Faz hoje 40 anos que Carlos Lopes deu a Portugal a sua primeira medalha de ouro em Jogos Olímpicos. Na prova da maratona nos Jogos de Los Angeles em 1984, o atleta português arrasou para terminar a prova com mais de um minuto do segundo colocado.
Mas tudo poderia ter sido diferente. Duas semanas antes dos Jogos de Los Angeles, foi atropelado perto do Estádio da Luz.
Conheça a fantástica história do primeiro ouro de Portugal em Jogos Olímpicos
Vencido, mas não convencido: Carlos Lopes saiu do Estádio Olímpico de Montreal, nos Jogos Olímpicos de 1976, com a medalha de prata na prova dos 10 000 metros, perdendo nos metros finais para o finlandês Lasse Viren, mas com o "sonho" a continuar vivo.
Prometeu voltar, à procura do ouro olímpico que então "deixou escapar" nos metros finais para Viren - não o fez em Moscovo'80, por lesão, mas em 1984, em Los Angeles, ganhou a maratona de forma fantástica, com grande avanço e estabelecendo um recorde olímpico que perdurou por 24 anos, até Pequim2008.
Esse dia 12 de Agosto (madrugada do dia 13, em Lisboa), entrava para a história do Desporto português como a data da primeira medalha de ouro em Jogos Olímpicos, um feito que só mais cinco igualaram: Rosa Mota, Fernanda Ribeiro, Nélson Évora, Pedro Pichardo e Iuri Leitão e Rui Oliveira (dupla na prova de Madison no ciclismo de pista em Paris).
Tudo ficou claro, recorda Carlos Lopes, a partir dessa derrota de 1976, que lhe deu alento e motivação acrescida. "Essa derrota ensinou-me imenso, deu-me outras garantias para o futuro, tirei proveito dela. Vencido mas não convencido...".
"Oito anos depois consegui ser medalha de ouro olímpico, entretanto fiz uma 'travessia no deserto', por causa das lesões nos tendões de Aquiles, quando me deram quase como com a carreira terminada", relembrou à Lusa o primeiro campeão português, que entre 1978 e 1982 praticamente não correu a alto nível, por sucessivas lesões.
Mas Lopes ultrapassou mesmo esses problemas e voltou, melhor que nunca. "Eu era uma pessoa de convicções e sabia que não era ali que acabava. Valeu a pena esperar três anos para retomar a minha atividade e aquilo que gostava de fazer", recorda.
Falhada a ida a Moscovo'80, que Lopes afirma que não iria boicotar, se estivesse em condições de competir, "apontou baterias" para a maratona, por razões estratégicas, apesar de em 1983 ser o segundo melhor do Mundo… logo atrás de Fernando Mamede.
Sentia que tinha mais hipóteses na maratona, e não foi difícil convencer o seu treinador, o lendário professor Moniz Pereira, que passava a ter duas fortes hipóteses de medalhas, com Lopes e Mamede, então recordista mundial dos 10 000 metros.
"Desde 1981 que a minha convicção era a maratona. Em 10 000 metros, com atletas muito rápidos na parte final, eu sabia que ia ter imensas dificuldades em ser campeão olímpico", recordou.
Lopes não se desviou do plano "a longo prazo" e desde 1981 que foi "acrescentando" km nos treinos. Primeiro 25, depois 37 km - "andei mais de um ano a fazer experiências" - para então em 1983 "treinar forte", depois de "conhecer bem a distância".
"No ano dos Jogos estava na melhor forma de sempre", refere, ele que em Março de 1984 deslumbrou nos Campeonatos do Mundo de Corta Mato (o seu segundo de três triunfos) e que em 1983 batera o recorde europeu da maratona, em Roterdão, na primeira vez que completou a distância.
Pelo meio, bateu recordes pessoais nos 5000 e 10 000 metros (na casa dos 13.16 e 27.17 minutos), o que lhe dava mais alento. "Quando entrei na maratona sabia que era o melhor em 5000 e 10 000 que os meus adversários", explicou à Lusa.
De atropelado num treino à promessa de Mário Soares
Das semanas que antecederam Los Angeles'84 recorda dois episódios "curiosos", ainda em Lisboa: o ter sido atropelado em pleno treino, perto do estádio da Luz, e a ironia e boa-disposição de Mário Soares, então Primeiro-ministro, que lhe respondeu a uma "provocação" com outra, ainda maior.
Dezasseis dias antes da prova, o "acidente estúpido" por um triz não o afastou dos Jogos. "Vinha a fazer um teste de 15 km e quando dei por mim estava a fazer três cambalhotas no ar... Um acidente um bocado estúpido, uma ultrapassagem pela direita sem ver quem é que está a passar na estrada... curiosamente de um candidato a presidente do Sporting, o comandante Lobato de Faria", relembra.
"Quando me levantei e vi que não tinha nada partido pensei que 'ainda não era desta' e que tudo se vai normalizar", acrescenta Lopes, que ficou "miraculosamente" incólume do embate com o Mercedes, que até ficou com os vidros estilhaçados. Para o campeão, só dores ligeiras.
Na tradicional despedida da missão olímpica em São Bento, dias antes, Lopes mantinha o bom humor e a descontracção proverbial, mesmo perante uma figura como Mário Soares.
Propositadamente guardada para o fim, depois dos cumprimentos e já nas despedidas, a pergunta dirigida ao líder do executivo de então: "Se eu ganhar uma medalha, não tenho direito a um churascozinho de cabrito, aqui no vosso quintal?", apontando para o jardim de São Bento.
Lopes recordou a resposta de Soares: "Você tem uma lata do caneco, mas olhe... traga lá a medalha que não é um cabrito, é um boi". Promessa feita e promessa cumprida, após o regresso triunfal de Los Angeles.
"'Este gajo parece que vai para uma festa'..."
No dia 12 de Agosto, ganhava de forma fulgurante a "prova rainha" do atletismo, com 2:09.21 horas, deixando o irlandês John Tracy a mais de meio minuto, depois de uma arrancada demolidora a cinco quilómetros do fim.
"Eu levava uma prova pré-definida, que saiu na perfeição, quando chegou aos 37 km decidi arriscar, foi o momento certo, em que os adversários não reagiram...e quando dei por mim estava dentro do estádio, com 90 mil pessoas a aplaudir pela primeira vez na história uma grande medalha para o país e para o povo português", afirmou, com orgulho.
Um dia em que acordou "muito bem disposto", sempre com a convicção da vitória e sempre mais calmo do que os que o rodeavam: "Quarenta minutos antes da prova o Moniz Pereira é que estava nervoso. Olhou para mim, que estava com uma cara tão descontraída, pega-me no braço e tira-me a pulsação.., e não acreditou. '46, como é possível, este gajo parece que vai para uma festa'..."
Carlos Lopes tinha, então, 37 anos. Irrealista era pensar que ainda podia fazer mais um ciclo olímpico, até Seul. No entanto, ainda teve tempo para, em 2005, ser campeão mundial de crosse pela terceira vez, e para bater o recorde do Mundo do Maratona, em Roterdão de novo.
Mas para a história, mais que tudo, fica aquela corrida "louca" de Los Angeles em que se desembaraçou de todos os adversários, um a um, entrando pela porta grande para a galeria dos maiores atletas de sempre.
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