Calma, a declaração de Acácio Santos tem uma explicação: jogar a 360 graus. Mas já lá vamos.
Enquanto Acácio Santos espera que o telefone toca com o projeto certo para voltar a treinar, o antigo treinador do União de Santarém e adjunto de José Peseiro na Seleção da Nigéria vai degustando o melhor que o futebol oferece. Com os olhos postos no presente e a mente a projetar o futuro, o técnico de 44 anos foi assaltado com uma notícia que decerto não desejava ter, mas que era uma inevitabilidade: o adeus de Don Andrés Iniesta aos relvados, aos 40 anos.
Foram 22 anos de magia pura, de bola colada naqueles pés, rotação e intensidade nos 1,71 metros. Podia não correr mais que os outros, mas corria melhor. Passava melhor. Jogava melhor. Muito mesmo. Jogava tanto que o Real Madrid, arquirrival do Barcelona, assinalou a sua despedida num comunicado regado de elogios e reconhecimento da grandeza do miúdo de Fuentealbilla, Albacete. Iniesta merece-os todos.
Iniesta: a expressão máxima de La Masia
Dos técnicos portugueses, Acácio Santos terá sido quem mais viu de perto, em contexto de treino, o mago 'Made in La Masia'.
"O jogador que mais se destacou na expressão do princípio metodológico [do Barcelona] foi Andrés Iniesta. Não foi Messi, não foi Xavi... o grande produto da escola do Barcelona foi, para mim, Iniesta", atira, de pronto, o técnico de 44 anos, em conversa telefónica com o SAPO Desporto.
Mas porque? A explicação é longa mas Acácio Santos vai detalhar tudo.
"O futebol do Barcelona baseia-se muito na percepção do espaço, [...] na tomada de decisão contextual e as relações que se criam dentro deste espaço. [...] Ou seja, a relação entre a interpretação do cérebro a nível sensorial de todos os estímulos, tinha uma correspondência muito grande em toda a sua expressão motora [em Iniesta]. O jogador torna-se completo quando a sua resposta motora, aquilo que nós vemos, é bem sucedida na análise e interpretação do contexto. E o Iniesta fazia isso de forma tão natural, tão fluída e tão rápida...", recorda Acácio.
Nos seus muitos anos de futebol, tanto como jogador como também como técnico, o treinador natural de Beja garante que Iniesta "foi o jogador mais evoluído cognitivamente que alguma vez" viu jogar.
"Melhor até que Zidane nesse aspeto. E mostrava isso em tudo o que fazia, em todas as unidades de treino que eu vi", detalha.
Acácio Santos teve o privilégio de ver de perto a gemelidade de Iniesta e não só, pela amizade com Francisco 'Paco' Seirul-lo, professor no INEF(Facultad de Ciencias de la Actividad Física y del Deporte) de Barcelona, onde fez um mestrado. A "amizade e respeito entre professor/aluno" valeu-lhe um convite para acompanhar toda a estrutura do Barcelona, desde os benjamins até a equipa principal, onde trabalha Seirul-lo (preparador físico entre 1994 e 2014 e Supervisor entre 2014 até a atualidade).
Messi não consegue ter a tomada de decisão e a capacidade de perceção espacial que o Iniesta tem ou tinha, que é total.
Os três estágios completos (45 dias) em La Masia foram suficientes para Iniesta conquistar Acácio Santos: "Era sempre o jogador que estava disponível para treinar, para jogar e tudo aquilo fluía.... com 30 anos parecia que tinha 12 anos. Com 40 anos, parecia que tinha 12, tal era a alegria que metia em cada exercício. E essa fluidez emocional permitem-lhe ter este envolvimento muito simples no jogo mas ao mesmo tempo muito complexo.
Iniesta melhor que Messi? Na tomada de decisão, sim
Aí, pode ver de perto, a expressão máxima de um produto 'Made in La Masia'. Garante Acácio que não havia outro como ele.
"Todas as decisões dele, eram numa plenitude de 360 graus. E tens poucos jogadores no Mundo que podes dizer, 'este jogador joga a 360 graus'. Nem o Messi. Não há jogador mais completo no Mundo como o Iniesta foi", garante, peremptoriamente.
"Mesmo com cinco, seis jogadores à volta dele, arranjava uma solução. Na tomada de decisão estava sempre fracções de segundo à frente de qualquer jogador. Temos no futebol moderno mas também no passado jogadores com essas habilidades técnicas, mas não temos jogadores com capacidade racional, de interação com os colegas, levando-os a serem mais completos e a terem essa capacidade. Os jogadores sabiam que quando o Iniesta tinha a bola, uma solução positiva ia surgir", conta.
Foram 22 épocas de futebol ao mais alto nível. Mais de mil jogos (1016), 40 títulos, entre eles um Mundial de Futebol e dois Europeus com a seleção de Espanha, quatro Liga dos Campeões. Os espanhóis e todos não só, retém o golo marcado aos Países Baixos no prolongamento, que lhes valeu o único Mundial de futebol até agora, na África do Sul, em 2010. As memórias de Acácio vão para lá daquele remate heroico, aos 117 minutos, no FMB Statium, em Joanesburgo.
"Dentro do contexto de metodologia do Barcelona - as relações mais próximas são as fases mais sensíveis dos jogos - o Iniesta quando tem a bola sozinho derruba essas fases e procura, com os colegas, potenciar essas fases. Por isso é que o Barcelona ia ter um controle espacial de jogo de uma maneira incrível. A intenção era manipular o espaço para que o adversário não tivesse protagonismo com a bola, e eles poderem estar mais perto do golo, ao mesmo tempo estando a defender com bola. É a expressão brutal daquilo que é a manipulação do espaço, utilizando um objeto comum e respeitando a linha de meio campo e a linha de fora de jogo", explica.
Na nossa memória, ficam os movimentos daquela formiguinha que não parava. Bola no pé, a rodar sobre os adversários, a acelerar pelo meio ou pelas laterais. Três a dar-lhe marcação, e Iniesta a passar por eles. Encurralado perto da linha, arranjava espaço e saia de lá, filtrando uma bola previamente condenada, abrindo espaço, encontrando Messi que depois deixava Pedro ou David Villa no um para um com o guarda-redes.
O treinador de 44 anos viu em Iniesta o jogador que "deu uma expressão ao jogo em que não há posições, o que há é interpretação do espaço e tomada de decisão", num contexto onde o jogador se sobressai não porque é médio ou defesa ou avançado, mas porque interpreta o espaço ao seu redor e as necessidades momentâneas da equipa.
Nos três estágios realizados no Barcelona, a genialidade de Messi não fugiu ao radar de Acácio Santos. Por isso, a questão é inevitável. O que os aproximava e os distinguia? O que Messi fez e ainda faz no futebol é "extraordinário", mas fica atrás de Iniesta num detalhe muito importante.
"Se olharmos para o Messi, não consigo atribuir-lhe 360 graus na tomada de decisão, [...] não consegue ter a tomada de decisão e a capacidade de perceção espacial que o Iniesta tem ou tinha, que é total. Mas o Messi depois tem um pé esquerdo brutal, receção de bola da direita e acelerar e faz aquilo que ele fazia, tomada de decisão rápida e o desequilíbrio e o drible fantásticos, a capacidade de fazer golo, aí Messi é incrível. Agora tomada de decisão a 360 graus, com aquela fluidez, aquela motricidade fina, com relação espacial, era só Iniesta", garante-nos Acácio.
As comparações com Bernardo Silva e um olhar sobre o futuro
Perante tantos elogios, desafiamos o antigo treinador do União de Santarém a tentar encontrar, no futebol atual, alguém parecido ou que se aproxime da "genialidade tremenda" de Iniesta.
"Hoje em dia, a fazer isto com a esta dimensão cognitiva, temos o Bernardo Silva, que não é a mesma coisa mas muito próxima na tomada de decisão. Phill Foden do Manchester City tem um pouco essa capacidade. Mas falta-lhes a capacidade de receber a bola em outras zonas, de amplitude de jogo que o Iniesta tem. Mas isso também é fruto do contexto onde estão inseridos. Em termos de cérebro e tomada de decisão hoje em dia, podemos aproximar o Bernardo Silva", detalha.
Aos 44 anos, Acácio Santos está "à procura de um projeto, em Portugal ou lá fora", onde possa colocar em prática a experiência acumulada nos últimos anos a trabalhar com os melhores. O técnico procura um projeto onde possa "potenciar jogadores e criar uma forma de jogar" saída daquilo que bebeu "das melhores escolas do mundo".
"Qualquer desafio será interessante para por em prática [o que aprendi], em qualquer contexto é possível colocar isto, desde que os jogadores tenham coragem para o fazer. Se não tiver, faço como já fiz em vários e troca-se de jogador. Quem trabalhar comigo vai perceber que a responsabilidade é grande, mas no fim irá perceber que vai ser bastante interessante. Tive várias abordagens e propostas efetivas, tanto em Portugal como no estrangeiro, mas muitas delas recusei por não ser no enquadramento que eu queria e porque não era o momento. No verão tive de focar mais em mim, na minha saúde, mas agora estou focado na carreira", finaliza.
Andrés Iniesta oficializou no dia 08, terça-feira, o final de carreira, aos 40 anos. Considerado um dos melhores jogadores do mundo, o médio integrou a equipa ‘maravilha’ do FC Barcelona, num meio-campo com Xavi Hernández e Sérgio Busquets, complementado na frente com Lionel Messi. No seu palmarés conta com um título mundial, dois títulos europeus (2008 e 2012) e quatro Ligas dos Campeões, entre outros troféus.
No Barcelona Iniesta esteve 22 anos, até sair em 2018 para jogar, já na reta final da carreira, nos japoneses do Vissel Kobe. No Japão, ainda esteve seis épocas, antes de representar o terceiro e último clube da carreira, o Emirates Club (Emirados Árabes Unidos), em 2023/24.
Comentários