700 milhões de euros em salário por apenas um ano de contrato, 300 milhões de euros para o PSG: esta era a pornográfica e estratosférica proposta da Arábia Saudita para levar Kyllian Mbappé para o Al Hilal no último verão. O salário de 58,3 milhões de euros por mês, 14,6 milhões de euros por semana ou 2,1 milhões de euros por dia, faria da estrela francesa o desportista mais bem pago do mundo. Mbappé disse não aos milhões e permaneceu no campeão francês.

Especial Revista do Ano: os temas que marcaram 2023 no desporto

A oferta retrata bem o poderio financeiro do Arábia Saudita, que vê no desporto uma fantástica ferramenta para lavar a sua imagem a nível internacional. Os petrodólares convenceram a FIFA a atribuir ao país do Golfo Pérsico a organização do Mundial2034, uma vitória para o 'Visão 2030', o programa de diversificação económica da Arábia Saudita, que pretende organizar, além do Mundial de futebol, os Jogos Olímpicos já na próxima década.

O país recebeu também o Campeonato do Mundo de Clubes da FIFA de 2023 e está a candidatar-se à organização da Taça Asiática de 2027.

FOTOS: Alguns craques que se mudaram para a Arábia Saudita em 2023

Cristiano Ronaldo, o primeiro

Cristiano Ronaldo abriu as portas, outros seguiram-no para o novo El Dorado do futebol Mundial. Em 2023, a Arábia Saudita intrometeu-se na ordem mundial do futebol ao contratar vários craques, seduzidas por salários astronómicos num país sem tradição no mundo do futebol. Neymar, Benzema, Sadio Mané, Mahrez, Firmino, Ruben Neves, Kanté e muitas outras estrelas também seguiram o cheiro dos petrodólares. Outros, como Bruno Fernandes, Lukaku, Salah, Mbappé, Osimhen, Bernardo Silva e Messi resistiram e permaneceram na Europa ou rumaram a outras paragens.

O futebol é a face mais visível do investimento saudita para os próximos anos. O país criou o Fundo de Investimento Público (PIF), que passou para o Estado os cinco principais clubes - Al-Ittihad, Al-Ahli, Al-Nassr e Al-Hilal -  e ainda adquiriou o Newcastle, de Inglaterra.

Top 10 Jogadores Mais Bem Pagos Arábia Saudita

Jogador Equipa Salário (milhões de euros)

1 Cristiano Ronaldo   Al-Nassr   200 ME
2 Neymar   Al-Hilal  160 ME
3 Karim Benzema   Al-Ittihad   120 ME
4 Riyad Mahrez   Al-Ahli   50 ME
5 Fabinho   Al-Ittihad   42 ME
6 Jordan Henderson   Al Ettifaq   42 ME
7 Sadio Mane  Al-Nassr   40 ME
8 Kalidou Koulibaly   Al-Hilal   30 ME
9 Marcelo Brozovic   Al-Nassr   30 ME
10 Rúben Neves   Al-Hilal   25 ME
11 N'golo Kanté   Al-Ittihad   25 ME

Na última janela de mercado de transferências, no verão, os clubes da Arábia Saudita contrataram 94 jogadores estrangeiros das principais ligas europeias, sendo que os quatro do PIF gastaram 835,1 milhões de euros em contratações, de acordo com dados do Transfermarkt. O Al-Hilal, por exemplo, foi o segundo clube do Mundo que mais investiu na última janela do mercado (gastou 353 milhões de euros).

O investimento em estrelas mundiais cresceu 19 vezes mais face a 2022/23, quando fechou o top 20 mundial, com 43,78 ME. No último verão, a Arábia Saudita quadruplicou o recorde de 189,37 ME fixado em 2018/19 e fechou a janela com 958,5 milhões de euros gastos em transferências, sendo 88% do montante gasto (841,5 milhões de euros) pelos clubes do Fundo de Investimento Público (PIF) - Al-Hilal, Al-Ahli, Al-Nassr e Al-Ittihad.

Em termos globais, só a Premier League bateu a Saudi Pro League, com os seus 2,8 mil milhões de euros investidos em 2022/23.

Além de craques, a Arábia Saudita tem atraído vários treinadores de renomes. Na 'Premier' saudita estão, igualmente, muitos treinadores estrangeiros, entre os quais os portugueses Luís Castro (Al Nassr), Jorge Jesus (Al Hilal), Pedro Emanuel (Al Khaleej), além de Steven Gerrard (Al-Ettifaq), Slaven Bilic (Al Fateh), entre outros.

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O modelo está também a ser replicado no futebol feminino da Arábia Saudita. Os oito clubes que disputam o campeonato feminino podem contratar até sete futebolistas estrangeiras, num sistema em que quatro podem jogar de início, no sentido de trazer qualidade, mas também para passarem conhecimento.

UEFA não está preocupada mas devia

A fuga de estrelas internacionais da Europa para a Arábia Saudita parece não preocupar a UEFA, como sublinhou o seu presidente, Aleksander Ceferin

"Tanto quanto sei, Mbappe e [Erling] Haaland não sonham com a Arábia Saudita. Não acredito que os melhores jogadores no auge das suas carreiras fossem para a Arábia Saudita. Quando me falam dos jogadores que foram para lá, ninguém sabe onde estão a jogar", disse o líder da UEFA, em agosto.

Onze do Al Hilal
Onze do Al Hilal Onze do Al Hilal créditos: Al Hilal

No entanto, é provável que a UEFA e a Saudi Pro League venham a estabelecer parcerias no futuro, como fez o PGA Tour, sediado nos EUA, com o circuito LIV Golf, criado pelo PIF com um custo de 2 mil milhões de dólares. O LIV Golf atraiu os melhores jogadores do PGA Tour e do do DP World Tour, sediado na Europa, com a oferta de prémios avultados.

Acusações de 'Sportswashing' não preocupam. Desporto é ferramenta de paz

Tornar-se uma potência no futebol faz parte do projeto Saudi Vision 2030, lançado pelo príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, homem-forte de um regime autocrático, que ambiciona diversificar a economia do país e reduzir a sua dependência da exportação de petróleo.

O investimento no futebol é visto como uma forma de atrair turismo e afastar o estigma dos abusos dos direitos humanos num país onde a homossexualidade é crime, as mulheres são submissas aos homens por lei e há pouca liberdade de expressão.

As 20 maiores transferências de jogadores da SPL em 2023

Nome                Idade  Clube     Valor

Neymar                     31   Al-Hilal       89M €
Malcom                     26   Al-Hilal      60M €
Otavio                        28   Al-Nassr    60M €
Rúben Neves            26   Al-Hilal      55M €
Mitrović                    28   Al-Ittihad   52M €
Fabinho                     29   Al-Ittihad  46M €
Milinković-Savić     28   Al-Hilal      40M €
Gabri Veiga              21   Al-Ahli        40M €
Riyad Mahrez          32   Al-Ahli        35M €
Sadio Mané              24   Al-Nassr     29M €
Roger Ibañez           24   Al-Ahli       29M €
Jota                           31   Al-Ittihad    28M €
Aymeric Laporte    29   Al-Nassr     27M €
Saint-Maximin       26   Al-Ahli       27M €
Seko Fofana            28   Al-Nassr     25M €
Kalidou Koulibaly  32   Al-Hilal      23M €
Luiz Felipe               26   Al-Ittihad  22M €
Bono                         32   Al-Hilal     21M €
Merih Demiral        25   Al-Ahli     19M €
Edouard Mendy     31   Al-Ahli      18M €

É o chamado 'Sportswashing', um termo que designa a prática de indivíduos, grupos, corporações, ou governos, de usar o desporto para construir uma imagem internacional positiva e desviar o foco dos abusos de direitos humanos, como acontece na Arábia Saudita.

Mas a acusação de 'sportswashing' pelo ocidente não preocupa o governo saudita.

"Se a lavagem de imagem incrementar o PIB da Arábia Saudita 1% que seja, então vou continuar a fazê-lo. Não me importa o que digam. Tenho um crescimento de 1% no PIB graças ao desporto, depois disso vou atrás do 1,5%. Podem dizer o que quiserem, vamos chegar a esses 1,5%", disse o líder do país, numa entrevista à 'Fox News'.

Os investimentos no futebol não se ficam pelas contratações de craques. Além do futebol, o país tem apostado nas modalidades, ao investir vários milhões de dólares na organização de provas de outras modalidades como o golfe, o ténis ou a Fórmula 1.

O país pretende usar o desporto também para entreter os mais jovens. Dos 32,2 milhões de habitantes do país (cerca de 42% são estrangeiras), 51% por cento tem menos de 30 anos, de acordo com o último censo. Segundo o governo saudita, mais de 80% desta população joga, frequenta ou acompanha o futebol, o desporto nacional por eleição.

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Simon Chadwick, professor de desporto e economia geopolítica na SKEMA Business School, disse à CNN que o governo da Arábia Saudita está preocupado com a perspectiva de os mais jovens da sociedade se radicalizarem ou de surgir um sentimento antigovernamental como o da primavera Árabe. Assim, o futebol poderá ajudar a manter a paz.

"O que estamos a começar a ver na Arábia Saudita neste momento é a emergência de um novo contrato social. E o contrato social está essencialmente a dar resposta às necessidades da população da Geração Z. Querem o Ronaldo? Têm-no. Querem algumas das melhores equipas de futebol do mundo? Tem-nas. Querem que o Campeonato do Mundo venha para a Arábia Saudita? É isso mesmo... Mas não nos questionem", explicou Chadwick.

A primavera Árabe foi uma onda de protestos pró-democracia que assolou o Médio Oriente e o Norte de África em 2011. Quatro líderes árabes na Líbia, Iémen, Egipto e Tunísia foram depostos. Houve também revoltas falhadas no Bahrein e no leste da Arábia Saudita, seguidas de repressões que duraram anos, como acontece na Líbia, com uma guerra civil contínua há vários anos.