Uma história que podia ter acabado muito mal, mas que ainda pode ter um final feliz. Chris Kirkland, antigo guarda-redes do Liverpool e com todo um percurso no futebol inglês, contou como o vício em analgésicos colocou em causa a sua vida pessoal e profissional.

"Pensei que ia morrer. Eu não sabia quem era. Eu não me conseguia lembrar onde era a minha casa. Só cheguei a casa porque coloquei 'home' na navegação por satélite e já estava predefinido, caso contrário não sei onde teria ido parar", explicou Kirkland numa extensa entrevista ao jornal britânico 'The Guardian' a respeito de um dos episódios decorrentes do seu vício em analgésicos.

O início da 'dor'

Tudo começou no verão de 2012 quando o jogador se preparava para arrancar mais uma época ao serviço do Wigan Athletic, mas uma grave lesão nas costas - que comprometia a continuidade do contrato - levou a que recorresse aos primeiros analgésicos. A partir daí, foi um caminho sem retorno.

"Não devemos tomar mais do que 400mg por dia de tramadols [nome de um medicamento analgésico] e eu estava a tomar 2.500mg por dia”, confessou.

A vida de Kirkland já não era a mesma e, semana após semana, não havia maneira de terminar o vício. "Estava a alucinar em casa. Tinha palpitações no coração, estava dentro e fora da consciência. Isso fez-me parar por alguns dias porque pensei: 'Vou me matar aqui'. Mas então o vício entrou em ação, o nosso corpo anseia por isso, sentimos as dores e sabemos que se tomarmos [os analgésicos], elas vão embora. Eu não queria falar com as pessoas e isso foi muito difícil para Leeona e Lucy na casa. Sem elas eu não estaria aqui", explicou o jogador inglês também a respeito do sofrimento que causou à família.

Mas não eram só os mais chegados que sofriam. A vida social na generalidade também ficava comprometida. "Houve momentos em que eu deveria estar em lugares e eu não estava no estado de espírito certo ou tomava muitos comprimidos e eu tinha que ligar e dizer 'tive um furo' ou outras desculpas e não virar para cima, o que é terrível", acrescentou.

Se tudo isto já era mau, a situação só tinha tendência a piorar e a queda no abismo chegou quando assinou pelo Bury e começou a pré-temporada longe da família. A solidão só serviu para acentuar aquele que já era um problema crónico. Foi aí que Kirkland pousou as luvas e pediu ajuda à mulher.

Mas o caminho da dependência continuava longo. Se terminassem os medicamentos, inventava-se logo uma solução. "Eu ligava para os médicos: 'perdi [os analgésicos], preciso de mais", contou.

O suporte familiar tornava-se então fundamental e foi a própria mulher a dizer ao médico para não lhe receitar os medicamentos. Mas a verdade é que a única fonte para a 'droga' de Kirkland não vinha desses meios.

"O carteiro sabe que não me deve dar nenhuma carta ou pacote, porque eu estava a comprar pela internet. Agora ele sabe que nunca me deve dar nada, então sempre vai para Leeona. Colocamos as coisas no lugar para evitar que isso aconteça novamente", explicou.

Se tudo já parecia mau, ainda poderia ter tido consequências mais graves. "[Anteriormente] eu pesquisava no Google 'analgésicos disponíveis'... [são] todos sites ilegais, não são?  e estariam aqui dentro de dois ou três dias. Diz-se para não tirar da internet porque nunca se sabe o que há neles e eu descobri isso em primeira mão. Deus sabe o que estava nos que eu tirei, mas certamente não era o que deveria ser e quase nos matou", confessou.

Do momento de reconciliação ao regresso do abismo

Depois da passagem pelo Bury, em 2016/17, Chris Kirkland parecia estar a reconciliar-se com a vida. Pediu ajuda à Associação de Futebolistas Profissionais e esperava-se que os analgésicos fossem uma palavra a sair definitivamente do seu dicionário. Mas em 2019, tudo voltou ao mesmo.

O ex-guarda-redes do Liverpool que chegou a deter o recorde de não sofrer golos na estreia na Liga dos Campeões decidiu recorrer à clínica de reabilitação 'Parkland Place' no País de Gales, mas o contacto com outras histórias de dependência (álcool, drogas e jogo) levava-o a pensar: "Não estou tão mal, o que estou a fazer aqui?".

O ponto final definitivo parece ter acontecido em fevereiro deste ano quando Kirkland decidiu dizer basta. "Fiquei violentamente doente. Dormi cerca de 18 horas. Acordei, tirei os comprimidos do carro e atirei diretamente para a sanita", revelou.

Tudo está bem... quando acaba bem

Era o início de um longo período de recuperação, em que a dor tinha de ser colmatada com a resistência em tomar um analgésico. O ato de  reconhecer que tinha um problema também se revelava fundamental.

"Durante uma semana mal me consegui mexer. Eu estava a suar, a tremer, Leeona tinha que verificar se eu ainda estava a respirar corretamente. Foi uma época horrível. Ainda me sinto como se fosse uma fraude no momento, porque as pessoas não sabem a verdade. Acho que não posso ficar em recuperação – porque sempre serei um viciado, simples assim – a menos que tudo esteja lá fora. Agora as pessoas sabem", referiu.

Kirkland passou de alguém que necessitava de ajuda para alguém pronto a ajudar os outros. Tornou-se colaborador de uma instituição de caridade e juntou-se a um grupo de saúde mental. Ninguém melhor que uma pessoa que já tinha passado por um longo período depressivo para poder ajudar pessoas com esse problema.

Atualmente, é capaz de reconhecer que os analgésicos são apenas um 'alívio artificial' da dor e que foram mais dolorosos que a dor de costas em si.

Não teve oportunidade de se tornar uma referência dentro das quatro linhas, mas é um pilar de superação para todos os futebolistas - que se possam deixar levar pelo caminho mais fácil - e sobretudo para qualquer ser humano.

A defesa de uma vida parece estar feita, mas Kirkland não vai querer ficar por aqui. Na entrevista ao jornal britânico, o antigo guarda-redes de 41 anos deixou uma mensagem para todos lerem e ouvirem. "Se estás a lutar contra qualquer tipo de vício, não podes fazer isso sozinho; é impossível. Estás a brincar contigo mesmo. Sê corajoso, pede ajuda e quanto mais rápido conseguires, melhor tu serás", finalizou.