que esteve a mais no futebol português", ao Sr. Rui Costa
Por ocasião da tertúlia intitulada 'liderança no balneário', David Simão deu uma autêntica 'masterclass', desamarrado de quaisquer pressões, para falar sobre a sua carreira e da forma como vê o futebol. Algo raro, raríssimo, nos dias que correm, e com uma clarividência digna de registo.
O médio do Arouca, um dos capitães dos lobos, não escondeu a desilusão pela forma como os atletas mais jovens vivem o futebol. Não se referindo, em momento algum, ao clube que agora representa, o médio puxou a fita atrás para dar um exemplo concreto da discrepância dos tempos.
O jogador de 34 anos recordou os tempos em que chegou a ser convocado para alguns jogos da equipa principal do Benfica. "Lembro-me de ficar completamente excitado por ser convocado. Fui dos primeiros a chegar ao autocarro, mas não me sentei. Aguardei que todos se sentassem primeiro e só depois escolhi um lugar qualquer, por respeito aos mais velhos. No início tratava o presidente Rui Costa por Sr. Rui Costa. Hoje em dia as coisas são diferentes, nenhum miúdo faz isso. E se o chamarmos a atenção, ainda nos diz 'ah, mas cheguei primeiro'. É uma mentalidade diferente", disse o sub-capitão do Arouca, que se assume como um líder mais presente, disposto a dar 'algumas duras' sempre que necessário.
Aliás, recorda, como chegou a fazer a Rafa Mujica, goleador espanhol agora a caminho do Qatar: "Antes de se ir embora, agradeceu-me. Pelas vezes que o chamei a atenção. Sabia do potencial dele e valeu a pena", revelou David Simão.
Ainda sobre a influência dos capitães junto da equipa, Fernando Meira, antigo internacional português que também passou pelo Benfica, recordou a sua passagem pela Luz, numa altura em que os ordenados não chegaram a tempo. Vale e Azevedo era o presidente.
"Tinha os jogadores ansiosos pelo facto de ainda não termos recebido e como capitão fui falar com o presidente. Disse-me que a ordem de pagamento já tinha sido dada e que no dia seguinte o dinheiro estaria nas nossas contas. No dia a seguir, nada. Tinha novamente os jogadores a perguntarem-me o que se tinha passado. Dessa vez, fui de novo ao gabinete do Vale e Azevedo e disse-lhe: 'O senhor vai ao balneário falar com a equipa, agora mesmo, a explicar a situação'. Assim foi. Voltou a dizer que no dia seguinte já estariam pagos e no dia seguinte continuávamos sem receber. Mas aí já não estava envolvido, a palavra tinha sido dele", lembrou, antes de afirmar que Vale e Azevedo "esteve a mais no futebol português".
"Foram tempos difíceis, de muita instabilidade. Há que dar mérito atualmente ao Sporting, por exemplo, mas também ao SC Braga, que hoje em dia têm estruturas muito bem organizadas", elogiou, antes de identificar Figo como o melhor capitão que teve.
"O Figo foi sem dúvida o melhor capitão que tive. Eram tempos difíceis, com muita rivalidade norte/sul no balneário (na seleção). Tínhamos não só grandes jogadores, mas também grandes figuras: Jorge Costa, Fernando Couto, Vítor Baía, João Viera Pinto... até intimidavam. O Scolari foi muito importante, porque dava muita importância ao bem-estar do grupo e soube lidar com as picardias que havia entre alguns jogadores. E só isso explica a falta de títulos de uma geração de ouro", recordou o defesa que para além do Benfica representou o Estugarda, o Galatasaray, o Zenit, entre outros.
"Quando estava no FC Porto, os capitães eram o Hélton, Hulk, o Falcão e o Mariano González. Mas se o Mariano dissesse à equipa que era para virar à esquerda e os outros dissessem à direita, a equipa ia toda para a esquerda"
Ukra, personagem mítica do futebol português, sublinhou as diferentes posturas de um capitão, com a convicção de "que todas são válidas desde que cumpram o seu propósito". Conhecido pela sua postura descontraída e pelas brincadeiras no balneário, o antigo internacional explicou que a equipa (Rio Ave) sabia separar os momentos. "Quando era para brincar, todos alinhavam e respondiam aos meus desafios, mas quando falava mais a sério, todos percebiam que o momento era diferente e calavam-se para ouvir o Ukra".
O avançado, que chegou a representar o FC Porto, realçou também a importância dos sub-capitães e da relevância dos líderes mais discretos. "Quando estava no FC Porto, os capitães eram o Hélton, o Hulk, o Falcão e o Mariano González. Mas se o Mariano dissesse à equipa que era para virar à esquerda e os outros dissessem à direita, a equipa ia toda para a esquerda, garanto-vos".
"Tinha medo de adormecer e não acordar mais. Chorava todos os dias"
Um dos momentos mais marcantes foi protagonizado por Fábio Faria, que aos 22 anos se viu forçado a abandonar o futebol devido a um grave problema cardíaco. Estava no Benfica, quando um valente susto o afastaria para sempre dos relvados.
"O Luís Filipe Vieira foi impecável comigo, ajudou-me muito", começou por recordar, antes de partilhar uma conversa com o antigo presidente do Benfica.
"Cheguei a fazer todos os testes médicos, diziam que havia 20% de possibilidades de continuar a jogar, tentei tudo, mas o Luís Filipe Vieira foi muito direto: 'Já perdemos o Fehér, não queremos passar pelo mesmo", recordou Fábio Faria a sinceridade do antigo dirigente.
Um dia, a correr com o pai, desmaiou e abriu o sobrolho. "Percebi aí, definitivamente, que não poderia ser jogador de futebol. Tinha apenas o 11.º ano, não queria sair de casa, chorava todos os dias. Procurei ajuda, um psicólogo e foi isso que me trouxe até aqui", garantiu o agora empresário no ramo do Padel, um desporto que adora e no qual dá cartas. Pelo menos segundo o jornalista Ivo Costa, um dos moderadores do evento, que garante já ter sentido na pele o talento do antigo jogador entre as paredes de vidro.
A propósito da morte súbita no desporto, o médico ortopedista Hélder Reis lembrou que por ano morrem 100 jovens com idade inferior a 18 anos, vítimas de ataque cardíaco no desporto, realçando que "há formas de antecipar" uma situação mais grave e irreversível.
"O Pepe ainda vai jogar com os namorados das filhas"
A premonição foi lançada precisamente por Hélder Pereira, aquando da chegada de Pepe, ou ~"Sr. Kepler, o chefe de família", como lhe costuma chamar o reputado cirurgião ortopedista, conhecido pelas inúmeras intervenções a atletas de topo. "O Pepe ainda vai jogar com os namorados das filhas, disse eu há uns tempos quando estava prestes a ser contratado pelo FC Porto. E vejam, não me enganei muito", disse, descontraído. Foi esta a forma encontrada pelo especialista para responder à possibilidade de vermos Pepe jogar mais um ano, sem garantir que tal vá acontecer, mas dando indicação de que estará apto para o fazer, caso queira".
O especialista em joelho e tornozelo foi um dos convidados para a tertúlia sobre 'saúde em campo' e mostrou-se muito crítico do idadismo no futebol. "Rasguem os cartões de identidade", disse o médico ortopedista, contrariando a ideia pré-concebida de que o fim de carreira deve acontecer em determinada idade, assumindo-se como uma ajuda fiel a todos os atletas: "Trabalhamos com todos. Com os que jogam a final da Champions, mas também com os que precisam do dinheiro para comprar fraldas aos filhos".
Em velocidade supersónica, tudo por causa de um voo marcado às 16h em Lisboa, já passava das 12h quando Vítor Pimenta, fisioterapeuta da seleção da Guiné-Bissau, agora orientada por Luis Boa Morte, falava da importância do atleta se rodear dos profissionais certos. "Na Arábia Saudita, o Ronaldo tem consigo uma equipa composta por um nutricionista, um fisioterapeuta, um mental coach, um fisiologista, etc.", disse o conhecido especialista a propósito da longevidade de CR7 e a sua capacidade física aos 39 anos.
O pós-carreira de um futebolista: "Não me convidem para jogar uma peladinha, não tenho saudades nenhumas do treino"
Não deixa de ser curioso ouvir de um antigo jogador de futebol "não me convidem sequer para jogar uma peladinha". Foi o que disseram Nélson Lenho, agora diretor desportivo do Chaves, mas também Ricardo Nunes, guarda-redes que acaba de terminar a carreira para assegurar o cargo de presidente do Varzim, o seu clube do coração.
Sobre o momento em que se 'penduram as chuteiras', expressão tantas vezes usada pelos próprios protagonistas para ilustrar o fim de carreira, há a opinião unânime de que é fundamental para qualquer jogador perceber que o seu tempo de atividade é curto. Carlos Mariano, agora agente desportivo, assumiu sem pudores a enorme dificuldade que sentiu quando parou de jogar. Chegou a trabalhar nas telecomunicações, na restauração e formou-se mais tarde em gestão desportiva, a pulso, sem desistir, lembrando que "um futebolista não tem de ter vergonha se trabalhar noutra área. Mas o estigma existe", garante.
"É importante os mais novos perceberem que só um nicho muito pequeno de jogadores termina a carreira com a vida feita. "No meu caso, tive de lutar, muito", deixando críticas às excessivas expetativas geradas pelos mais novos, mas também pelos pais dos atletas, deslumbrados pelo mundo futebol. "O futebol é apenas uma parte da nossa vida. Depois, se não nos prepararmos, vivemos muitos difíceis. Por causa do nosso ego, pela sofreguidão de sermos aceites". Q<
Quanto aos mais novos, Custódio, antigo internacional e agora à frente da equipa B do SC Braga, defende que os jovens estão mais preparados e dispõem de melhores condições, mas que o trabalho de responsabilização deve ser devidamente incutido pelos treinadores, como tenta fazer na equipa minhota, "deixando-os ser responsáveis pelas suas decisões em vez de introduzir demasiadas regras".
Ricardo Nunes assume o cansaço no final de carreira, sobretudo no treino. Faltava-me aquela paixão, aquela adrenalina, era tudo em esforço. Uma realidade díspar em relação aos dias de jogos: "Aí sim, ainda sentia muita vontade e nunca me cansei daquele ambiente, pelo contrário." Jogar futebol durante tantos anos, por norma, leva os futebolistas a procurar outras rotinas. Nélson Lenho, por exemplo, corre "10km por dia, três vezes por semana", algo de que não abdica. Há quem prefira o Padel, uma excelente alterativa ao futebol no fim de carreira, porque "a necessidade do desporto está sempre presente, bem como a urgência da competitividade", que os acompanhará nesta nova fase das suas vidas.
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