Apostas desportivas são uma realidade tão antiga como o próprio desporto de competição. Dizem os historiadores que já na Grécia Antiga era comum os espectadores apostarem entre si nos vencedores das várias provas dos Jogos Olímpicos. E no Império Romano apostava-se, por exemplo, no desfecho das Corridas de Bigas no Circo Máximo.

As apostas desportivas remontam, pois, a tempos imemoriais e acompanharam o evoluir dos tempos e do desporto, tornando-se no século XXI numa indústria de (muitos) milhões, com o crescimento exponencial das casas de apostas online. Portugal não foi exceção. A primeira licença legal para a "exploração de apostas desportivas à cota online" no nosso país foi atribuída em 2016 pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos do Turismo de Portugal (SRIJ). Atualmente são, ao todo, dez as licenças emitidas para esse tipo de apostas.

Mas, então e o que acontece quando não há desporto para apostar?

A pandemia da COVID-19 parou o Mundo. Com ele parou o desporto e, consequentemente, o mercado das apostas desportivas. Chegou a temer-se que as perdas chegassem aos 100 por cento em abril, depois de um decréscimo abrupto de 70 por cento logo nas últimas semanas de março.

"A previsão das perdas será mesmo de 100 por cento nos próximos meses. Investidores e operadores de outros países divulgaram já projeções semelhantes, o que é lógico, se olharmos para o enorme número de eventos já cancelados ou adiados", sublinhou a Associação Portuguesa de Apostas e Jogos Online (APAJO), entidade fundada em 2018, que representa os operadores de jogos de apostas online em Portugal.

Felizmente não chegou a tanto e o retomar gradual das competições traz uma espécie de luz ao fundo do túnel, com o regresso, por exemplo, da Bundesliga, já este fim de semana.

O SAPO Desporto falou com algumas das principais casas de apostas desportivas com licença para operar em Portugal e com um apostador profissional, de forma a aferir o real impacto que a pandemia da COVID-19 - e a consequente suspensão de praticamente todas as competições desportivas a nível mundial - teve numa indústria que atravessava uma fase de crescimento no nosso país e que só no primeiro trimestre de 2020 atingiu uma receita bruta de 34,5 milhões de euros.

O panorama 'pré COVID-19'

"Estávamos a ter um crescimento consistente. O mercado das apostas desportivas online em Portugal é um mercado que só está regulado desde 2016 por isso é normal esse crescimento", salienta Miguel Domingues, Communication Manager da Betclic.pt.

Efetivamente, de acordo com o SRIJ, a receita bruta gerada pela atividade de jogos e apostas online ascendeu, no 1.º trimestre de 2020, a 69,8 milhões de euros, valor superior em mais de 4,3 milhões ao registado no trimestre anterior. Dessa soma, praticamente metade - 49,4 por cento - dizem respeito a apostas desportivas.

Evolução da Receita Bruta das Apostas Desportivas à Cota
Evolução da Receita Bruta das Apostas Desportivas à Cota em Portugal (Fonte: www.srij.turismodeportugal.pt)

Ao todo, os portugueses apostaram 1.109,9 milhões de euros nos primeiros três meses deste ano, somando o volume de apostas desportivas à cota com o de jogos de fortuna e azar. O valor mais elevado de sempre, representando uma subida de 50% em termos homólogos.

"Antes desta situação pandémica o mercado de apostas desportivas apresentava claros sinais de crescimento, em linha com os trimestres anteriores. Este crescimento era motivado pela entrada de novos operadores no mercado, que por consequência o faziam crescer", reforça Pedro Garcia, Head of Marketing da Bet.pt.

De repente, tudo mudou e as quebras atingiram os 90%

A partir da primeira semana de março, porém, o panorama iria mudar por completo. Mais e mais provas desportivas foram sendo suspensas e o mercado de apostas desportivas online foi dos que mais sofreu com isso, como recorda Tiago Pereira, do Placard.pt.

"De um dia para o outro estávamos em contagem decrescente para eventos que, sucessivamente, eram cancelados. Passámos de uma altura de grande actividade e decisões desportivas a decorrer para um grande vazio em eventos. Não tem sido fácil, pois a nossa oferta é exclusivamente de apostas desportivas. Tivemos uma quebra de actividade diária sem precedentes", lamenta o Director de Marketing daquela empresa.

Já para a Bet.pt, do ponto de vista de negócio o maior obstáculo foi mesmo a imediata suspensão de eventos desportivos desportivas, que veio até afetar competições previstas mais para a frente no ano, como o Campeonato da Europa de Futebol, para o qual as expetativas eram elevadas.

"De um dia para o outro deixas de ter futebol, Fórmula 1, Torneios de ténis, basquetebol. E essa realidade foi um enorme desafio.

"Tínhamos mercados abertos em diferentes modalidades desportivas e estávamos com grandes expetativas para eventos como o EURO 2020 ou a Copa América, que certamente iriam aumentar ainda mais o interesse por parte dos jogadores. De um dia para o outro deixas de ter futebol, Fórmula 1, Torneios de ténis, basquetebol. e essa realidade foi um enorme desafio", explica o Head of Marketing Pedro Garcia.

Miguel Domingues, da Betclic, diz que a determinado momento a situação da suspensão das várias competições se tornou "espectável e compreensível", reconhecendo que não se podia colocar em risco a saúde de ninguém. "Apesar do impacto no nosso negócio, o mais importante é a saúde dos jogadores e restantes intervenientes", sublinha.

Liga bielorrussa ajudou, mas pouco

Nem todo o desporto parou. Algumas (poucas) provas resistiram e foi possível apostar em jogos de futebol de campeonatos como os da Bielorrússia e da Nicarágua. Competições a que as casas de apostas a operar em Portugal tiveram de recorrer para manter a atividade durante a pandemia da COVID-19. Escasso, mas melhor do que nada...

"Em Março verificámos um decréscimo nas apostas desportivas na ordem dos 70-75% e em Abril foi de mais de 90%. E só não foi pior porque tivemos os campeonatos da Bielorrússia e Nicarágua, que não pararam", admite Miguel Domingues, da BetClic.

Na Bielorrússia a bola nunca parou de rolar
Na Bielorrússia a bola nunca parou de rolar créditos: AFP or licensors

Já Gonçalo Sousa, Head of Marketing da NossaAposta.pt, fala numa quebra quase total. "Ficámos reduzidos a cerca de 5 a 10% da base de apostadores. Claro que ter alguns jogos é melhor do que não ter nenhum, mas não ajudou muito, pois o grande foco dos apostadores são as competições mais importantes, como a Premier League, a Liga Portuguesa e a Liga dos Campeões. A ausência destas competições gerou uma onda de desinteresse na maioria dos jogadores que nem mesmo a continuidade de ligas periféricas atenuou", explica.

Para Tiago Pereira, do 'Placard', ainda assim, o facto de estas Ligas se manterem ativas permitiu mostrar a existência de outros mercados. "Ajudou, no sentido de dar a conhecer a oferta completa que o Placard.pt tem diariamente. Nunca estivemos sem oferta de eventos e estes, não sendo os mais populares, passaram a ter um outro destaque", refere.

O impacto, contudo, foi escasso, como frisa o Head of Marketing da Bet.pt, Pedro Garcia. "Ajudou, mas pouco. Diria que apesar de permanecerem alguns mercados abertos, essa situação acabou por ser residual", aponta.

eSports não puderam ser 'tábua de salvação'

Com a suspensão das competições desportivas verificou-se um fenómeno curioso: grande parte do mundo virou atenções para os eSports, que assim viveram um 'boom' considerável. Muitas das grandes federações desportivas criaram torneios 'online' com jogos virtuais das respetivas modalidades, muitas vezes com a participação dos desportistas profissionais que se encontravam em isolamento nas respetivas casas. Fórmula 1 ou Premier League inglesa foram apenas alguns exemplos.

Os crescimento dos eSports serviu de pouco às casas de apostas online nacionais
Os crescimento dos eSports serviu de pouco às casas de apostas online nacionais créditos: SAPO Desporto

Casas de apostas de outros países aproveitaram para colmatar a ausência de competições desportivas com o recurso a esses eSports e aos desportos virtuais. Uma possibilidade que o regulador do mercado português não permite, mas que poderia ter ajudado a atenuar a crise das casas de apostas online portuguesas nesta fase, dizem estas.

"Infelizmente é um mercado que ainda não está regulado e que tem ajudado outros operadores internacionais a mitigar parcialmente a perda de receitas nas apostas desportivas. Em Portugal, o entendimento do SRIJ é que é necessária uma alteração legislativa para abrir essa porta. No entanto, há outros países cujo entendimento é diferente. Confessamos que seria benéfico para o sector se o regulador partilhasse da mesma interpretação, mas respeitamos que tenham um entendimento diferente", explica Miguel Domingues, da Betclic.

Além das apostas desportivas, a maior parte das casas de apostas online tem também a vertente dos 'casinos'. Contudo, nenhuma das entidades com quem o SAPO Desporto falou considera ter havido uma 'fuga' dos apostadores desportivos online para as apostas online em jogos de sorte ou azar, acrescentando apenas que esse mercado se manteve constante, dado aí a oferta não estar alocada a competições desportivas.

"Não podemos considerar que tenha existido uma fuga para a nossa marca de casino. Se olharmos para o primeiro trimestre vemos que as receitas estão divididas entre as apostas desportivas e casino. Isto quer dizer que as perdas quase totais de receitas em apostas não são compensadas pelo resto. Até porque todas as métricas dessa vertente se mantiveram consistentes com os números que vinham de meses anteriores e têm-se mantido estáveis", explica a Bet.pt, pela voz do seu head of Marketing, Pedro Garcia.

Contra a COVID-19, reagir

Então, sem poderem, contrariamente a outros, recorrer aos eSports, como reagiram as casas de apostas desportivas online portuguesas?

A Betclic refere que não houve grandes alterações, seguindo com a mesma estratégia. "Mais importante que manter o negócio é a realidade voltar à sua normalidade e haver o menor impacto possível na vida das pessoas. A Betclic cá estará, como sempre, para entreter quem se quer divertir com apostas", frisam.

"Acabámos por criar mais conteúdos de entretenimento, sem estarem ligados a apostas, mas que ajudassem as pessoas a desfrutar de desporto"

A NossaAposta.pt, por seu lado, procurou manter os seguidores com conteúdos de fora do mundo das apostas. "Acabámos por criar mais conteúdos de entretenimento, sem estarem ligados a apostas, mas que ajudassem as pessoas a desfrutar de desporto. Recuperámos eventos desportivos antigos, por exemplo", explica o seu responsável de Marketing.

Apoios por parte do estado também não foram muitos para as casas de apostas online, nesta fase. "Do ponto de vista governamental não houve qualquer tipo de apoio e na 'NossaAposta' temos conseguido manter todos os colaboradores em teletrabalho. A grande ajuda seria permitir aos Operadores legais aumentar a oferta de Produtos e Serviços com eSports e Virtual Sports, servindo como forma de combater o jogo ilegal", frisa Gonçalo Sousa.

Tiago Pereira, do Placard.pt, compreende que essa não tenha sido uma prioridade. "Não houve nenhuma medida específica para o nosso setor, mas o Governo disponibilizou vários mecanismos de apoio às empresas no geral, às quais nos enquadramos, e que foram e estão a ser muito importantes. Diria que nesta altura o foco das preocupações tem de estar na saúde pública para que, a espaços, seja possível voltar ao ativo e retomar a atividade", acrescenta.

Apesar disso, nenhuma das empresas com quem falámos diz ter-se sentido 'em risco', ainda que salvaguardando a necessidade de uma retoma para breve. "A 'NossaAposta' é um projecto consolidado e tem tido um crescimento sustentado ao longo do tempo", sublinha Gonçalo Sousa, enquanto Pedro Garcia, da bet.pt, reconhece que "o risco existe sempre", embora estejam a "tentar ultrapassar esta fase da melhor forma possível" Não esconde, porém, alguma preocupação "com o sector e a própria sustentabilidade".

Lá fora houve casas de apostas desportivas que se viraram para as temperatura e para o 'Big Brother'

As casas de apostas online nacionais não foram, naturalmente, as únicas atingidas. Na Grã Bretanha, por exemplo, onde o setor das apostas desportivas tem um peso considerável no PIB, o impacto da suspensão dos jogos de futebol, mas também de râguebi e de críquete, sem esquecer as corridas de cavalo (outro bastião do mundo das apostas), foi pronto e violento. A casa de apostas 'William Hill', que tem mais de 50 por cento da sua receita bruta baseada nas apostas desportivas, cancelou o pagamento de dividendos aos acionistas e estima em 110 milhões de libras (cerca de 120 milhões de euros) o impacto desta crise nas suas receitas.

O prejuízo total pode ascender aos 41 mil milhões de euros nos Estados Unidos

Nos Estados Unidos, outro grande mercado do mundo das apostas desportivas, os prejuízos também são assinaláveis. Fala-se em 140 milhões de dólares perdidos em apostas num só fim-de-semana devido à não realização do torneio de basquetebol da NCAA e, segundo a 'American Gaming Association', o prejuízo total pode ascender aos 43,5 mil milhões de dólares (mais de 41 mil milhões de euros).

Mas, como tempos extraordinários exigem medidas extraordinárias, várias casas de apostas desportivas pelo mundo 'reiventaram' o tipo de apostas à disposição, perante a escassez da sua 'matéria prima'.

Houve quem pensasse em temas mais inusitados e oferecesse a oportunidade de apostar na temperatura e no estado do tempo de várias cidades. E, no Brasil, a Marjosports, empresa de apostas online que patrocina clubes como o Corinthians e o Coritiba, preferiu virar atenções para os fenómenos televisivos. Colocou no seu site um comunicado onde pede desculpa por não poder prosseguir com as apostas desportivas, oferecendo em vez disso a possibilidade de se apostar nos vencedores do reality show 'Big Brother Brasil 20'.

E os apostadores profissionais, como vivem esta situação?

O SAPO Desporto foi também ouvir o lado dos apostadores profissionais. Paulo Rebelo, apostador profissional há mais de 15 anos e presidente da Associação Portuguesa de Apostadores Online, reconhece que com a paragem dos campeonatos principais a procura pelas apostas diminui imenso.

"Os jogos não acabaram completamente, até porque ficaram algumas ligas a decorrer, como é o caso da Bielorrússia, ou da Nicarágua, e agora recentemente começou a da Coreia do Sul, mas o que acontece é que, de uma forma geral, a quantidade de apostas diminuiu muito, porque a maior parte dos apostadores não se sente confortável a fazer apostas nessas Ligas, com equipas que conhece menos, com jogadores que conhece menos”, explica.

O apostador profissional Paulo Rebelo conversou com o SAPO Desporto
O apostador profissional Paulo Rebelo conversou com o SAPO Desporto créditos: Facebook Paulo Rebelo @SirPauloR

Paulo Rebelo faz, contudo, uma distinção entre os diferentes tipos de apostadores. “Há que distinguir entre os apostadores recreativos, que são a larga maioria, e os apostadores profissionais, que vivem em exclusivo das apostas ou que retiram dali o seu principal rendimento. E aí tivemos de nos adaptar. A grande diferença é que temos relativamente menos jogos, porém, a liquidez, ou seja, a quantidade de dinheiro, está toda concentrada nos poucos jogos que há, por isso acabam por ser jogos interessantes para fazer as apostas”, reconhece.

“Claro que, tudo somado, estamos pior, porque é diferente trabalhar com um Real Madrid ou um Barcelona e trabalhar com um BATE Borisov ou um Dínamo Minsk, mas esses jogos permitem que não estejamos totalmente parados. Só que, claro que, para nós também foi uma coisa negativa. Estou ansioso que recomece a Liga Alemã, que até é uma Liga com a qual gosto de trabalhar bastante”, conclui.

O regresso da Bundesliga e o retomar, progressivo, da normalidade

Esse regresso da Bundesliga vai ocorrer já este fim-de-semana. E, com ela, voltará uma certa 'normalidade' ao mundo das apostas desportivas. O impacto parece estar a ser imediato.

De acordo com dados adiantados pela Betano, outro dos operadores de apostas desportivas online licenciados em Portugal, o volume de apostas por si registado subiu nada mais, nada menos do que 228 por cento no dia 8 de maio - data em que reabriu as apostas no futebol alemão - quando comparado com a sexta-feira anterior, dia 1 de maio. Alargando os dias de análise entre sexta-feira, dia 8 de maio, e terça-feira, dia 12 de maio, o volume de apostas registadas subiu 136 por cento face aos mesmos dias da semana anterior, acrescenta a Betano.

"Acho que a normalidade só no final do ano se não houver mais paragens. Mas o mais importante é socialmente e economicamente o País recuperar. Isso acontecendo são boas notícias para todos"

Este regresso à normalidade é, contudo, difícil de prever para Pedro Garcia, da Bet.pt. "Vivemos algo sem precedentes e a única coisa que podemos fazer é manter-nos positivos. Temos de esperar que todas as normas de segurança e cuidados de saúde sejam respeitadas. Isso é o mais importante. A partir daí, à medida que as principais ligas europeias retomem a sua atividade nós também iremos ter maior retorno através dos nossos jogadores", afirma.

Regressa o futebol e regressam as apostas na Bundesliga
Regressa o futebol e regressam as apostas na Bundesliga créditos: Bet.pt

Já Gonçalo Sousa, da 'NossaAposta', sublinha que poderá demorar meses até que tudo volte ao normal. "É muito difícil apontar para quando será o regresso à 'normalidade', até mesmo nós enquanto sociedade não sabemos responder a isso, pode demorar meses. Desejamos um crescimento progressivo, e esperamos que tanto o desporto como a sociedade voltem à 'normalidade' o mais depressa possível, reforça.

O mais importante, conclui contudo Miguel Domingues, da Betclic, é a recuperação social e económica do país no seu todo. "Acho que a normalidade só no final do ano se não houver mais paragens. Mas repito, o mais importante é socialmente e economicamente o País recuperar. Isso acontecendo são boas notícias para todos."

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