Elisabete Jacinto continua à procura do seu momento pelas dunas africanas. A piloto do Montijo prepara-se para fazer a sua 10.ª aparição no rali Africa Eco Race, que arranca em janeiro de 2019. Depois de uma preparação intensa, o rosto da equipa Bio-Ritmo espera ter melhor sorte nesta 11.ª edição da prova. O objetivo é um pódio final na categoria camiões. Mas para lá chegar, será preciso que tudo ande 'sobre rodas' e sem azares, como aconteceu na 10.ª etapa da edição de 2018, quando o seu MAN TGS de competição partiu o diferencial da frente.

A poucos dias de viajar para o Mónaco, de onde partirá a caravana, Elisabete Jacinto falou com o SAPO Desporto, onde contou algumas peripécias vividas em terras africanas, a luta de uma mulher em terreno de homens e o sonho de ser reconhecida como piloto de excelência.

"Gostava muito de fazer uma prova excelente, acima de tudo porque as duas últimas correram bastante mal. Estamos a conviver com um sentimento de frustração que nos aborrece e muito. Aposto sempre para chegar a um lugar de topo, os três primeiros são a minha meta porque acho que tenho nível de condução para isso. Se calhar não temos material para isso mas consigo colmatar a falha em termos de material com a minha experiência e com um bom trabalho de equipa. Vou fazer os possíveis chegar aos três primeiros. Tem tudo de correr bem e não ter muitos golpes de azar", contou.

Apesar de a prova estar na sua 11.ª edição, continua a faltar visibilidade ao Africa Eco Race para ter mais destaque na imprensa. Elisabete Jacinto recorda que a edição de 2018, por exemplo, teve mais quilómetros que o Dakar que se realizou na América latina. O facto de as duas provas serem realizadas em simultâneo não ajuda na divulgação da prova africana, um rali que necessita de mais visibilidade. Muitos pilotos e equipas acabam por optar correr o mítico Dakar, que se mudou em definitivo para a América Latina.

"Esta corrida é exatamente aquilo que era o Dakar antes. A única coisa que, se calhar, deixa um bocadinho de saudades, é o prestígio que o Dakar tinha que esta [Africa Eco Race] ainda não tem. Na outra, dizia-se que se ia fazer o Dakar e só isso já abria todas as portas e movia todas as montanhas. Se disser que vou fazer o Africa Race, ninguém sabe o que é, o que implica, mas no fundo é a mesma corrida: percorremos os mesmos países, os mesmos quilómetros, as mesmas dificuldades. O Dakar foi ganhando nome, impacto, as pessoas relacionavam-no muito com África e isso era um aspeto bastante importante", recorda.

Desengane-se quem pensa que é so entrar no camião e conduzir. Até lá, há todo um trabalho árduo a fazer. O treino físico, começa às 05h30 da manhã e vai até às 09h30, no ginásio. Um treino essencial que depois se reflete nas provas. O problema é o treino com o camião já que Portugal não oferece condições para Elisabete Jacinto testar o seu MAN TGS.

"Quando preciso de treinar, peço autorização aos Militares da Brigada Mecanizada de Santa Margarida. Quando é muito importante vou para Marrocos e fico lá seis a sete dias a fazer quilómetros mas como a verba é curta, não conseguimos ir tantas vezes", lamenta.

A outra preparação tem a ver com a logística. Tudo tem de estar no local certo

"Há um aspeto muito importante que é a organização logística das coisas. Vamos para o deserto, com uma corrida com etapas muito grandes em que não sobra tempo para nada, temos de ter tudo o que nos faz falta e ter tudo no sítio certo, bem arrumado para não se estragar, saber onde está tudo, no meio de porcas e parafusos. Temos de estar preparados e ter na nossa cabeça a solução para todos os problemas. No meio disto, a condução parece apenas assessório, porque tudo é tão complicado antes de partirmos, o que nos deixa em stress. São dias de ansiedade, coisas de última hora que nos deixam às vezes abatidos. Quando subo para o camião, já vou aliviado porque agora é só conduzir", esclarece.

Elisabete Jacinto tem sido, ao longo dos anos, a única mulher em prova. Os resultados alcançados e a sua experiência valeram-lhe enorme respeito por parte dos pilotos mas também da organização.

"Lembro-me de um ano em que o organizador desta prova, o Jean-Louis Schlesser, em conversa telefónica, virar-se para o meu marido e dizer: 'Ah, este ano vamos ter uma mulher de camião'. E depois faz uma pausa para dizer, 'Ah, para nós a Elisabete já não é uma mulher'. Achei graça a aquilo, achei que tinha sido um elogio, no sentido de não se valorizar muito as mulheres. Há uma tendência para pensar: 'Isto é um desporto difícil mas se está aí uma mulher, então não deve ser assim tão difícil'. Já tinha ganho o estatuto de homem no meio deles e achei graça a isso", conta.

Outro episódio engraçado aconteceu quando Elisabete Jacinto venceu uma etapa, batendo os poderosos Kamaz.

"Outra história engraçada foi numa etapa que ganhamos. Somos três na cabine, eu o navegador e o elemento que esperemos que nunca faça coisa nenhuma, que vai lá só para passear, que é o mecânico. Mas é uma pessoa muito ativa, vai sempre muito atento, controlando o que faço e o que faz o navegador. A certa altura, perto da fase final de uma etapa, começamos a ver camiões em sentido contrário e ficamos preocupados. O navegador achava que estávamos no sítio certo, e não voltamos para trás. E ele diz: 'temos de encontrar uma pista pouco visível e se calhar é por isso que estão a voltar para trás. E nisto o Marco Cochinho [mecânico] diz: 'a pista está aí'. Ele conseguiu ver e nenhum dos outros conseguiu. E conseguimos ganhar a etapa a geral dos camiões, o que nos deu um gozo enorme. A chegada à meta, a equipa Kamaz, que tem imensos meios, vieram todos darem-nos os parabéns como se estivessem realmente felizes por eu ter ganho a etapa, apesar de ter ficado à frente dos camiões deles e fiquei contente. São pequenas coisas que nos dão muito gozo, porque eles estavam a ser genuínos", recorda.

Mas ser mulher num mundo de homens, a conduzir camiões em países de árabes, nem sempre tem sido fácil para Elisabete Jacinto.

"Nos países árabes por onde passamos, onde as mulheres não tem qualquer importância, os homens encaram as mulheres com olhos que se calhar não são aqueles que gostaríamos que encarassem. Lembro de várias situações em que esticava a mão para dar um 'passou bem' a um mauritano e ele dar um salto para trás e agarrar na mão dele como se lhe fosse pegar uma doença má", recorda a piloto nascida no Montijo. Mas as coisas vão mudando com o passar do tempo.

"Lembro-de um ano, numa zona de dunas, com areia muito mole, o camião ficou enterrado, e nos os três a cavar, a cavar e o camião nunca saía de lá. A certa altura olho para o topo da duna e vejo dois militares mauritanos a olhar para nós. Sem querer, fiz-lhes um gesto com a mão e eles vieram ajudar-nos a tirar o camião dali. E, no final, sem pensar muito, estiquei a mão para lhes cumprimentar, como gesto de agradecimento e eles apertaram-me a mão e eu, no final, fiquei todo contente. E eu pensei com os meus botões: 'Bom, sinais de progresso. Mesmo na Mauritânia, tiveram a simpatia de me apertarem a mão'. Gostei muito desse gesto", explica.

Apesar de ser a única mulher em prova, Elisabete Jacinto não quer ser recordada por esse dado mas sim pelos resultados. O sonho passa por "ser reconhecida como um bom piloto, acabar nos lugares de tipo da classificação geral, ser reconhecida não por ser mulher a praticar um desporto de homem mas provar a toda a gente que é possível fazer bem, independentemente de ser homem ou mulher".

Em 2019 será a única portuguesa no Africa Eco Race, depois de, na edição 2018, Luis Oliveira ter sido vice-campeão nas motos. Elisabete Jacinto lamenta que o piloto português não esteja em prova já que teria fortes hipóteses de ganhar.

"Temos tido muito bons pilotos de Todo-o-terreno, que podiam ter feito um figurão enorme ao longo destes anos mas nunca se proporcionou ter algum no primeiro lugar. Mas Luís Oliveira é um dos pilotos que, se levasse mesmo a sério e interessasse em ganhar, podia facilmente ganhar porque mostrou ter muita qualidade. Gostara de voltar a vê-lo fazer um bom resultado", conta.

No futuro, a piloto da Bio-Ritmo gostaria que fosse possível mudar a data da prova para atrair mais pilotos e equipas, mas tal será difícil. Janeiro é o melhor mês para organizar o Africa Eco Race. É pena coincidir com o Rali Dakar.

"Se uma das provas [Dakar ou Africa Eco Race] mudasse de data, se calhar teriam mais sucesso, mais equipas inscritas. Mas nenhuma das duas quer mudar. Os organizadores do Africa Race argumentam com a temperatura, porque se avançarmos a prova para a Primavera, temos as tempestades de areia, que são muitas e dificultam tudo, e janeiro é o melhor mês para fazer as corridas, por isso não querem mudar a data. Ganhariam imenso em termos de visibilidade e participantes se mudassem a data da prova porque não haviam duas provas a acontecer ao mesmo tempo", sublinha.

A equipa Bio-Ritmo é formada por seis pessoas: no camião de corrida vão Elisabete Jacinto a conduzir, o navegador José Marques e mecânico Marco Cochinho, que trabalha no camião todo o ano e que ao final de cada etapa, fica a trabalhar no MAN TGS pela noite fora. No camião de assistência vão Jorge Gil que coordena tudo, Sérgio Cardoso que vai a conduzir e Hélder Anjos que é mecânico que ajuda na assistência no camião de corrida ao final do dia.

O rali África Eco Race realiza-se de 30 de dezembro de 2018 a 13 de janeiro de 2019 e liga Nador (Marrocos) a Dakar (Senegal), num total de 6.500 quilómetros, divididos em 12 etapas.