Se o treinador que fui no início da minha carreira perguntasse ao treinador que sou hoje, quatorze anos após esse começo, o que mudou na minha perceção e prognóstico de potencial de um jovem jogador, eu responderia prontamente: A importância que atribuo atualmente às
competências psicológicas e personalidade.

Indicadores a ter em consideração quando avaliamos o potencial de um jovem jogador

Desde o início, sempre tive um interesse genuíno em tentar fazer o prognóstico sobre qual a posição, o nível competitivo e de qualidade que um jogador poderia atingir no escalão sénior. Claro, que isso está dependente de inúmeros fatores e quanto mais novos são os jogadores, maior é a margem de erro de qualquer prognóstico. Mas com o passar dos anos, tornou-se para mim, evidente e factual, que apesar da percentagem de acerto neste exercício de prognóstico variar bastante entre os diferentes intervenientes que trabalham diretamente no futebol.

Refiro-me a treinadores, coordenadores, diretores, recrutadores e agentes. Algumas dessas pessoas acertam muito mais do que outras e por isso, talvez faça sentido pensar que devem existir alguns pressupostos lógicos e racionais que podem ser tidos em conta neste processo. Contrastando com meros fatores aleatórios, de sorte e azar (que também existem, sem dúvida, como traumas grandes de vida, abandono precoce da modalidade ou lesões graves e incapacitantes, como forma de exemplo).

Um fator que apesar de não ser totalmente determinante por si só, mas que tem grande impacto na distinção do nível de acerto do prognóstico é o número e a qualidade de referências que temos de jogadores que observámos e/ou treinámos em idades mais jovens e depois os acompanhamos mais tarde em contextos seniores. A comparação e referência normativa tem sempre alguma relevância e quanto a isso não há muito a fazer, porque só o tempo e a experiência profissional reflexiva, vão ajudar a aprimorar essa “pontaria”.

Numa fase inicial da minha carreira, para identificar o potencial de um jogador, dava maior importância ao talento técnico-tático, sendo essas as características que saltam mais à vista num jogo infantojuvenil, tais como a tomada de decisão, a criatividade e recursos técnicos. Com a experiência de treino, comecei a perceber a importância que as questões maturacionais tinham no rendimento dos jogadores (principalmente nos escalões de sub13, sub14 e sub15) e esse fator começou a entrar na equação da avaliação do potencial.

Um pouco mais tarde, comecei a observar e a refletir sobre o grande impacto que as questões físicas (ao nível do perfil e das capacidades atléticas) tinham nos escalões mais próximos das etapas de rendimento. Comecei a atribuir grande importância à velocidade de decisão/execução e à intensidade para prever o possível “transfer” para o futebol sénior de determinados jogadores menos dotados nos atributos físicos.

A verdade é que apenas quando os jogadores que treinei atingiram os patamares seniores pude constatar esta realidade: Nem sempre os jogadores mais talentosos e diferenciados do ponto de vista técnico-tático que treinei ou que vi jogar na formação, chegaram até agora a patamares profissionais ou de elite.

A importância das competências psicológicas e personalidade

Por sua vez, surgem dois pontos de reflexão que se unem: A maioria dos jogadores mais talentosos (nos planos técnico-tático-físico) que não se encontram nesses patamares, apresentavam grandes lacunas ao nível das suas competências psicológicas e/ou personalidade. Por sua vez, vários jogadores menos talentosos que treinei (na versão mais tradicional de talento) e que se encontram em patamares profissionais, eram realmente diferenciados ao nível da sua personalidade e das suas competências psicológicas.

Estes casos, tinham em comum características como a disciplina, a resiliência, o foco, o empenho, a competitividade e a vontade de serem melhores. Se eu acho que é possível ser jogador só com competências psicológicas desenvolvidas? Claro que não. Assim como, existem artistas de circo e freestylers que controlam a bola como ninguém, mas não são atletas profissionais.

Contudo, atualmente acho mesmo que é um fator de talento determinante, para prever possíveis consequências de carreira. Sendo que, muitas vezes, não se trata só de ser ou não jogador profissional, mas sim, se os jogadores conseguem alcançar as potenciais melhores versões de si mesmos, sem desenvolverem essa vertente de talento. Penso mesmo, que atualmente não é possível.

Provavelmente na história do futebol, sempre existiram jogadores que não sendo tão talentosos, fizeram carreira pelas características da sua personalidade e competências psicológicas. Assim como, sempre existiram casos de jogadores que se perderam, ou de jogadores que poderiam ter chegado a patamares superiores se tivessem outro nível de talento psicológico.

Porém, creio que nos dias de hoje, esta problemática atingiu outra dimensão. Penso que, atualmente seja impossível que um jogador tenha de forma constante, um elevado rendimento ao mais alto nível, sem ter bons hábitos de treino, alimentação e repouso. O tempo das “estrelas” do futebol que brilhavam nos campos, enquanto viviam uma vida pessoal pouco saudável e repleta de excessos, acabou.

O futebol está cada vez mais exigente e complexo do ponto de vista tático e estratégico, sendo que é exigido a quase todos os jogadores do mundo que defendam com a mesma intensidade e rigor de quando atacam. Ao mesmo tempo, o volume competitivo por época e as distâncias percorridas a alta intensidade por jogo, têm atingido valores recorde na história desta modalidade.

Hoje em dia, a ciência e a tecnologia de ponta fazem parte da preparação diária das equipas profissionais e cada vez mais parâmetros fisiológicos são medidos e analisados, com vista à otimização de rendimento individual e coletivo. Há controlo GPS no treino e nos jogos, os jogadores são pesados diariamente, em muitos contextos já existe monotorização do sono dos atletas, as refeições são selecionadas por nutricionistas, existem treinos extra de desenvolvimento individual, sessões de vídeo, trabalho de prevenção de lesões, treino de força, etc.

Sendo que, apenas mencionei os serviços oferecidos pelos clubes, porque cada vez mais, a eles se juntam os serviços de otimização de performance privados. O estereótipo antigo do jogador que treinava de manhã e tinha as tardes livres, já não faz sentido. Um atleta tem de estar preparado para fazer muitas coisas que não são prazerosas, mas que podem maximizar a sua performance.

Com tanta exigência, controlo e oferta, inevitavelmente nos dias de hoje, quem não tiver disciplina, trabalho, resiliência, paixão, ambição, motivação, vai perdendo o “comboio”. Assim como, a personalidade e os valores do jogador vão gerar-lhe mais ou menos oportunidades. Não
é legitimo que, entre dois jogadores com níveis semelhantes de rendimento e de talento, o treinador escolha para fazer parte do plantel aquele que treina com maior rigor e foco, que respeita a condição de titular e suplente, que tem hábitos corretos e que ajuda à promoção de um bom ambiente no grupo?

Acredito que estas competências podem e devem ser treinadas e desenvolvida desde tenra idade. Na gestão do treino e dos jogos, estes fatores devem ser tidos em conta pelos treinadores.

Os objetivos de desenvolvimento psicológico e comportamental devem estar presentes quer na construção dos exercícios, nos feedbacks do treinador, na gestão do treino, em reuniões individuais e pelo exemplo dado por quem os lidera, em cada dia. Do ponto de vista mais estrutural, os clubes devem ter muito bem definido que tipo de jogador querem formar e que tipo de condutas devem permitir e fomentar.

Deve existir um investimento cada vez maior nos seus departamentos de psicologia e apoio social, por forma a que se verifique um acompanhamento próximo e individual, aos jogadores e às famílias. Toquei nelas por último, apesar de terem um poder sem igual, como veículos de transmissão de bons valores e de boas práticas, sendo estas, cada vez mais determinantes para que um jogador possa atingir patamares profissionais de excelência.