Já ouviu falar de Augusto Mata? Provavelmente o nome não lhe dirá grande coisa. Mas se lhe dissermos que foi um técnico que construiu um percurso absolutamente ímpar no futebol português, depois de quase três décadas a orientar um só clube, talvez isso lhe refresque memória. Mas não foram os títulos que deram fama a Augusto Mata, mas sim a longevidade. Foram 29 anos a orientar o Infesta, entre 1973 e 2003. Pelo meio desse percurso ainda orientou o Ermesinde, em 82/83.

No verão de 2013, o decano dos treinadores guardou o fato de treino e abandonou a carreira aos 75 anos, num exemplo de durabilidade pouco visto, no futebol português e não só.

Pela Europa fora conhecemos os casos, raros, de Alex Ferguson e Arsène Wenger. Exemplos de treinadores que resistiram à passagem do tempo, convivendo com várias gerações de dirigentes e jogadores. Menos conhecido é o nome de McFall, o eterno treinador que orientou o Portdown durante 30 anos. Saiu no início de 2016 do comando técnico do clube norte-irlandês.

Alex Ferguson
Alex Ferguson Alex Ferguson, antigo treinador do United, foi um exemplo de longevidade no futebol mundial créditos: © 2007

A moda da ‘chicotada’ 

Casos como os que mencionámos há pouco tendem a ser cada vez mais uma excepção. Recortes de jornais saídos do 'Guiness', mas que nunca serão igualados, ou sequer batidos. Se puxarmos o filme um ano atrás, por esta altura, em novembro já tinham sido demitidos cinco treinadores na I Liga: Miguel Leal (Boavista), Ricardo Soares (Aves), Pedro Emanuel (Estoril), Vasco Seabra (Paços de Ferreira) e Manuel Machado (Moreirense). Tudo em pouco mais de três meses de competição.

Uma temporada depois e o cenário é razoavelmente mais animador. Uma demissão ao cabo de nove jornadas, depois da saída de José Peseiro do comando técnico do Sporting. Dado este decréscimo aparentemente animador no número de 'chicotadas' será que podemos falar numa mudança de paradigma? É difícil responder a essa questão, já que os próprios adeptos se habituaram à ideia de que um treinador está apenas de passagem. Primeiros vêm os assobios e depois os lenços brancos em sinal de despedida. Os timoneiros são vistos como uma espécie de pastilha elástica que quando perde o sabor, se deita fora.

José Pereira, presidente da Associação Nacional de Treinadores de Futebol, aponta a deterioração da condição económica dos clubes como uma das razões para a diminuição de despedimentos na I Liga: "Se despedirem têm que pagar indemnizações aos treinadores e nem todos têm essa capacidade".

Conversámos com André Villas-Boas na Web Summit e o técnico tem uma visão muito própria sobre o tema das chicotadas psicológicas. Com experiência a treinar em Portugal e no estrangeiro, Villas-Boas considera que os clubes têm que perceber se querem um treinador para o imediato ou para um projeto a médio e a longo prazo.

Se os clubes pretenderem resultados imediatos, os treinadores assinam por um ano e não implementam visões para o futuro

"Se os clubes pretenderem resultados imediatos, os treinadores assinam por um ano e não implementam visões para o futuro. Se pretendem uma visão para o futuro, de dois, três anos é preciso sustentabilidade para aguentar quando as coisas correm mal. Passa sobretudo pela visão dos presidentes dos clubes", embora o ex-treinador do FC Porto distinga a realidade portuguesa da dos grandes campeonatos, onde o poder dos sócios sobre as organizações, sobretudo nos clubes 'grandes' ainda tem um impacto forte naquilo que são as decisões impulsivas dos presidentes.

André Villas-Boas na Web Summit
André Villas-Boas na Web Summit André Villas-Boas na Web Summit créditos: © 2018 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

"Nos outros países e nas grandes ligas europeias os presidentes tornaram-se homens de negócios com dinheiro envolvido no futebol e se calhar menos pessoas que representam os sócios. Os nossos ainda têm presidentes eleitos pelos sócios. Só que são muitas vezes pressionados senão são eles os corridos".

A paciência não abunda entre as turbas frequentadores de estádios, de sofás e cafés espalhados pelo país fora. Face à ausência de vitórias, o adepto exige a cabeça do treinador numa bandeja, tal como na antiguidade, um espectador num circo romano demanda a morte de gladiador derrotado na arena. O treinador é como um iogurte, tem um prazo de validade que depende do sabor dos resultados desportivos.

Sabemos que um treinador não vai estar mais de três anos ou quatro num clube, sabemos que isso é uma excepção em Portugal. Esta é a realidade. Se não forem os treinadores a sair, são eles [os dirigentes] despedidos”, atirou José Pereira.

A falta de paciência dos adeptos para com as suas equipas, face à ausência de resultados, acaba também por ser um reflexo da própria sociedade em que vivemos, que procura o perfeccionismo no imediato seja em que área for.

Jorge Silvério, especialista em Psicologia no Desporto, deu-nos um exemplo simples: "Quando estamos na fila da caixa multibanco, se a pessoa à nossa frente demora muito, já ficamos impacientes. E tudo isto é fruto de alterações na nossa sociedade que que acaba por se refletir no futebol".

"Se nós tivéssemos 18 Mourinhos a treinar no campeonato português haveria um que iria ser campeão e outros dois que iriam descer de divisão"

E a realidade é só uma:  Vão sempre existir vencedores e vencidos. "Por muitas alterações que se façam há uma equipa que vai ser campeã e outras duas que vão descer de divisão. Se nós tivéssemos 18 Mourinhos a treinar no campeonato português haveria um que iria ser campeão e outros dois que iriam descer de divisão. Ninguém pode fugir a essa realidade", afiançou o presidente da Associação Nacional de Treinadores de Futebol.

O 'chicote' de curta duração

A simples troca de 'general' não tem o condão de esvaziar a maré de crise. "As coisas não mudam com um estalar de dedos ou com uma varinha de mágica”, refere Jorge Silvério. Num primeiro momento, o impacto da mudança até poderá levantar o moral das tropas.

Tonel
Tonel Tonel treinou, em 2017/2018, o União de Lamas

"A mudança mexe sempre com o psicológico de um jogador e os jogadores que não jogam sentem que podem jogar. Há um refrescar de motivações, com o tempo se verá se será benéfico ou não", sustenta António Leonel Sousa, mais conhecido como Tonel e antigo jogador do Sporting.

Porém, esse primeiro balão de expetativas poderá esvaziar-se rapidamente, basta para isso que os resultados não apareçam. Mas uma equipa não se faz de uma hora para a outra, tal e qual como uma refeição em casa dos avós, que leva tempo para ser cozinhada.

Drº Jorge Silvério, psicólogo de desporto
Drº Jorge Silvério, psicólogo de desporto Drº Jorge Silvério, psicólogo de desporto créditos: FPF

"Não é em duas ou três jornadas que se consegue perceber se o trabalho está a ser bem feito ou não. É preciso mais tempo para os treinadores implementarem os seus métodos e as suas estratégias e fazer com isso se traduza em resultados", relembra Jorge Silvério.

"Há clubes que mudam duas e três vezes de treinadores numa época e os resultados é o que tem visto"

"Há clubes que mudam duas e três vezes de treinadores e os resultados é o que se tem visto. Há uma maior consciencialização no sentido de perceber e de aguardar pelo trabalho desenvolvido", sustenta José Pereira.

Por vezes a racionalidade é a maior das virtudes. O treinador Álvaro Magalhães recordou o exemplo de Jorge Jesus que acabou ''seguro' por Luís Felipe Vieira no cargo de treinador do Benfica, depois de ter perdido o campeonato, de forma dramática, em 2012/2013 frente ao FC Porto.

"O presidente Luís Filipe Vieira acabou por ter paciência e aguentou Jorge Jesus. Deu força para que no ano seguinte o Benfica fosse campeão".

O futebol não se aprende em dois dias

Com as fornadas de treinadores saídos das Universidades, a importância do 'Mestre' que se formou nos relvados, antes de o ser, tem perdido a pouco e pouco predominância no futebol nacional.

Domingos Paciência, antigo jogador e treinador de futebol é apologista de uma mescla entre o  conhecimento e de empirismo como chave para o sucesso das equipas de futebol.

"Muitos presidentes têm esse receio, que as pessoas que estão no futebol lhes possam roubar o protagonismo. Não querem pessoas com demasiada força no futebol, como ex-jogadores e isso leva a que fiquem mais frágeis. O mundo do futebol não é em dois dias que se aprende. O grande sucesso de uma equipa de futebol está dentro do balneário. O balneário são 25 ou 30 jogadores, as pessoas não sabem o que é lidar com 25 ou 30 personalidades e são essas personalidades que ditam o sucesso de uma equipa de futebol", refere.

Essa opinião é partilhada por Tonel que considera que um passado como futebolista, "sem ser fundamental pode ser benéfico, já que os treinadores sabem o que os jogadores querem ouvir".

A desafiante tarefa da escolha de um treinador

Os critérios que levam à escolha de um treinador são variadíssimos, "mas os adeptos têm tendência em avaliar os treinadores de forma leviana, através de critérios como o número de títulos conquistados". "Qual é o método de trabalho? Qual é o treinador que pretendo contratar em função do modelo de jogo? O que pretendo que esse treinador faça no meu clube? Potencia a formação? Trabalha com jogadores feitos? São dúvidas e perguntas que os gestores devem fazer antes de avançarem para a contratação de um treinador”, esclarece Jorge Silvério.

Quanto às chicotadas, nem sempre são uma reação dos dirigentes ao momento conturbado a nível desportivo. Por vezes resultam de elaborados esquemas orquestrados por empresários que pretendem colocar os seus jogadores e desta forma controlar os clubes.

Álvaro Magalhães revelou-nos um caso, da altura em que orientou o Gil Vicente em 2016/2017. Uma mensagem enviada a António Fiuza por um empresário prometia treinador e jogadores de borla, em caso de saída de Álvaro Magalhães.

"Em 2016/2017, houve um dirigente que enviou a mensagem ao meu presidente da altura, a dizer que se as coisas não corressem bem ia ter um treinador e jogadores de borla"

"Em 2016/2017, houve um dirigente que enviou a mensagem ao meu presidente da altura, a dizer que se coisas não corressem bem ia ter um treinador e jogadores de borla…O presidente como era um homem sério mostrou-me a mensagem e depois eu disse-lhe:  'Foi por causa destas coisas que desceu de divisão e apostou mal'. Faltava meia hora para começar o jogo e eu nem me preocupei. Se ele fosse influenciável aceitava logo essa situação".

Passar de herói a vilão no meio de uma concorrência feroz

Numa profissão em que facilmente se passa de herói a vilão, no mundo dos 'misteres' nem sempre a camaradagem faz parte do dia-a-dia. A ambição pode turvar a visão de quem quer chegar ao topo da escada.

“É natural que hajam treinadores com ambições tão exageradas que se tornam egoístas. Quem está a começar é egoísta na forma de pensar. Quando se chega a meio da carreira, é natural que haja uma experiência diferente. Há aqueles que querem aproveitar uma oportunidade no futebol e não têm respeito. A cegueira é tanta…Mas o treinador vive dos resultados e não consegue estar sempre a ganhar", diz Domingos. Álvaro Magalhães vai mais longe. "O maior inimigo do treinador é o próprio treinador". "Quando vejo jogos vou para observar jogadores e não vou ver os jogos para falar com os dirigentes”, acrescentou.

Com a continuidade a ser posta em causa, jornada após jornada, ao treinador são exigidas determinadas características de personalidade que lhes permita resistir a uma profissão que proporciona momentos de rara emoção, mas também tantos amargos de boca.

"A tenacidade, a capacidade de lidar com situações difíceis e com a instabilidade permanente são características fundamentais para se exercer a profissão de treinador. Nem toda a gente consegue ter características de personalidade para conseguir viver com isso. Tem que se ser um excelente líder, uma pessoa que motive e seja capaz de transmitir confiança ao grupo de trabalho", explica o psicólogo Jorge Silvério, apelando a uma maior racionalidade no dirigismo desportivo.

“Passa-se de bestial a besta em muito pouco tempo. Basta um golo, um resultado bom, ou menos bom para tudo isto mudar. Quem dirige um clube deve ser o mais racional possível a estas emoções que fazem parte do dia a dia. Devem-se tomar decisões bem formadas".

Dar a volta às chicotadas

Há algo quase inevitável que paira como um nuvem sobre a cabeça dos treinadores: O risco constante do despedimento.

"O treinador não deixa de ser aquela pessoa responsável por tomar a última decisão e aquele sobre quem as culpas vão cair, quer as coisas corram bem ou mal", diz.

“As situações de despedimento são sempre um momento triste na vida de um treinador. Todos passamos por isso e percebemos perfeitamente sobre o que é estar nessa situação”, refere Domingos Paciência, que ainda assim retira algo de positivo da chamada 'dança de treinadores'.

"O despedimento de uns abre as portas para outros".

Álvaro Magalhães com Giovanni Trapattoni na época 2004/2005.
Álvaro Magalhães com Giovanni Trapattoni na época 2004/2005. Álvaro Magalhães com Giovanni Trapattoni na época 2004/2005. • Lusa créditos: Lusa

“Podemos treinar muito bem, mas se bola vai ao poste e não entra..."

Mas há algo que nem a melhor organização desportiva nem o melhor treinador pode contornar. A chamada 'estrelinha'.  Álvaro Magalhães relembra que se “pode treinar muito bem, mas se a bola vai ao poste e não entra...".

Sem ovos não há omoletes

'Sem ovos não há omeletes', essa é uma verdade de ‘La Palice’ que assenta que nem uma luva no mundo do futebol. E por muito bem que se treine, "sem boa matéria prima vão haver muitas chicotadas. E é mau também para o clube que acaba por pagar muitas indemnizações". Álvaro Magalhães recorda mesmo uma frase de Giovanni Trapattoni, dos tempos em que era adjunto do italiano. “Se tivermos bons jogadores estamos mais perto do sucesso. Se não tivermos bons jogadores dificilmente seremos campeões.”

É mais fácil ser despedido em Portugal

Se é mais fácil ser despedido em Portugal? Domingos Paciência acredita que sim, já que culturalmente "o português não é tolerante em relação ao futuro". "Somos um povo que vive demasiado o futebol. Mas temos tido demasiados casos de corrupção. Temos essa imagem que não é boa. É uma cultura que nós criámos, que gostaríamos de ver mudada, mas para quando não sabemos", frisa.

Somos um povo que vive demasiado o futebol. Mas temos tido demasiados casos de corrupção. Temos essa imagem que não é boa. É uma cultura que nós criámos, que gostaríamos de ver mudada, mas para quando não sabemos

Mesmo com todas os pedregulhos que se atravessam pelo caminho, Domingos Paciência e Álvaro Magalhães não desistem de tentar fazer o que mais gostam. O futebol calejou-lhes os dedos e a escolha de projetos não se faz a olho.

"Não estou a trabalhar por opção. Não tenho aceitado os convites porque não são campeonatos em que me veja a treinar. Penso algo diferente para a minha carreira e espero por um projeto que me motive. Quero procurar não errar e ter um projeto que me possa dar alguma consistência. Sabemos que no futebol quando pensamos que estamos a dar um passo, damos outro dois para trás", referiu o antigo avançado.

Com projetos em cima da mesa, Álvaro Magalhães expressou a vontade de trabalhar em Portugal, mas lá nos adianta que por vezes há obstáculos invisíveis que cortam as asas a quem planeia fazer voltar ao ativo e fazer aquilo que mais gosta.  "Tenho condições para trabalhar em Portugal. Tive um convite para o estrangeiro, tentei negociar um contrato e houve alguém em Portugal que 'tapou' a minha entrada no estrangeiro", diz.