O ex-árbitro Pedro Henriques defendeu hoje que a retoma à porta fechada da I Liga de futebol pode beneficiar uma “tomada de decisão mais assertiva” dos juízes, embora antecipe “dificuldades de concentração” num “ambiente estranho”.
“Poderão não cair numa decisão que eventualmente seria diferente com o público a suportar a reclamação dos jogadores. Há quem veja a ausência de gritos, assobios e apupos como uma vantagem, no sentido de o árbitro estar mais descontraído. Mas é provável que a descontração surja pela ausência dessa pressão adicional, o que meu ponto de vista é mau”, avaliou à agência Lusa o antigo juiz da associação de Lisboa.
Pedro Henriques concorda com as impressões extraídas em maio pelos investigadores James Riade, Carl Singleton e Dominik Schreyer, numa amostra de 161 jogos sem adeptos ao longo dos últimos 18 anos, que atesta a diminuição de triunfos caseiros (de 45,8 para 36%) e de cartões mostrados às equipas visitantes (média de 0,5 por jogo).
“Durante a minha tese de mestrado fizemos uma experiência engraçada: colocámos os árbitros a rever lances com e sem barulho e pedimos para tomarem decisões. Contas feitas, erraram mais vezes nas situações com som ambiente e, no limiar da dúvida, tendiam mais a decidir em favor do clube cujos adeptos pressionavam e gritavam mais”, recordou.
Reconhecendo que o “subconsciente” dos ‘homens do apito’ nem sempre se desliga do ambiente externo às quatro linhas, o comentador desportivo, de 54 anos, ressalvou que esse “efeito psicológico” é treinado “durante o microciclo semanal e ao longo das épocas”, nada tem a ver com a desonestidade e é menos evidente em função da experiência.
“Tirando o núcleo duro, temos árbitros com muita qualidade e pouca maturidade, até inclusivamente de vida. São muito melhores física e tecnicamente e têm maior formação em todos os aspetos, mas falta-lhes experiência interpessoal. Isso é muito importante e o grau de dificuldade em lidar com este contexto reflete-se nestes momentos”, apontou.
Dos 97 encontros dirigidos na I Liga entre 2002 e 2010, Pedro Henriques nunca encarou um estádio sem adeptos, apesar de ter memorizado uma partida entre União de Leiria e Gil Vicente (3-0), em outubro de 2005, disputada no Estádio Dr. Magalhães Pessoa, que rondava os 24 mil lugares sentados e foi construído de raiz para albergar o Euro2004.
“O tempo não estava grande coisa e, pela movimentação em torno do estádio, calculámos que o espetáculo não fosse muito agradável. Fomos mentalmente preparados e, de repente, anunciam uma assistência de 290 pessoas. Todos falam no barulho do silêncio e é muito incomodativo ouvir-se um indivíduo a descascar pevides na bancada”, contou.
A “mudança drástica no som ambiente” marcará o regresso da I Liga, que vai ser reatada sob fortes restrições na quarta-feira, com o embate entre Portimonense e Gil Vicente, o primeiro dos 90 jogos das últimas 10 jornadas, que decorrem até 26 de julho e irão estimular “reajustes” na preparação física e psicológica dos 72 agentes da arbitragem.
“Não será difícil, porque os árbitros preparam os jogos ao mais alto nível, mas acaba por ser uma sensação estranha. Está a ver como será decidir um título sem barulho na bancada? Faz lembrar aqueles jogos de pré-época, em que os ‘grandes’ vão estagiar para um sítio, defrontar uma equipa local e parece que é tudo a fingir e a brincar”, comparou.
Defensor da retoma do campeonato, que garante a “sobrevivência financeira” do setor, Pedro Henriques apela aos antigos internacionais João Ferreira, Bertino Miranda ou Lucílio Batista, que integram o Conselho de Arbitragem (CA) da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), uma eventual partilha de vivências à porta fechada com o atual quadro de juízes.
“Espero que expliquem o contraste em causa, que será uma novidade para a maioria. O melhor árbitro é aquele que cresce na adversidade e toma boas decisões onde e contra quem for. Se, de repente, lhe tiram a pressão e o ambiente criado pelo barulho, fatores com os quais se habituou a tomaram decisões, obviamente a concentração sai afetada”, insistiu.
Para “passar uma imagem à sociedade” de que “temos de vencer o vírus do medo”, o tenente-coronel do exército sublinhou a “alteração bastante significativa” nas rotinas de 21 árbitros C1 (categoria principal), 10 juízes C2 Elite, 38 assistentes e três especialistas de videoárbitro, todos envolvidos em sucessivos testes de despistagem à covid-19.
“Mal se levantam tiram a temperatura, vêm se têm sintomas e enviam os dados ao CA. Vão e vêm sozinhos do treino, sempre equipados e sem passarem pelos balneários. Só podem estar seis elementos por cada relvado dos centros de treino de Lisboa e Porto. Têm averiguado o estado físico e o grande problema é tentar controlar lesões”, assumiu.
Os quartetos de arbitragem vão ser transportados para os jogos numa “carrinha de nove lugares, com o condutor separado por um vidro acrílico”, enquanto os juízes obrigados a viagens longas pernoitarão em quartos individuais e outros ficarão longe da família até ao final da I Liga, para evitar um vírus contraído por Fábio Veríssimo, José Rodrigues e José Luzia.
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