"Football is life" (Futebol é vida). Uma das frases mais repetidas e, consequentemente, mais marcantes de "Ted Lasso", série que começou discreta mas que rapidamente conquistou o coração do público. A história de um treinador de futebol americano que é contratado para orientar uma equipa da Premier League, o fictício AFC Richmond, parece pouco verosímil e pouco apelativa a quem não acompanha de perto o desporto-rei, mas é muito mais do que isso.

Lançada pela Apple TV+ em agosto de 2020, "Ted Lasso" tornou-se uma injeção de otimismo e de humanidade numa altura em que o mundo, desesperançado pela pandemia, ansiava por um escape. A ‘culpa’ é do seu protagonista (que dá nome à série), que consegue contornar a ignorância das regras do jogo (daí não ser um requisito gostar ou perceber do futebol) e destacar-se pelo coração e boa-disposição que imprime na sua metodologia de treino.

Duas temporadas depois (a terceira já foi confirmada), "Ted Lasso" já arrebatou vários prémios, entre os quais 11 Emmys e dois Globos de Ouro, e continua a somar fãs em todo o mundo – e aqui é impossível negar o poder das redes sociais, sendo que o próprio clube no qual se passa a ação, Ted Lasso e outras personagens secundárias têm a sua conta no Twitter.

Muito mais do que futebol

Contrariamente à maior parte dos conteúdos adaptados, a ideia para "Ted Lasso" parte de um simples anúncio televisivo. Em 2013, o canal NBC Sports comprou os direitos de transmissão da Premier League para os Estados Unidos e recrutou o ator Jason Sudeikis – que integrava o elenco do lendário "Saturday Night Live" – para criar um anúncio, em forma de ‘sketch’, que ajudasse a promover o futebol (‘soccer’ nos EUA) junto do público.

O anúncio em questão dava a conhecer Ted Lasso, um treinador americano de Kansas City que acabara de chegar a Londres para treinar o Tottenham, sem qualquer noção das regras do jogo. A sátira à forma como os americanos veem a modalidade tornou-se viral, com mais de 19 milhões de visualizações no YouTube, levando ao desenvolvimento de outros anúncios.

Na sequência desse sucesso, Ted Lasso ganhou a sua própria série cómica em 2020, co-criada por Jason Sudeikis, Bill Lawrence (o responsável por "Scrubs"), Brendan Hunt (que também desempenha o papel de adjunto de Lasso), e Joe Kelly.

A história segue uma premissa muito semelhante à do anúncio, embora com algumas alterações. Ted Lasso é contratado para treinar uma equipa da liga inglesa de futebol, o AFC Richmond, com a difícil tarefa de evitar a descida de divisão. Apesar da fama nos EUA e das boas intenções, Lasso não tem qualquer conhecimento sobre a modalidade que aceitou treinar. E por isso depara-se com vários desafios: as diferenças entre EUA e Reino Unido, o ceticismo dos adeptos e do próprio balneário, a acidez da imprensa britânica e o plano da nova presidente Rebecca Welton (Hannah Waddingham), confiante de que Lasso é a pessoa certa para levar o clube do ex-marido, de quem procura vingar-se, à ruína.

No entanto, Lasso está disposto a combater tudo isso com um sorriso nos lábios e uma metodologia de treino pouco convencional, acabando aos poucos por conquistar aqueles que o rodeiam. Aqui não faltam o capitão de equipa em fim de carreira (bastante mal-humorado, numa clara inspiração em Roy Keane), o goleador convencido e a sua namorada ‘influencer’, o roupeiro com quem todos gozam, e a própria presidente do clube. Todos acabam por se deixar contagiar pelo otimismo e bom caráter de Lasso. Um cliché? Inicialmente, talvez, mas todas as personagens vão mostrando mais camadas à medida que a série vai progredindo.

Tal como elas, também o público não consegue ficar indiferente ao (bom) humor e coração da série e do seu protagonista. "Ted Lasso usa o desporto para explorar as relações humanas e o que significa fazer parte de uma equipa. O seu reconhecimento advém da conexão que estabeleceu com a audiência num ano repleto de incerteza e preocupação causados pelo confinamento", explica Steven McIntosh, jornalista da BBC.

Já o Wall Street Journal fala num "abraço caloroso em forma de série". "É o escape perfeito num momento em que olhar para as notícias só nos dá vontade de enfiar debaixo dos lençóis", elogia a publicação norte-americana, aludindo ao ‘timing’ perfeito em que uma série mais leve e positiva permitia contrabalançar com o negrume causado pela COVID-19.

Ted Lasso acompanhado pelo seu adjunto
Ted Lasso acompanhado pelo seu adjunto Ted Lasso acompanhado pelo seu adjunto créditos: DR

Essa preocupação com o lado humano ficou ainda mais vincada na segunda temporada, com a entrada no clube de uma terapeuta, numa primeira instância para orientar a equipa para conseguir melhores resultados, mas que acaba por desenterrar os traumas do próprio Ted Lasso, apesar do seu ceticismo. Afinal, até as pessoas mais otimistas têm os seus fantasmas.

Na ressaca de um casamento falhado, tal como a sua personagem, Jason Sudeikis assume que sempre quis explorar questões relativas à saúde mental, como a ansiedade e os ataques de pânico, a depressão ou o stress pós-traumático.

"Queria mostrar que esta não era apenas uma série divertida e idiota, que havia outras camadas a explorar, e as pessoas responderam a isso. Tanto eu, como outras pessoas do elenco e da equipa de argumentistas recebemos mensagens de pessoas a agradecer por lhes termos aberto os olhos em relação à terapia e por tentarmos combater o estigma da doença mental e emocional. Qualquer coisa que uma pessoa puder fazer para se ajudar a si mesmo, acabará por ajudar as pessoas à sua volta", explicou o ator, num evento promovido pela multinacional norte-americana Abbott e pelo Real Madrid.

Mas não só. A dificuldade em aceitar que a carreira está perto do fim, o drama das lesões sucessivas, os problemas de adaptação de quem vem de fora, ou o deslumbramento com a fama são outras das temáticas abordadas em "Ted Lasso".

Entre tudo isto, e contrariando todas as expectativas, a verdade é que Lasso acaba por recuperar a confiança do balneário e devolver o clube às vitórias. Como diz Trent Crimm, o temível jornalista do 'The Independent', "não conseguimos deixar de torcer por ele".

Klopp, Crystal Palace e outras inspirações da série

Perante a simpatia e o otimismo inveterado de Ted Lasso, os mais céticos dirão que uma personagem como esta nunca existiria na realidade, sobretudo num meio tão inflamado de egos como o futebol. Numa entrevista à revista 'Sports Illustrated', Sudeikis admitiu que muita das frases cómicas e bizarras do seu protagonista foram inspiradas num professor de basquetebol do liceu que frequentava em Kansas City.

Outros traços, revelou, foram roubados a Jurgen Klopp, treinador alemão do Liverpool. "Quando eu ouvi sobre [Klopp] levar a sua equipa ao karaoke, eu disse: 'Oláááá, ideia para uma história'", afirmou Sudeikis, que também confessou a admiração por Pep Guardiola, técnico espanhol do Manchester City.

"Adoro-os, adoro a forma como se comportam como líderes de uma organização. São tipos com quem iria a uma sessão de pancadaria", disse.

Jurgen Klopp, de resto, já deu a entender que acompanha a série, quando questionado numa 'flash interview' sobre o facto de ser seguido por outros colegas de profissão pela sua liderança. "Ted Lasso mencionou-me. Ted Lasso mencionou que olhou para nós um pouco. É melhor do que ter o troféu para melhor treinador (risos)", respondeu o alemão, com a boa disposição que também o caracteriza.

Em sentido inverso, para antecipar a estreia da primeira temporada, a Apple socorreu-se de um treinador bem conhecido, mas que nada tem a ver com a personalidade de Lasso: José Mourinho.

Mesmo não sendo um conhecedor profundo do desporto-rei, Jason Sudeikis já foi visto a assistir a vários jogos da Premier League. Poucos dias depois da final do Euro2020, na qual Inglaterra acabou derrotada pela Itália em pleno Estádio de Wembley, o ator mostrou o seu apoio a Jadon Sancho, Marcus Rashford e Bukayo Saka, na sequência dos comentários racistas de que foram alvo.

"Cada vez que vou a um jogo, compro uma camisola para mim e para o meu rapaz. Estou disposto a ser um adepto fiel para qualquer clube que precise de mim. Sei que as pessoas me odeiam por isso, mas é a verdade", conta.

Brendan Hunt, co-criador da série, admitiu que o centrocampista e capitão de equipa do AFC Richmond, Roy Kent, foi inspirado (sem surpresas) no lendário Roy Keane e no seu comportamento intempestivo. "Queríamos alguém que intimidasse, mas com ‘gravitas’. Embora não seja fã do Manchester United, sempre fui fascinado pela figura do Roy Keane", explicou o humorista.

Quanto ao AFC Richmond, clube fictício em torno do qual gira toda a ação de "Ted Lasso", terá sido inspirado noutro emblema da Premier League, o Crystal Palace: ambos os clubes jogam no sul de Londres, ambos vestem as cores vermelho e azul, e ambos ocupam tradicionalmente a metade inferior da tabela classificativa. Além disso, várias cenas da série foram gravadas no centro de treinos do clube, em Selhurst Park – já o AFC Richmond joga em Nelson Road.

Curiosamente, o Crystal Palace também existe no universo de Ted Lasso e é mesmo considerado um dos maiores rivais do AFC Richmond.

Selhurst Park, casa do Crystal Palace
Selhurst Park, casa do Crystal Palace Selhurst Park, casa do Crystal Palace créditos: AFP

'Cameos', acordos com a Premier League e FIFA 23

O sucesso de "Ted Lasso" acabou por promover, também, algumas participações especiais de personalidades ligadas ao meio, como os ex-futebolistas Thierry Henry, Peter Crouch, Gary Lineker e Chris Kamara, o árbitro Mike Dean ou o apresentador da Sky Sports Jeff Stelling.

A própria Liga inglesa não ficou indiferente ao impacto da série, tendo chegado a acordo com a Apple para a cedência do uso dos equipamentos oficiais e do logótipo da Premier League na terceira temporada, que ainda não tem data prevista para estrear. De acordo com o portal 'The Athletic', o contrato ficou fechado por 500 mil libras (cerca de 574 mil euros).

No passado mês de setembro, a Electronic Arts Inc. e a Warner Bros. Interactive Entertainment anunciaram a chegada do AFC Richmond ao FIFA 23, o que significa que tanto Ted Lasso, como os futebolistas do clube (Roy Kent, Jamie Tartt, Sam Obisanya e Dani Rojas) são parte integrante do jogo, assim como o seu estádio, Nelson Road.

"Como fãs de longa data da EA SPORTS FIFA, ter Ted Lasso e todo a equipa da AFC Richmond incorporados na versão mais recente do jogo é um sonho tornado realidade para mim e para os restantes rapazes. O nosso elenco e a equipa trabalham muito nesta série, e estamos lisonjeados por causar impacto em tanta gente", reagiu Jason Sudeikis, em comunicado.

"Num curto espaço de tempo e com experiência prévia limitada, Ted Lasso tornou-se um fenómeno cultural, trazendo a paixão do futebol e o poder de acreditar à vida de milhões de fãs em todo o mundo", completou David Jackson, vice-presidente da Brand para a EA SPORTS FIFA.

Veja na galeria imagens de Ted Lasso em FIFA 23: