A evolução tecnológica trouxe muitas coisas novas ao desporto. Desde as que consideramos atualmente básicas, como a transmissão televisiva, os ‘scoreboards’ ou as mais novas como o Vídeo-árbitro no futebol.
Contudo, a tecnologia não veio só acrescentar ferramentas aos desportos já existentes, veio também criar novas modalidades.
A Formula E, os eSports e as corridas de drones são alguns dos exemplos.
Conheça então André Ferreira, o melhor piloto de drones português que soma já 2 presenças no top 10 em provas do campeonato do mundo (2017 e 2018) bem como um 5.º lugar na prova “FAI Drone Tokyo 2019 Racing & Conference” que contou para o campeonato do mundo de 2019, onde foi um dos 100 melhores pilotos entre mais de 560 participantes.
O que começou como uma brincadeira acabou por levar este algarvio de 41 anos a provas à volta do mundo, da Europa à Ásia, em competições com alguns dos melhores pilotos do Drone Racing (vulgas Corridas de Drones).
Este informático de profissão, além de competir, é um apaixonado por ‘voar’ nestas pequenas máquinas que ele próprio testa e monta, e que já o levaram a filmar mesmo anúncios para uma grande marca automóvel.
Falámos com o André, via online, para perceber mais sobre esta modalidade e o que ela envolve.
SAPO Desporto (SD): André, como é que surgiu esta paixão pelos drones?
André Ferreira (AF): "Há cerca de 4 anos construí o meu primeiro drone. Na altura ainda não havia a facilidade que existe agora, não tinha com quem falar nem a quem pedir opiniões, portanto tive de aprender por mim e obviamente que cometi alguns erros, mas foi uma fase bastante interessante"
"Entretanto comecei a aperceber-me que existiam corridas e competições, então há cerca de três anos, comecei a competir. Primeiro comecei aqui em provas nacionais, a primeira prova que fiz foi em Setúbal. Na altura contava para o campeonato do mundo e fiquei em terceiro lugar, na primeira prova. Nunca tinha feito um circuito, normalmente treinava no meio das árvores, em pistas menos elaboradas…"
SD: Essa prova em Setúbal, foi alguém que o inscreveu, certo?
AF: "Sim, foi um amigo meu aqui do grupo. Na altura eu não pensava em fazer competição, apenas queria divertir-me. Um dia ele disse-me “olha vai haver uma prova, nós vamos lá e já te inscrevi. Vamos lá os dois e eu acho que tu tens jeito para isso, então vamos ver como é que te safas” [risos]. E olha… fui o melhor português. Fiz o pódio. A partir daí, muitos amigos também me apoiaram a dizer que devia de continuar porque tinha jeito"
"Comecei a arranjar patrocínios, fábricas grandes começaram a patrocinar-me, a enviarem-me material [componentes] para eu testar. Com o acesso a material, já podia arriscar mais, podia partir o drone e depois reparava-o. Apoiaram-me também nas viagens e comecei a fazer provas internacionais. Primeiro na Europa, de seguida convidaram-me para ir correr na Ásia, nomeadamente na China, na Coreia do Sul e Japão"
SD: A aviação e as corridas sempre lhe interessaram ou esta paixão só surgiu com os drones?
AF: "É engraçada essa pergunta, porque eu sempre gostei de aviões, já desde miúdo. Tudo o que tinha a ver com aviação fascinava-me. Aos 12 anos já jogava computador e normalmente a minha tendência era para jogar jogos de aviões, simulador de aviões. Achava bastante interessante, só que nunca quis seguir carreira disso"
"Os drones são o melhor dos dois mundos: podes “voar”, mas consegues voar muito mais próximo do chão, contornar obstáculos e dá-te muito mais adrenalina"
"Se seguisse poderia nem gostar porque um voo de um avião comercial… é um trabalho interessante, mas se calhar acaba por ser um bocado rotineiro e de certa forma até aborrecido. Os drones são o melhor dos dois mundos: podes “voar”, mas consegues voar muito mais próximo do chão, contornar obstáculos e dá-te muito mais adrenalina, é mais emocionante que um voo de grande altitude, que é sempre a direito… Não podes aproximar-te do terreno como um drone. Tem várias características que um avião não tem, consegue levantar voo na vertical, aterrar em espaços pequenos e consegues inclusive ficar a pairar no ar, consegues desviar obstáculos… é o mais próximo de um pássaro. O pássaro passa por ti e desvia-se, depois a seguir passa por dentro de uma árvore… é uma sensação parecida. É algo que antes só conseguias imaginar…"
"É como se fosse um superpoder"
SD: Pilotar os drones com aqueles óculos não é difícil? Um aparelho tão pequeno, a tanta velocidade, é preciso muito destreza, cálculo…
AF: "Ao início faz confusão, porque o campo de visão é algo limitado e a câmara está fixa, só temos aquele campo de visão e estamos a olhar para a frente, não conseguimos olhar para os lados. Mas com a prática, começamos a sentirmo-nos como se estivéssemos lá, é como se fosse um superpoder. Quando metes os óculos, deixas de estar no sitio onde estás, sentado na cadeira e passas a estar no drone. Tudo o que tu vês dá-te uma sensação de estares fora da tua pessoa…"
"O que não consegues ver acabas por ter de desenvolver uma outra perceção, que é a do espaço. Antes de voar num sitio novo, vejo primeiro onde é que estão os obstáculos e tento encontrar pontos de referência. Assim quando estiver a voar só com os óculos, estou a imaginar que estão obstáculos nas proximidades mesmo sem os ver. A visão é tão afunilada que quando estou a fazer a curva já não estou a ver o que está do outro lado, mas sei que pode estar ali uma vedação porque antes já estive a olhar para lá. Ficas com uma noção do espaço…"
SD: Um mapa mental?
AF: "Exatamente, fazes um mapa mental e é impressionante porque é bastante preciso. Vês os melhores pilotos do mundo a fazer curvas cegas e eles praticamente nem vêem o obstáculo. É difícil de ver, a câmara não tem uma grande resolução, mas eles já sabem que ele está lá, logo antes do obstáculo aparecer, já estão a virar"
SD: Qual é a parte mais difícil na prática destas corridas?
AF: "O mais difícil é lidarmos com nós próprios. Eu já vi muitos pilotos, pilotos bastante experientes a cometerem erros de iniciantes, porque às vezes estão nervosos. Por exemplo, eu já estive numa prova do campeonato do mundo, salvo erro na Alemanha, com cerca de 64 pilotos e eles fazem primeiro os tempos para qualificação e passa só metade. São 64 pilotos, passam 32. A partir daí é “bota fora”, o “mata-mata”. São quatro de cada vez, fazem uma manga de quatro pilotos, passam dois e não há volta a dar. Um piloto que tenha o azar de cair, até pode ser o melhor piloto do mundo, fica de fora. Porque o drone às vezes cai de uma maneira que já não é possível levantar"
"Eu já vi casos desses. Por exemplo, é difícil chegar à final, são só quatro pilotos em 64. E no arranque [dessa final], um dos melhores pilotos, que era o favorito, nem sequer arrancou, o drone caiu logo. Porque? Montou as hélices ao contrário…. São coisas que acontecem porque às vezes complicamos. É preciso é voar e estarmos concentrados no que estamos a fazer e estar confiante que o material está a funcionar bem. O resto depois acontece, com sorte, às vezes é precisa"
AF: "[O mundo do Drone Racing] Cada vez está mais competitivo. Tu vês agora miúdos com 12, 14 anos a serem os melhores pilotos do mundo. Porque o FPV [First Person View – visão na primeira pessoa] de competição tem evoluído muito, não só a nível dos drones, como também na forma de treinar. Há cerca de dois anos começou a surgir o simulador no computador, uma coisa de antes não se usava muito. Estes miúdos agora passam horas a treinar no simulador e aquilo dá-lhes uma preparação enorme, porque conseguem rentabilizar melhor o tempo. Enquanto que eu vou para a minha pista treinar, cada vez que eu caio perco cinco minutos para ir buscar o drone, fazer alguma reparação… lá não, aquilo é tentativa, erro, falhas ou caíste, carregas numa tecla e estás outra vez a voar, é como um jogo de playstation. E agora que os organizadores anunciam o desenho da prova…"
SD: Assim eles já conseguem preparar-se em casa?
AF: "Precisamente. Muitas vezes não só dão o desenho como dão o mapa para carregar no jogo. Dá uma vantagem enorme, porque se tiveres disponibilidade, podes começar a treinar um mês antes. Quando chegas à prova, claro que não é exatamente igual, mas é bastante aproximado ao ponto de já teres criado o tal mapa mental, já sabes a sequência de curvas"
SD: Isso é uma situação polémica na comunidade?
AF: "Não, foi bem aceite. O que era polémico era os organizadores não divulgarem o desenho da pista. Existiam provas que divulgavam e outras não. Haviam sempre pilotos que punham em causa se alguém já sabia o desenho antes. Imagina uma prova na França, normalmente as provas são internacionais, mas quem faz parte da organização são alguns pilotos locais e os clubes locais que apoiam que também têm lá pilotos que estão a correr. E ás vezes havia sempre esse assunto polémico: como é que sabíamos se o piloto francês que está aqui, que faz parte deste clube não teve já acesso à pista? Isso seria uma grande vantagem…"
SD: E isso já deixou de acontecer?
AF: "Eles agora divulgam sempre a pista, é igual para todos, como faz sentido. Eles já sabem a pista, se usaste o computador, se treinaste ou não, isso já é contigo, está disponível"
SD: Em Portugal a modalidade está a crescer ou nem por isso?
AF: "Em Portugal as coisas estão um bocado paradas. Já temos o campeonato nacional há algum tempo, mas não tem havido uma grande evolução. Normalmente são quase sempre os mesmos pilotos. O calendário de provas não está bem dimensionado para o país. Por exemplo, eu sou algarvio e a maior parte das provas são mais no Norte… é chato porque cada vez que ia fazer uma prova a Leiria, ia com o meu carro, sozinho, gasolina, portagens, ir ao fim de semana fazer uma prova eram pelo menos 300€. Não me compensava muito, deixei de fazer o campeonato nacional porque eu com 300€ ia apanhar um avião em Faro e podia ir a Inglaterra, a França ou à Alemanha, que já começava a ser uma dimensão diferente (…)"
SD: Então o foco agora está nas provas internacionais?
AF: "Sim, é o que faz sentido quando queremos começar a ter mais patrocinadores, mais visibilidade, são as provas internacionais que nos ajudam. Até porque inclusive muitos dos patrocinadores que tenho, eles dão-me incentivos e pagam-me o voo, dão algum apoio se eu for a essas provas internacionais, porque são provas de renome, eles sabem claramente que vão ser vistos a nível mundial por muitos pilotos. Uma das dificuldades deste desporto, é a parte da presença local, as pessoas que vão ver a prova no recinto não são muitas"
"Abrir estas provas ao público em geral é um desafio"
SD: O mais importante é a transmissão, é isso?
AF: "Exatamente, quem vai ver a prova normalmente são pessoas que também voam, são mais entendidos e gostam mesmo daquilo. Abrir estas provas ao público em geral é um desafio, não funciona. Não é tão fácil como um desporto como o futebol, o andebol. Porque? Os drones são relativamente pequenos, alguns cabem na palma da mão e mesmo com luzes é difícil acompanhar o que está a acontecer. Se fores ver uma prova, é intenso. São três voltas e normalmente dura dois minutos. É tudo muito rápido. Em termos de espetáculo, é engraçado, mas é difícil para a pessoa acompanhar. Tu podes ter um piloto favorito, podes tentar ver e acompanhar quem está a ganhar, mas é difícil"
"Porque se a prova não for bem organizada, não tiver os meios adequados, ou seja, ter um ecrã para o público acompanhar, porque no ecrã tens a ideia do que os pilotos estão a ver e de quem é que vai à frente, as manobras e tudo isso. Aqui em Portugal não existem esses recursos. O público não tem noção do que está a acontecer. Outra coisa importante é ter um comentador, para explicar o que está a acontecer, quem é que está em primeiro, quem é que foi ultrapassado, tudo isso faz diferença"
"Em muitos países já vês esse nível. Já vês patrocínios que já estão numa faixa de empresas como a DHL, a Vodafone a patrocinar estas provas, que são provas já muito grandes. Em que a própria prova em si está inserida num evento. Com comentador, com ecrãs gigantes, transmissão ao vivo pela internet e é por aí que muitos dos fãs acabam por ver a prova"
"É um desporto interessante que ainda tem muito por explorar, porque está mais do que vocacionado para a transmissão online ou televisiva(…). É uma coisa que está a evoluir, tem estado a haver revisão de regras, a final por exemplo, já é à melhor de três, para não acontecer aquilo de que falei há pouco, de um piloto ter um pequeno azar e ficar logo sem oportunidades, o que não era justo"
SD: Além das corridas, ainda usa o drone para outras finalidades. Já vi que filmou um anúncio. Como é que isso surgiu?
AF: "Foi através dos vídeos que eu publico nas redes sociais, vêm empresas falar comigo, a dizem que gostam do meu trabalho e que gostavam de trabalhar comigo. Houve uma empresa portuguesa que veio falar comigo, é uma empresa que normalmente faz imagens mais com drones tipo DJI, drones estabilizados. Só que desta vez tinham um pedido especial em que a empresa queria fazer um vídeo para a Toyota, em que eles já tinham uma ideia do que estes drones conseguem fazer, filmagens que os outros drones estabilizados não conseguem fazer. Nomeadamente perseguições a carros, perseguições a pessoas, movimentos mais dinâmicos, fazer um mergulho numa falésia… Vieram filmar a Portugal, contrataram um empresa e um rapaz dessa empresa veio falar comigo e eu fui. Nunca tinha feito nada assim, foram quatro dias a percorrer Portugal, desde Lisboa até ao Minho. Eles ficaram super entusiasmados, o diretor de imagem cada vez que eu ia voar parecia um miúdo, punha os óculos e era “André, let’s go!”, sentava-se ao meu lado e era só “amazing!” [Risos] Eu voava, fazia uns mergulhos e eles ficavam impressionados. Aquilo era uma ferramenta nova que ele não conhecia e já estava a pensar noutros projetos. (…)"
AF: "Sim, diria que sim. Há quem já faça isso. Os prémios, dependendo da prova, rondam os 20 mil euros, 25, 30… Nesta última prova que tive, no campeonato do mundo da China, o prémio era cerca de 25 mil dólares e o piloto coreano que ganhou a prova principal ainda venceu a prova júnior, acumulou mais 20 mil. Foram 45 mil dólares. Não é nada mau…"
"Gosto mesmo de voar independentemente de fazer competição ou não"
SD: André, quais é que são os seus objetivos para a sua carreira de Drone Racing? É deixar o trabalho e conseguir fazer vida só disto? Chegar a outro patamar?
AF: "Não, deixar o meu trabalho não me aparece que seja possível. Até porque agora os pilotos novos que estão a surgir são muito competitivos, é difícil de acompanhar. Talvez um dia façam um campeonato de seniores e o júnior, porque os miúdos agora não estão a dar hipótese. (…) Eu comecei isto para me divertir e gosto mesmo de voar independentemente de fazer competição ou não. A minha ideia é continuar a voar, ir fazendo provas e algo novo que eu agora estou a fazer, que também me está a dar um grande prazer, é que como tenho a possibilidade de trabalhar com muitas empresas, que me patrocinam, ajudo a desenvolver produtos em conjunto com eles. Mandam-me produtos, dou ideias, faço os testes de peças e materiais para drones. Os patrocínios que tenho são todos de peças para drones e é bastante gratificante. Quase todas as semanas recebo material para testar, faço experiências com os drones, faço outras abordagens"
"Agora tenho um projeto novo, em que vou fazer um drone com 60 gramas. É um microdrone, mas faz competição, voa super-rápido e acaba por ser bom também em termos sociais, porque algumas pessoas ainda têm algum receio dos drones, que de certa forma podem ser perigosos, é preciso ter muito cuidado, mas entre um drone de 1kg e um drone de 50 gramas, as coisas mudam, já passa a ser visto como um brinquedo…"
SD: Isso vêm ajudar a contrariar aquelas situações de drones a ‘atacarem’ aeroportos e situações semelhantes... Notou que essas situações vieram trazer uma má fama a esse mundo?
AF: "Sim… houve aí algumas pessoas irresponsáveis… mas isto é como conduzir um carro, temos de cumprir regras, não podemos andar a fazer o que queremos. Existem sítios específicos para voar. Eu voo sempre no campo, tenho a pista e normalmente nem passo dos seis metros de altitude. Aquilo é quase comparável a um carro telecomandado.
São drones de 50 gramas, se bater numa pessoa não é grave, é como levar com uma bola de futebol. E isso pode ajudar a desmistificar o mundo dos drones, começar a trazer mais pilotos para esta comunidade… Os preços também têm baixado bastante, o drone que estou a construir agora ronda os 120 euros, enquanto que antes qualquer drone era pelo menos 500 euros e ainda corríamos o risco de parti-lo..."
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