Na Serra da Freita encontraram-se montes e penhascos, de um lado, e uma planície suave, deslizante, do outro. Frente a frente, por outras palavras, os pináculos da continuidade e, por oposição, da reconstrução. Uma equipa que joga de olhos fechados, outra que ainda procura fazer o mesmo, mas de olhos abertos, o que para já parece ser uma miragem.
O Arouca-Sporting arrancou com a previsão mais ou menos segura de que o desiquilíbrio evidente deixaria mossa bem cedo. Mas o futebol, profícuo em surpresas - encantadoras para uns, fatais para outros - mostra-nos sempre que mesmo quem percebe tanto dele, cedo se apercebe de que a exceção existe mesmo para infringir a regra. E a exceção vestiu-se de Jason, autêntico craque dos lobos, um dos poucos que ainda por ali habita, que aos 20 segundos teve a melhor oportunidade de golo do Arouca em toda a partida.
Quiçá atordoado pela estranha oportunidade que transportava nos pés, o extremo espanhol rematou por cima da baliza de Franco Israel, escolha inicial de Amorim depois da lesão de Kovacevic. Estava ali o uivo precoce do lobo, que nunca mais incomodaria a sua presa como naquele instante. Até porque caçar um leão, especialmente este, não é para qualquer boca. E muito menos para qualquer garra. Indiferente à morte mal anunciada por Jason, Gyokeres rapidamente respondeu na área oposta com um remate. Fraco, à figura, mas um remate. E de Gyokeres, o que deixa sempre qualquer defesa em sentido. Mostrava o Sporting que não havia qualquer nervosismo e muito menos desconfiança da equipa na sua missão, mesmo com as várias alterações lançadas por Rúben Amorim, claramente preocupado com a fadiga acumulada dos internacionais.
Sempre bastante recuado, não raras vezes com uma linha de cinco defesas, às vezes seis, sempre que os leões tinham a bola - ou seja, quase sempre - o Arouca foi-se encostando às cordas perante a maior pressão do Sporting. E numa dessas entoadas, o rasgo de Trincão à direita ofereceu-lhe a possibilidade de colocar a bola suavemente bombeada na área, onde já se babava Pedro Gonçalves ao persentir o seu quinto golo esta época, quarto na Liga. E é como se diz. Parece tudo tão simples. É a tal planície de que vos falava, por onde a bola desliza sem complexos, sem fantasmas, sem receios. Este leão respira confiança, se respira.
O golo galvanizou o Sporting, ainda mais solto, e exceptuando um período de 10 minutos - dos 30 aos 40 minutos - em que o Arouca conseguiu uma sequência de ataques, os leões pouco ou nada permitiram. E mesmo quando os lobos se acercavam da baliza de Franco Israel, a defesa leonina - esta noite com o triplete Gonçalo Inácio, Debast e Matheus Reis -, inteirava-se de afastar o expectável azar de uma sexta-feira 13. E com sucesso. Bruxas e demónios não andaram pela Serra da Freita. Ou se andaram, as lengalengas obscuras azararam os da casa.
Até ao intervalo, só Sporting. Literalmente. À boleia da inquietude de Trincão, da esperteza da Pedro Gonçalves e da potência de Gyokeres - o mais apagado da frente até então (felicite-se Loum, que não duraria para sempre) - Rúben Amorim tinha motivos para sorrir. E até podia ter tido mais, se Mantl não tivesse brilhado com uma excelente intervenção após um remate de Daniel Bragança, também ele surpresa no meio-campo dos leões na visita ao norte do país. A fechar, na sequência de uma bola parada, Gonçalo Inácio teve na cabeça o 2-0, mas uma vez mais o guardião do Arouca segurou o 1-0 como pôde. O Sporting dominava e os 70% de posse de bola eram elucidativos disso mesmo. Mas o marcador registava 1-0, um frágil 1-0.
Gonzalo Garcia, que para esta partida não pôde contar com os lesionados Nino Galovic, Matheus Quaresma e Eboué Kouassi, tinha motivos para estar preocupado. A dupla alteração no arranque do segundo tempo traduzia bem a incapacidade da sua equipa em mostrar-se no encontro, quase por completo comandado pelo autoritário e mandão leão.
As saídas de Mujica e Cristo, no caso deste último já depois do fecho do mercado em Portugal, devem ser difíceis de aceitar para os jogadores e treinador arouquenses. Amorim bem avisou na antevisão da partida, lembrando o peso de duas perdas de relevo para uma das equipas sensação da última época. Mas as quase duas dezenas de milhões do somatório das duas vendas deixam o Arouca mais perto da estabilidade financeira e inevitavelmente mais longe da desportiva. Não se adivinha uma época fácil. Não será um jogo com o Sporting o melhor exemplo da sua fragilidade, mas uma vitória em cinco jogos deixa antever um período de restruturação moroso. Para esse trabalho contribuirá sempre David Simão, que mais uma vez liderou como pôde o jogo da equipa arouquense, quase sempre por dentro, não raras vezes com a ajuda do intruso Jason no miolo, o último do trio maravilha de espanhóis. Mas com Hjulmand pela frente, motivado como está, ultrapassá-lo pode ser uma tarefa penosa.
O primeiro lance digno de registo na segunda parte aconteceu já para lá dos 60 minutos, quando o segundo golo do Sporting acabou por não acontecer. Nuno Santos disparou pela esquerda e tentou colocar a bola em Gyokeres. Antecipou-se Loum, que para não deixar a bola à mercê do sueco, coloca ele mesmo o esférico na baliza. Problema? Nuno Santos estava fora-de-jogo por 18 cm. João Pinheiro, o melhor classificado na época passada, esperou pela Cidade do Futebol e acabou por anular o golo. 1-0, tudo na mesma, a com cerca de meia hora para se jogar os leões continuavam sem conseguir dilatar a vantagem para alcançar a tão desejada tranquilidade no jogo.
Mas não teriam de esperar muito mais. Três minutos depois do lance anulado, na área do Arouca, a bola encontrou a mão de Fukui. Mais uma vez auxiliado pelo VAR, João Pinheiro reviu as imagens e marcou grande penalidade num lance, por dizer-se, algo complexo. O resto é história. Gyokeres, quem mais, atirou sem piedade e fechou a partida. O avançado sueco soma 8 golos em cinco 5 jogos. Não há nenhuma equipa na liga, nesta altura, com tantos golos como o camisola 9 dos leões.
A partir daí, Rúben Amorim sempre que aparecia nas imagens tinha Lille escrito na testa. Já a pensar na estreia da Liga dos Campeões na próxima terça-feira, o técnico começou a mexer. Aos 78 minuto saíram Hjulmand e Geovany Quenda, entraram Maxi Araújo e Morita. Minutos antes tinham sido lançados Geny Catamo e Diomande para os lugares de Matheus Reis e Nuno Santos.
Mas Trincão queria mais. Trincão parece querer sempre mais, sobretudo esta época. Tem sido um dos melhores deste início de temporada, voltou a sê-lo esta noite, mas o seu golo, o terceiro, é uma recompensa por tudo o que faz jogar. Como quem diz: 'Já trabalhei para vocês, agora este é para mim". E lá foi ele, contra o mundo. Por instantes, talvez o entenda se vir o golo, fez lembrar aquelas peladinhas que tanto gostamos de fazer com os nossos amigos ao fim-de-semana. Quando o jogo já está perto do fim e faltam as pilhas a todos menos a um. Despretensioso, mas ao mesmo tempo carregado de ousadia, decidiu que queria ele mesmo entrar pelo buraco da agulha. E assim foi. A bola, essa, só parou quando abraçou as redes de Mantl, já sem rede para evitar o terceiro. Trincão é uma espécie de locomotiva elétrica. Silenciosa, rápida e com uma bateria que nunca acaba. Olhe, assim como este Sporting.
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