Há pouco mais de seis meses, depois de rescindir contrato com o Manchester United, Cristiano Ronaldo surpreendia o mundo e assinava contrato com o Al Nasr. Os valores envolvidos eram verdadeiramente astronómicos (cerca de 200 milhões de euros por temporada), mas CR7 garantiu que não era só por isso que rumava aquelas paragens.

Afirmou, na altura, que a Liga Saudita se iria tornar numa competição de elite "nos próximos anos". Muitos desvalorizaram esta afirmação, considerando aquelas palavras como meras palavras de circunstância, que ficavam bem naquele momento. Mas as últimas semanas parecem dar razão a CR7.

Fruto da presença do internacional português, mas não só, a Liga saudita começou a ganhar uma visibilidade que até aqui não tinha. E, de repente, volvidos poucos meses, muitos jogadores de renome - alguns em fase final de carreira, mas outros nem tanto - têm vindo a ser apontado a uma mudança para a Arábia Saudita.

Mais estrelas do que nunca atraídas pelos 'petrodólares'...e até de Bernardo Silva se fala

O segundo grande nome a confirmar a mudança para aquele país do Médio Oriente foi Karim Benzema, apresentado como reforço do Al Ittihad, onde será treinado pelo português Nuno Espírito Santo. Uma mudança que, admitiu o próprio, foi também motivada pela anterior ida de Cristiano Ronaldo para o Al Nassr.

"É um novo desafio para mim, uma nova vida… Mal posso esperar por começar a treinar-me e a jogar. Vou fazer o máximo para ganhar títulos, marcar golos e mostrar o meu talento. A Liga saudita é uma boa liga e está a atrair muitos bons jogadores. O Cristiano Ronaldo já cá está, um amigo que está a mostrar que a Arábia Saudita está a começar a subir o nível", disse o gaulês, de 35 anos.

Depois de Benzema, o Al-Ittihad investiu noutra estrela gaulesa do futebol europeu. N'Golo Kanté, campeão do mundo pela França em 2018, de 32 anos, deixou o Chelsea após sete temporadas. Segundo a generalidade da imprensa inglesa, irá ganhar cerca de 100 milhões de euros num contrato de dois anos.

E, praticamente confirmada (só faltará a oficialização), está a - talvez ainda mais surpreendente - ida de Rúben Neves para o Al Hilal, naquela que será uma transferência bem diferente das anteriores e que mostra que já não são só jogadores e fase final de carreira a rumarem para aquelas paragens.

Em primeiro lugar, Rúben Neves só tem 26 anos. E, em segundo lugar, não está em final de contrato. O Al Hilal, diz-se, irá pagar 55 milhões de euros ao Wolverhampton pelo médio defensivo internacional português, que estava ligado ao clube inglês por mais uma época, mas que assim se prepara para dar seguimento à carreira na Arábia Saudita.

Entretanto, noutra mudança que seria tão ou mais surpreendente, também se fala que Bernardo Silva poderá seguir as pisadas do colega de seleção e trocar Inglaterra (no caso o Manchester City, onde acabou de brilhar a grande altura rumo à conquista da Liga dos Campeões) pelas arábias. Isto apesar de estar no auge das suas capacidades futebolísticas, de não estar em final de contrato e de ser altamente cobiçado por clubes como Barcelona ou Paris Saint-Germain. Alguma imprensa espanhola até já deu essa mudança como certa.

Confirmando-se ou não, a verdade é que uma fonte do próprio Governo saudita confirmou em declarações recentes à AFP, que estão a ser negociados contratos com jogadores "de classe mundial" com clubes da Arábia Saudita. O objetivo é "construir um campeonato muito forte e competitivo, elevando o nível dos clubes sauditas, afirmou a referida fonte.

Assim, com a janela de transferências aberta entre 1 de julho e 20 de setembro e com a Arábia Saudita oferece cifras milionárias, muitos nomes poderão, em breve, ser confirmados: Hakim Ziyech, Edouard Mendy, Koulibaly, Philippe Coutinho, Hakim Ziyech, Edouard Mendy, Koulibaly, Philippe Coutinho, Roberto Firmino, Thiago Silva, Sergio Ramos, Morata, Eden Hazard, Hugo Lloris, entre muitos outros.

Galeria: Confira a lista de craques que se podem mudar para a Arábia Saudita

Messi foi revés

Contudo, há sempre alguém que resiste (mais ou menos) e sempre alguém que diz não. Lionel Messi seria o grande alvo saudita para este Verão. O astro argentino, porém, optou por ir para outras paragens (um pouco) menos lucrativas. Também optou por deixar a Europa e rumar a um país onde vai ganhar mais do que ganhava por cá, mas optou por seguir para os Estados Unidos, para jogar na MLS e no Inter Miami.

Messi afirmou, depois de confirmar a ida para o Inter Miami, que havia rejeitado a oferta do Al-Hilal por motivos familiares. "Se fosse uma questão de dinheiro, teria ido para a Arábia Saudita", explicou em entrevista ao Mundo Deportivo.

Messi terá sentido que a sua esposa e os seus filhos teriam mais facilidade em adaptar-se em Miami, cidade onde reside uma vasta comunidade hispânica. Seja qual for a razão, a verdade é que terá constituído um forte revés para a Liga saudita.

Ter Ronaldo e ter também Messi na mesma competição teria sido um impulso ainda maior. Colocá-los uma vez mais frente a frente, mesmo que no ocaso das respetivas caseiras, traria uma visibilidade notável, como se viu quando o PSG visitou a Arábia Saudita para um jogo amigável com uma equipa de estrelas da Liga local, entre elas CR7.

Messi não foi o único. Também Romelu Lukaku rejeitou uma oferta da Arábia Saudita, afirmando que prefere continuar a jogar na Europa, apesar das propostas financeiramente mais vantajosas vindas do Médio Oriente.

Afinal, o que é que a Arábia tem?

Durante muitos anos, o Reino da Arábia Saudita viveu muito fechado em si, limitando ao máximo os contactos com o mundo exterior. Mas essa realidade mudou, muito por culpa do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, homem-forte de um regime autocrático, com muitos 'petrodólares', usados para dar uma cara nova ao país, tentando mostrar-se mais moderado e aberto ao resto do mundo.

E uma das formas de o fazer foi investir forte no desporto, sobretudo no futebol. O Ministério do Desporto local anunciou recentemente que o Fundo de Investimento Público adquiriu 75% do controlo dos quatro maiores clubes da Liga saudita e reservou mil milhões de dólares para atrair jogadores estrangeiros da lista dos melhores do mundo.

Tornar-se uma potência no futebol faz parte do projeto Saudi Vision 2030, lançado por Mohammed bin Salman em 2016, que ambiciona diversificar a economia do país e reduzir a sua dependência da exportação de petróleo.

Mohammed bin Salman
Mohammed bin Salman Mohammed bin Salman

O investimento no futebol é visto como uma forma de atrair turismo e afastar o estigma dos abusos dos direitos humanos num país onde a homossexualidade é crime, as mulheres são submissas aos homens por lei e há pouca liberdade de expressão. É o chamado 'Sportswashing'.

E é isso que permite aos clubes sauditas, não tendo a mesma faturação que os grandes clubes europeus, serem capazes de pagar salários muito acima dos gigantes do 'velho continente'. Contrariamente ao que sucede com a maioria dos clubes europeus, os clubes da Arábia Saudita não são propriedade de uma pessoa, empresa ou fundo de investimentos. Oficialmente, são associações desportivas que, na prática, pertencem ao próprio governo de um país cujas reservas de petróleo estão avaliadas em muitos milhares de milhões de dólares. Isto confere-lhes um poder de investimento sem igual, sendo por vezes os gastos incentivados até por rivalidades existentes dentro da família real saudita.

Os principais clubes são financiados por um membro ou clã da realeza. O Al-Nassr, de Cristiano Ronaldo, por exemplo, é financiado pelo próprio príncipe herdeiro do reino, Mohammed bin Salman. E, como não existem regras restritivas a esse nível, Bin Salman também é dono de um clube europeu, o Newcastle.

É verdade que clubes como o Paris Saint-Germain (Qatar) ou o Manchester City (Abu Dhabi, Emirados Árabes Unidos) são também praticamente pertencem de governos/estados. Mas mesmo assim não conseguem ombrear com os ordenados pagos pelos clubes sauditas em virtude do Fair Play Financeiro, que limita os investimentos desses 'mecenas' nas equipas europeias. Um 'fair play' pelo qual os clubes da Arábia Saudita não estão abrangidos, não existindo aí nenhum regulamento restritivo de gastos.

E, claro, os craques que rumam à Arábia Saudita ganham muito, mas o resto do plantel nem por isso: de acordo com o site 'Sportspayouts', o vencimento de Cristiano Ronaldo corresponde cerca de 80% da folha salarial do Al-Nassr.

O (mau) exemplo da China

Este investimento saudita na tentativa de atrair grandes estrelas encontra paralelo no que aconteceu no passado, em certa medida, nos Estados Unidos e também, sobretudo, na China.

Não foi assim há tanto tempo que a Superliga Chinesa tentou algo de muito semelhante, atraindo grandes nomes para a Ásia com contratos de grandes valores. Os alvos, tal como agora no caso saudita, começaram por ser jogadores que já estavam numa fase descendente das carreiras, mas houve algumas contratações assinaláveis de jogadores mais jovens, como Talisca (que curiosamente agora até é colega de Ronaldo no Al Nassr), Carlos Tévez, Jackson Martínez, Hulk, Witsel ou Oscar, internacional brasileiro então de apenas 25 anos, contratado ao Chelsea pelo Shanghai Port.

"O mercado chinês é um perigo para todos", alertou na altura o técnico do clube londrino, Antonio Conte. Só que a bolha depressa rebentou. Oscar ainda está China, mas a maioria das estrelas já partiram. O governo que inicialmente apoiou totalmente este plano de 'profissionalização' da Liga chinesa foi retirando gradualmente seu apoio, perante a percepção generalizada de que as estrelas estrangeiras viviam a experiência como umas espécie de férias remuneradas e prejudicavam o desenvolvimento de jogadores locais.

Resolveu então criar um imposto sobre as contratações vindas do estrangeiro, tornando uma mudança para a China muito menos atraente. Isso, aliado à crise financeira causada pela pandemia e à 'desponsarização' dos nomes dos clubes levou a que a China deixasse de ser vista como um 'El Dorado', como o parece ser agora a Arábia Saudita.

Ceferin e UEFA deixam alerta, árabes respondem

Atenta e preocupada com este desmesurado investimento saudita no futebol está a UEFA. Para Aleksander Ceferin, presidente do organismo máximo do futebol europeu, esta aposta dos árabes é tudo menos positiva, sublinhando que o investimento devia ser feito de outra forma.

"Creio que é principalmente um erro para o futebol saudita. Deviam investir em academias, deviam contratar treinadores e desenvolver os próprios jogadores. O sistema de contratar jogadores que estão a acabar as suas carreiras não é algo que desenvolva o futebol. Foi um erro similar ao chinês", lembrou.

Aleksander Ceferin. (Photo by PATRICIA DE MELO MOREIRA / AFP) créditos: AFP or licensors

Mas estas declarações de Ceferin depressa tiveram resposta por parte dos sauditas. Hafez Al-Medlej, presidente do departamento de marketing da Confederação Asiática de Futebol, veio a público responder ao presidente da UEFA.

"Esse discurso é falso. Não contratamos jogadores que estejam acabados. O Al Hilal vai contratar o Rúben Neves, que tem 26 anos e era pretendido pelo Barcelona. O Benzema chegou ao Al-Ittihad, depois de ganhar a Bola de Ouro no Real Madrid", argumentou.

"Estamos apenas no começo. Todos os jogadores transferíveis vão ser a partir de agora objetivo dos clubes sauditas. A experiência da China não tem nada a ver connosco, era puro marketing. O futebol lá não é popular. Na Arábia temos um projeto de Estado e não vai limitar-se às quatro grandes equipas, mas sim a todas, porque a paixão dos sauditas por futebol não tem limites", continuou.

"A saída das grandes estrelas da Europa será um duro golpe para a Champions, que vai perder grande parte do seu brilho", vaticinou. "Vimos como a La Liga perdeu muito com a saída de Ronaldo para a Juventus e perdeu ainda mais quando Messi foi para o Paris SG. A saída de estrelas da Europa vai afetar os contratos de patrocínio e de televisão", frisou, referindo até o nome de Bernardo Silva.

"Esperamos que chegue o Bernardo Silva, do Manchester City. Também devemos começar a trabalhar na contratação de Mohamed Salah, que tem grande popularidade no mundo árabe e na Europa. Penso que ainda tem alguns recordes para bater no Liverpool, mas espero que, se não vier agora, venha no futuro", terminou Al-Medlej.