A instrumentalização de Eusébio pelo Estado Novo para 'vender' um Portugal imperial plurirracial não impediu que fizesse uma transição fácil para a democracia , porque não participou ativamente no regime, foi protegido pela sua simpatia e pela "felicidade" que produziu.
"A instrumentalização do Eusébio não implica propriamente que ele tenha sido um participante muito ativo nessa instrumentalização. É injusto dizer-se que ele teve uma participação ativa", explicou à Lusa o investigador do Instituto de Ciências Sociais Nuno Domingos.
Isto apesar da sua participação em campanhas do Movimento Nacional Feminino, apelos aos soldados na Guerra Colonial, e a sua "incorporação militar muito mediatizada", lembrou.
Doutorado em antropologia social pela School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres (SOAS), com a tese "Football in Colonial Lourenço Marques, Bodily Practices and Social Rituals", Nuno Domingos sublinha também algo que é "paradoxal e perverso", o não reconhecimento "capacidades políticas" de Eusébio.
"Há uma coisa paradoxal, perversa, que é as pessoas, ao reconhecê-lo como um intérprete do futebol, não lhe reconhecerem propriamente capacidades políticas. Depois do 25 de Abril não reconhecem que ele tenha sido ativo numa qualquer política de branqueamento do regime", afirmou.
Além da "simpatia" que gerava e que "o protegeu muito", Nuno Domingos sublinhou que a transição suave para o regime democrático de uma figura usada pela ditadura é indissociável de o futebol ser "uma paixão nacional" e de Eusébio ter pertencido ao "clube eventualmente mais popular de Portugal", o Benfica.
Nuno Domingos explicou que, após o 25 de Abril, as críticas ao futebol, enquanto desporto espetáculo gerador de alienação, estenderam-se de uma certa intelectualidade até às páginas dos jornais desportivos, mas desvaneceram-se rapidamente.
"O Eusébio tornou-se muito importante numa espécie de economia da felicidade que o futebol dá. Essa alegria enorme ultrapassa fronteiras", afirmou, relacionando essa ideia igualmente com a questão étnica.
Nuno Domingos não acredita que a figura de Eusébio pudesse ter contribuído para um Portugal menos racista.
Apesar de reconhecer que isso é "muito difícil de medir", constituindo um problema de investigação que está por resolver, o investigador avançou que pessoas com o grau de popularidade de Eusébio "quase perdem as características étnicas".
Contudo, Nuno Domingos sublinha a importância e "efeito simbólico" do facto de Eusébio ser africano e poder vir a ser a primeira pessoa com essa origem a ser sepultada no Panteão Nacional.
"Isto prova a força da cultura popular. Isto era impensável, o panteão era muito mais um sítio para os intelectuais e pessoas com outro tipo de base intelectual e esta alteração é muito interessante, de repente temos uma mulher fadista [Amália Rodrigues] e um jogador de futebol africano", considerou.
Eusébio é um produto da cultura popular, "muito televisionado e fotografado", que surge numa época de "expansão dos meios de comunicação social", apontou Nuno Domingos, referindo que "um jogador tão brilhante, 20 anos antes, não teria tido a mesma dimensão".
Muito mediatizado, o Mundial de Inglaterra de 1966 foi o "grande momento em que há uma utilização da figura como grande exemplo", de "construir uma narrativa plurirracial e de um Império plurirracial".
Ao arrepio dessa narrativa, Eusébio "vem de um contexto futebolístico em Moçambique que é segregado até 1959", com duas associações de futebol, "uma dos subúrbios, em que jogavam atletas negros africanos, e outra do centro da cidade, em que apenas alguns não brancos conseguiram entrar, muito poucos, quase todos membros de uma elite mestiça local".
"É um pouco contraditório e quase paradoxal que pudesse ser uma espécie de bandeira de um regime que se dizia plurirracial", considerou.
O facto é que o "sucesso do Eusébio é muito útil", apontou.
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