A vida de Richarlison dava um verdadeiro filme. O jovem que esta madrugada marcou dois golos pela seleção do Brasil, na sua segunda internacionalização pela 'canarinha', passou de um perfeito desconhecido, que jogava nos escalões secundários do seu país, a um dos goleadores da Premier League.
Em quatro anos passou dos juniores do América Mineiro para o Everton, numa subida a pulso: equipa principal do América, Fluminense, Watford e, por fim, os 'toffees'. A última grande conquista foi a estreia pela seleção brasileira aos 21 anos.
Teria sido fácil ao jovem ter enveredado pelo caminho pelo caminho das drogas e da delinquência, mas a paixão pelo futebol evitou males maiores. Nascido em Nova Venécia, no interior de Espírito Santo, em 1997, viajou com a família para Todos os Santos, na zona rural de Vila Pavão. Foi aí que deu os primeiros pontapés na bola.
"Morávamos na roça onde eu trabalhava. Eu jogava na equipa de Vila Pavão e o clube tinha uma equipa de crianças, que eu mesmo o treinava. Eu treinava-o", contou o pai Antônio Carlos, em declarações reproduzidas pelo site 'Mais Futebol'.
O dinheiro não abundava em casa de Richarlison e a separação dos pais não ajudou. Depois do fim do casamento dos progenitores, o avançado regressou com a mãe e o irmão a Nova Venécia, onde se cruzou com o crime e ficou muito perto de deitar a vida a perder. Grande parte dos moradores do bairro pobre onde morava era traficante ou criminoso e até muitos dos seus amigos de infância já consumiam e traficavam drogas. Mas nem este cenário levou Richarlison a mudar o seu foco.
"Lembro-me que uma vez um homem apontou-me uma arma à cabeça porque pensava que eu era um traficante e estava a tentar roubar-lhe o ponto de distribuição. Esta era minha vida", afirmou o jovem.
"Eram coisas naturais na minha vida, por isso não ficava nem um bocadinho assustado. Era uma zona muito difícil. Via drogas à minha frente todos os dias, ouvia tiros, enfim. Tinha tudo para me tornar um traficante, mas os meus treinadores eram da polícia. Como eles sabiam da onde eu era, aconselhavam-me constantemente para me afastar dos maus caminhos.", acrescentou.
Mas nem tudo no futebol é um mar de rosas. Richarlison jogava no Gazetinha, uma escolinha de futebol local, quando realizou testes no Avaí e no Figueirense, mas foi reprovado em ambos.
"O Figueirense disse-me que não me queria no meu dia de anos", recorda.
Focado em não desistir do futebol, o agora jogador do Everton não desistiu perante as várias negas e conseguiu convencer o Real Noroeste, onde foi integrado com 17 anos na equipa sub-20, até ser visto por um olheiro do América Mineiro.
Como não havia muito dinheiro em casa - a mãe ganhava 52 euros a cada quinze dias - o avançado de 21 anos foi obrigado a trabalhar para ajudar a família. Lavou carros e vendeu gelados para levar mais dinheiro para casa.
"Nessa altura eu lavava carros, vendia gelados de água e bolos caseiros, para fazer dinheiro para ajudar a família. Eu tinha tudo para entrar no caminho das drogas. Lembro-me que andava na rua e chamavam-me de vagabundo e bandido. Graças a Deus não me tornei bandido", explicou.
"Tínhamos casas pequenas, mas havia um quintal no fundo onde as pessoas costumavam esconder as drogas antes de vendê-las. Eles eram meus amigos, então não podia fazer nada contra eles. A maioria deles estava envolvida em vender haxixe e outras coisas, mas eu nunca toquei naquilo. Ofereceram-me várias vezes para fumar, mas felizmente consegui resistir sempre", recordou.
Quando assinou pelo Real Noroeste tinha de fazer nove quilómetros para ir treinar, estivesse a chover ou a fazer sol. Mas isso não lhe tirou o foco de ser jogador de futebol. O seu empenho foi recompensado e conseguiu um período de testes na equipa sub-20 do América, de Minas Gerais.
"O clube deu-me dinheiro para comprar bilhete de ia e de regresso, mas estava com fome, gastei o dinheiro do bilhete de regresso em comida e fui só com bilhete de ida. Tinha de ter sucesso.", disse.
Uma lesão grave que o obrigou a parar durante três meses quase 'estragou' a sua temporada. No entanto, ainda foi a tempo de fazer nove golos e quatro assistências em 24 jogos, ajudando o América a subir à Série A.
"Acordava todos os dias às 5 da manhã e trabalhava na recuperação até à noite, só regressava a casa às 20 horas. Esse tempo fez-me voltar mais forte aos treinos."
As boas exibições convenceram o Fluminense a avançar para a sua contratação. Fez 77 jogos e 20 golos no clube paulista, 15 dos quais na segunda época, a sua melhor no Brasil. Em janeiro de 2017 foi chamado a jogar o Campeonato Sul-Americano sub-20, no Equador, pelo Brasil, e chamou a atenção dos olheiros do Ajax que avançou para a sua contratação.
"O Watford surgiu de lado nenhum. Tinha tudo certo com o Ajax quando recebi um telefonema de Marco Silva. Ele acabou por mudar as minhas ideias, porque jogar na Liga Inglesa sempre foi um sonho. Por isso nem pensei duas vezes", explanou à Fourfourtwo.
A mudança para Inglaterra em idade jovem não foi fácil. O brasileiro não sabia inglês, não tinha carta de condução e nem sequer tinha por perto os necessários arroz e feijão preto por perto.
"No início não gostava da comida e perdi cinco quilos. Estava hospedado num hotel e só comia hamburgers, que era o mais parecido que havia com os pratos brasileiros. Mas depois arranjei uma casa, o meu empresário e a mulher vieram viver comigo e comecei a comer mais arroz e feijão", recorda, sublinhando que nada o distraía do sucesso no futebol:
"Um dia o Neymar veio jogar a Londres com a seleção brasileira e no final do jogo telefonou-me a perguntar se queria ir com e com uns amigos a uma festa. O Neymar é o meu ídolo, quando era mais novo imitava-o em tudo, até no corte de cabeço. Por isso aquele convite era uma grande oportunidade. Mas no dia seguinte tinha treino, por isso fiquei em casa a descansar. Os treinos em Inglaterra são muito exigentes e preciso de estar bem fisicamente para treinar."
Esta temporada Marco Silva, seu treinador no Watford, mudou-se para o Everton e levou consigo o 'seu menino'. Os 'toffees' pagaram 50 milhões de euros por Richarlison, mas o avançado não tardou a responder com golos - já leva três na Premier League.
"O Marco Silva ajudou-me muito. É um treinador muito organizado, que exige muito dos jogadores. Está sempre no campo de treinos a mostrar-nos como devemos fazer e a dizer-nos que podemos vencer qualquer equipa. É um grande treinador. Quando preciso de alguma explicação, vou ao escritório dele, falamos e isso ajuda-me em campo. Sempre joguei bem com Marco Silva e pretendo continuar a fazê-lo", afirmou.
A evolução do brasileiro não passou despercebida a Tite, técnico da 'canarinha', e o jovem já leva duas internacionalizações pela principal equipa do Brasil.
Comentários