Há uns anos, Carlos Machado pensou em deixar a carreira de treinador. Frustrado com um trabalho em Espanha onde, a uma semana de iniciar o campeonato, sofreu uma razia no plantel, o técnico português de 48 anos pensou em desistir de uma profissão que sempre o apaixonou.
Um convite inusitado levo-o a Cabo Verde ,onde está prestes a sagrar-se campeão nacional, devolvendo um título que foge desde 1989 à Académica do Mindelo. A Micá da Ilha de São Vicente irá medir forças com o Palmeira, da Ilha do Sal, numa final marcada para o dia 09 de julho, na Boavista.
Se vencer, a 'briosa' da Ilha de Cesária Évora alcançará o seu quarto título de Campeão de Cabo Verde, 33 anos depois da última conquista.
O título será a 'cereja no topo do bolo' de um trabalho que começou em 2020, interrompido a duas rondas do final por causa da pandemia de COVID-19, quando a Académia ia lançada para vencer o campeonato regional de São Vicente. Esta época, a Micá da Ilha do Porto Grande voltou a 'morrer na praia', ao ser derrotada pelo Farense na última ronda, perdendo assim o título para o Mindelense por um ponto. A redenção poderá chegar com o título maior do futebol cabo-verdiano.
Em conversa telefónica com o SAPO Desporto desde São Vicente, Carlos Machado conta-nos o seu percurso como treinador, desde as distritais, passando pelo Boavista e Mirandela.
Aos 48 anos, este treinador português com raízes cabo-verdianas (o pai é cabo-verdiano) não mostra ter pressas em voltar a Portugal. Feliz na Académica do Mindelo, o técnico deixa um repto aos demais treinadores portugueses, principalmente aos que estão a começar uma carreira: "venham para Cabo Verde. Quem conseguir treinar e ter sucesso aqui, será treinador em qualquer lado".
SAPO Desporto: Foi campeão da Segunda Divisão da Associação de Futebol do Porto com o Futebol Clube Foz em 2009/2010. Foi aí que sentiu que podia fazer carreira como treinador?
Carlos Machado: Essa foi a minha primeira experiência sénior porque já tinha treinado os sub-15 do Salgueiros. Tinha sido jogador do Foz, houve o convite numa altura em que já queria dar o salto para o futebol sénior. Aventurei-me logo com uma subida de divisão e foi por aí que comecei a sentir que podia fazer mais alguma coisa no futebol. Agarrei a oportunidade, fiz os cursos de treinador, o I, II e III níveis.
SAPO Desporto: Teve depois uma experiência no Boavista como adjunto de Mário Silva, na época 2011/12, numa temporada em que os axadrezados atravessavam um período difícil, depois de serem despromovidos vários escalões na secretaria. Como foi essa experiência, de estar num clube grande, num contexto diferente, a competir com clubes de outra dimensão?
Carlos Machado: Foi uma experiência muito boa, estamos a falar de um clube que foi campeão nacional. Apesar de esta na Segunda Divisão (terceiro escalão, na altura), tinha condições de equipa de Primeira Divisão. Foi uma experiência com muita aprendizagem, onde aprendi coisas que devo fazer e não devo fazer. Ser adjunto do Mário Silva foi muito bom, é um excelente ser humano, um excelente treinador, que dá abertura aos adjuntos.
Passamos muito mal nessa altura, a nível de pagamentos de ordenados aquilo estava um bocado em crise. Mas acabamos por resistir, o Mário era uma pessoa muito correta, não misturava certas coisas. Era um clube que nos dava condições, entrávamos às 08h da manhã e só saíamos às 08h da noite. Cresci muito como treinador.
SAPO Desporto: Depois entra o Petit no Boavista, sai juntamente com o Mário Silva e vai para adjunto do Mirandela em 2014/2015.
Carlos Machado: Em Mirandela fui contratado para ser treinador principal, mas acabei por ficar como adjunto porque na altura não tinha currículo para ser técnico principal. Aconselhei um amigo meu [Rui Amorim] que já tinha estado comigo no Boavista, e que era meu amigo desde os tempos de estudante. Foi ele como técnico principal e eu como adjunto. Foi uma experiência muito boa, apurámos para a fase final [fase de subida do Campeonato Nacional de Seniores] mas acabámos por não subir. É um clube com tradição no Norte de Portugal, que oferece boa condições para trabalhar.
SAPO Desporto: Depois vai parar à Espanha, no campeonato regional da Galiza, a treinar o Arenas...
Carlos Machado: Quando sai do Mirandela, surge a oportunidade de eu ir para Espanha, através de um grupo de investidores. Era um futebol diferente, um país diferente. Foi uma experiência fantástica, logo na primeira época subi de divisão, mas na segunda época fizeram uma razia no plantel a uma semana de começar o campeonato, passei muitas dificuldades na segunda época. Sou daqueles treinadores que quando se levanta para ir para o treino e já vai a pensar, 'eh pah, ir para o treino...', sinto que está aí a acabar o meu ciclo. Então acabei por sair.
SAPO Desporto: Deixa Espanha e acaba em Cabo Verde, a treinar a Académica do Mindelo, um clube que não ganhava nada há vários anos. Como se deu essa possibilidade?
Carlos Machado: Quando saí de Espanha estava emocionalmente muito desgastado, pensei em dar um tempo e não treinar ninguém. Entretanto o meu irmão tem muitos negócios em Cabo Vede, negócios com o vice-presidente do Verdum [clube da Ilha do Sal], da Académica [de São Vicente].
Logo na primeira abordagem, recusei, não queria mesmo. Mas depois pensei bem, disse a mim mesmo que não me fazia bem estar parado. Porque eu vou muito pelos projetos, aliciantes, que me motivam. Falei em Portugal com o vice-presidente da Académica, apresentou-me um projeto de reconstrução de uma equipa que começasse a estar nos patamares de cima do futebol cabo-verdiano. Também para dar uma ajuda num centro de estágios que o clube está a construir, acabei por aceitar e estou aqui em Cabo Verde.
SAPO Desporto: Qual foi o primeiro impacto quando chegou ao Mindelo e deparou com as condições com que ia trabalhar?
Carlos Machado: Sabia da realidade, o país tem dificuldades, os clubes ou são amadores ou semiprofissionais. O impacto foi bastante grande, vi que as condições seriam complicadas, mas como treinador, havia o desafio. Vinha com bagagem de futebol profissional, tentei ao máximo implantar, logo no primeiro ano, essa ideologia de futebol profissional. Pouco a pouco o clube foi me acompanhando, o clube cresceu, na mentalidade dos jogadores, da direção, porque querem crescer. Estamos no bom caminho.
SAPO Desporto: Em 2020 ia bem lançado para vencer o Regional de São Vicente e acabar com a hegemonia do Mindelense mas a prova foi cancelada a duas jornadas do fim, com a Académica na liderança, devido a pandemia de COVID-19. Sentiu-se frustrado com a decisão e de não poder festejar o título?
Carlos Machado: Foi muito complicado aceitar, até porque, na altura em que interromperam o campeonato, não havia nenhum caso em São Vicente. Eles [Associação Regional] poderiam ter agendado um jogo para a meio da semana e outro ao fim de semana e terminava o campeonato. Mas a pandemia estava a assustar toda a gente, compreende-se....
Foi muito frustrante para mim porque tínhamos passado muitas dificuldades durante a época, estávamos à frente do campeonato. Fiquei mais chateado porque acho que foi uma injustiça não nos terem atribuído o título de campeão, que iríamos conquistar com mérito próprio, éramos a melhor equipa em tudo: golos marcados, golos sofridos, vitórias. Merecíamos. Mas são coisas do futebol, não podemos controlar. Foi um momento de aprendizagem do futebol cabo-verdiano e meti na cabeça que na época seguinte ia meter as fichas todas para tentar fazer igual ou melhor
SAPO Desporto: Como se deu a construção do plantel da Académica? Escolheu os jogadores ou já estavam no clube?
Carlos Machado: Acompanho o futebol cabo-verdiano há muitos anos, posso dizer que em 2013 ajudei jogadores cabo-verdianos a irem para Portugal jogarem, alguns deles que jogavam na seleção desde os tempos do Lúcio Antunes [antigo selecionador]. Quando cheguei a Académica, fiz o meu trabalho de casa. Sabia que tinha de criar um plantel novo, até porque tinha perdido muitos jogadores do primeiro ano quando cheguei, que não podia ultrapassar certos limites. Fui a Santo Antão [ilha vizinha de São Vicente] contratar jogadores, explicar-lhes o projeto, a vontade que tínhamos em fazer uma época boa com presença no Nacional.
SAPO Desporto: Porquê Santo Antão?
Carlos Machado: No ano em que não houve campeonato em São Vicente, houve um minicampeonato em Santo Antão, e como ia muitas vezes à ilha, tive a oportunidade de observar muitos jogadores. Outros, já os conhecia. Mas também a minha ida se deve a limitações aqui em São Vicente, onde o Batuque FC e o Mindelense têm muito mais poder financeiro que a Académica e conseguem contratar os melhores jogadores.
SAPO Desporto: Quando ia vencer o regional esta época, que seria a consagração do projeto, numa prova dominada pela Académica do início até quase ao fim, perde o último jogo com o Farense, que seria o jogo do título e, no dia seguinte, o Mindelense vence e conquista o campeonato com mais um ponto que a Académica. Como foi lidar com essa frustração?
Carlos Machado: Tinha feito um plantel um pouco extenso em número e não em qualidade. Em janeiro, altura em que todos os treinadores tentam reajustar os planteis, a direção não me deu possibilidade de reforçar o plantel, dadas as dificuldades da Académica. Inclusive, dos quatro primeiros, fui o único que não tive reforços e até perdi jogadores que acabaram por sair.
Fiquei com um plantel reduzido, e nessa última jornada em que tinha 14 jogadores preparados para disputar o título, perdi quatro deles antes do último jogo, um em casa sector: o guarda-redes Piduka, o lateral esquerdo Lela, jogador importantíssimo na nossa dinâmica, o Mumutcha, que é um jogador muito experiente, e o Gogol [avançado]. Tive de adaptar jogadores, a primeira parte até correu bem, com algumas oportunidades falhadas, há um penálti a nosso favor que não é marcado e que podia dar outro rumo ao jogo. Depois na segunda parte a equipa começou a ficar ansiosa, a perder muitas bolas, e, do nada, o Farense faz um golo.
Foi uma aprendizagem para nós. E entramos no Nacional conscientes que podíamos fazer coisas boas, que tínhamos de mentalizar que nas fases importantes não podíamos perder a cabeça. Agarramo-nos ao Nacional como uma oportunidade para dar a volta ao que nos tinha acontecido no Regional.
SAPO Desporto: Nas meias-finais do Nacional a Académica esteve a perder por 0-2 em casa com o Rosariense até perto dos minutos finais, acaba por empatar e depois vai a Santo Antão golear por 4-0 mesmo a jogar com menos um durante imenso tempo.
Carlos Machado: Dominamos o jogo completamente em São Vicente, o Rosariense marca em alturas importantes do jogo, a terminar a primeira parte e a começar a segunda sem praticamente ter feito nada para isso. Disse aos jogadores que não íamos deitar a toalha ao chão, mexi na equipa, mudei o sistema, a equipa adaptou-se bem as mudanças, empurrou o Rosariense para perto da sua área, a qualidade apareceu e acabamos por ser felizes. Marcar dois golos em cinco minutos numa meia-final tem de haver alguma felicidade.
Disse no final dos jogadores que sabia o que o tínhamos, que podíamos vencer em Santo Antão, estava descansado em relação a isso. Da mesma forma que eles nos marcaram dois golos, também podíamos fazer o mesmo em casa deles, mas, vou ser sincero, nunca pensei que seriam 4-0. Acabou por ser um jogo bem mais fácil do que estava à espera
SAPO Desporto: E agora a final contra o Palmeira, do Sal. A Académica do Mindelo não é campeão de Cabo Verde desde 1989, soma quatro títulos nacionais. Sente esse peso de colocar a Micá de São Vicente na elite do futebol cabo-verdiano?
Carlos Machado: Quem está no futebol tem de saber lidar com estas pressões. A mim agradam-me muito, são pressões de uma equipa que está numa final, tem mérito de lá estar, tem obrigação de tentar vencer, contra uma grande equipa, treinada por um amigo de infância. Uma final é 50-50, não há favorito, os melhores estão na final. É uma equipa equilibrada, experiente, com jogadores que já foram campeões nacionais, com individualidades muito fortes. Mas preocupa-me mais o que podemos fazer do que propriamente o adversário, porque se estivermos ao nível que temos estado, ficaremos mais perto de vencer o campeonato. Eles sofrem poucos golos, mas nós também marcamos muitos: em oito jogos fizermos 18 golos.
SAPO Desporto: E depois do Nacional de Cabo Verde, como será o futuro? Tem em mente um regresso a Portugal?
Carlos Machado: Em Portugal tenho sempre portas abertas. No último ano fui de férias e recebi várias propostas para ficar, mas tinha o compromisso com a Académica. Não é nada assinado, mas é a minha palavra e para o ano está apalavrado continuar na Académica. Tenho ambição de ser campeão de Cabo Verde, estou lá perto.
SAPO Desporto: Há algum jogador na Académica com capacidade para singrar em Portugal, numa Segunda Liga ou Liga 3?
Carlos Machado: O jogador cabo-verdiano terá sempre alguma dificuldade de adaptação ao chegar a Portugal, dada a intensidade, a parte tática, principalmente. Dos que trabalham comigo, há alguns com potencial, e nesse aspeto tenho tentado mudar-lhes a mentalidade, introduzindo a forma de pensar europeu, trabalhando com eles também a parte táctica caso um dia tenham a oportunidade de ir para fora.
O jogador cabo-verdiano é física e tecnicamente muito forte. Se os da Académica conseguirem complementar com o que tenho trabalhado com eles na parte tática, estão melhores preparados do que outros jogadores cá de Cabo Verde para se adaptarem. Mas já se sabe que a transição não será fácil, principalmente se o jogador for para uma Segunda Liga. Mas terão sempre oportunidades num clube da Liga 3 ou do Campeonato Nacional Seniores. Basta ver o caso do Papalelé que foi considerado o melhor jogador de Cabo Verde e andou a saltar de clube em clube até acabar na Liga 3. É preciso tempo para se adaptarem. Portugal é uma porta que está mais aberta para o jogador cabo-verdiano, mas têm potencial para jogar também noutras ligas.
Agora deixo algo, em jeito de desabafo, uma ideia minha: seria também importante se o jogador cabo-verdiano que joga em Cabo Verde fosse sendo integrado nas convocatórias da Seleção cabo-verdiana, para os jovens sentirem que podem chegar ao profissional.
É preciso também mudar a mentalidade em Cabo Verde. Há jogadores que olham para o futebol como algo que pode dar para ganhar algum dinheirinho para depois ser gasto numa vida social, muitas vezes desaconselhável para quem joga futebol. Quem for forte mentalmente, focado num objetivo de ser profissional... conseguirá, porque o resto existe.
SAPO Desporto: Recomendaria uma aventura em Cabo Verde a treinadores portugueses, principalmente os mais novos que procuram uma primeira oportunidade? Sabemos que o mercado de treinadores em Portugal está muito saturado, há muitos técnicos para poucas equipas?
Carlos Machado: Sim, falo muitos treinadores colegas meus em Portugal. Digo-lhes sempre, com os problemas que encontramos aqui, quem conseguir treinar e ter sucesso em Cabo Verde, conseguirá ser treinador em qualquer lado.
Claro que têm de vir cientes do que vão encontrar, perceber que será importante para a carreira deles passar algumas dificuldades, porque quando uma pessoa tem tudo, é muito 'mais fácil' treinar, a pessoa não tem de estar preocupada com o material de treino, com a vida social que os jogadores levam fora do campo, com o amadorismo que ainda há a nível do dirigismo nos clubes, algumas decisões tomadas por quem toma conta do futebol em Cabo Verde.
Mas aconselho virem treinar em Cabo Verde: é gratificante estar aqui, é duro, mas para quem gosta de um projeto desafiante…. Falo de um treinador que esteja a começar e queira dar os primeiros passos, sem desejar uma ascensão muito rápida na carreira.
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