Vivemos tempos de incerteza. A crise global provocada pela pandemia do novo coronavírus atirou grande parte do país para casa. E com as pessoas em casa, sobem as audiências...Os generalistas atingiram audiências históricas, mas nos desportivos a realidade é outra.

Sem jogos para transmitir, antevisões para lançar, análises para fazer, clássicos, dérbis, futebol ao domingo, os canais de desporto tiveram que mudar a agulha e pegar num papel e numa caneta e começar praticamente do zero.

Com o teletrabalho a passar a ser uma realidade para muitos portugueses, o jornalismo também não foi exceção. De um dia para o outro, redações inteiras foram deslocadas para casa. Nos canais desportivos, os programas em direto foram praticamente suspensos. Estas mudanças repentinas levaram a que os diretores e os programadores fossem obrigados a adaptar-se a uma nova realidade e montar, em tempo recorde, uma espécie de linha de montagem composta por técnicos, editores de imagem, jornalistas e operadores de continuidade.

Game Over? O que é que os canais de desporto fazem durante a pandemia do novo coronavírus?
créditos: SAPO Desporto

16/04/2020 - dia da renovação do terceiro estado de emergência por parte da Assembleia da República. Por estes dias e quando ainda não há um claro horizonte temporal para o regresso (em pleno) das competições, no SAPO Desporto lançamos o desafio a alguns dos maiores canais desportivos em Portugal: Afinal como é possível fazer televisão a partir de casa e sem competições desportivas?

"Foi praticamente pensar o canal outra vez", começa por dizer ao SAPO Desporto, Pedro Sousa, diretor do Canal 11. "O desafio passou por adaptar os formatos ao momento, ainda antes das autoridades recomendarem o isolamento. Foi um desafio para a equipa e confesso que estou muito satisfeito com o que temos no ar", elogia.

Pedro Sousa: "Televisão em tempos de COVID-19? Foi praticamente pensar o canal outra vez"

No caso da SportTV, apesar dos condicionalismos o canal optou por manter a comunicação em direto.

"Fizemos questão de o fazer, quando se perde o direto num canal de informação, perde-se tudo”, justifica Nuno Ferreira, diretor de programas da estação, referindo "tratar-se de uma decisão muito ponderada dada a escassez de conteúdos informativos".

"Temos o reconhecimento e agradecimento das pessoas que assistem às nossas emissões e sentimos que por vezes somos um escape num cenário de tantas notícias tristes e desagradáveis", sustenta.

Nuno Ferreira: "Sentimos que por vezes somos um escape num cenário de tantas notícias tristes e desagradáveis"

Como se consegue fazer televisão a partir de casa?

Luís Mateus, coordenador geral na Bola TV, explica que o processo de fazer televisão a partir de casa é algo "complexo, não imediato e que obriga a um enorme esforço."

"[O processo] foi montado ainda na redação, as várias secções reuniram-se, montaram uma espécie de cadeia de produção e testámos na redação para ver se funcionava, só depois viemos para casa", esclarece.

Pelo facto da televisão ser um meio tridimensional, com palavra, som e imagem, Luís Mateus explica que só com um "esforço enorme e empenho de todos" é possível "produzir quatro grandes blocos de informação por dia, com 14 ou 15 pessoas a trabalhar, entre editores, pessoas da continuidade e jornalistas. "No lado da informação, temos que estar em constante atualização, mas a reação não é em tempo real, não tens o direto. Por outro lado, estamos todos ligados ao 'ticker', onde fazemos a atualização constante das notícias em tempo real. Não só com a informação que vem do jornal online, mas também com a informação oficial", observa.

Em vez de reagirem no momento, as televisões souberam antecipar o novo contexto. Implementaram novas formas de comunicação, já experimentadas, com recurso ao Facebook, Skype ou Whatsapp para a realização de entrevistas e análises.

"Soubemos adaptar-nos de uma forma muito rápida ao novo contexto, sempre tentamos inovar e trabalhar os formatos. Fazemos muito diretos hoje em dia nas redes sociais para estarmos pertos dos fãs", conta Nuno Miranda, responsável de marketing e comunicação da Eleven Sports.

Sem competição, as televisões deixam de ter necessidade de ter repórteres
Sem competição, o trabalho escasseia para os repórteres. Diletta Leotta, repórter italiana antes de entrar no ar créditos: AFP or licensors

"Todos nós já comunicamos muito por whatsapp e o canal foi pensado no princípio para estar muito perto de treinadores e jogadores que não estão nos grandes centros urbanos e até para os que estão fora do país. Do ponto de vista concetual, técnico, gráfico e editorial, o Canal 11 sempre teve muitas pessoas que entravam na emissão através de Skype e Whatsapp” explica Pedro Sousa. Reconhece no entanto "que é sempre diferente não fazer reuniões de edição presenciais e fazê-las à distância. Mas isso está ultrapassado."

Pedro Sousa: "É sempre diferente não fazer reuniões de edição presenciais e fazê-las à distância. Mas isso está ultrapassado."

"O planeamento foi de facto mais complicado", assume Nuno Ferreira, diretor de programas da SportTV.

"Optamos por trabalhar em espelho com aproximadamente metade da equipa editorial nas instalações da SportTV e outra metade fora. A resposta das pessoas ao desafio foi extraordinária e só temos que enaltecer o elevado sentido de profissionalismo demonstrado pelos nossos colaboradores", acrescenta.

Luís Mateus admite que fazer televisão a partir de casa "não é o ideal" mas acredita que os espectadores têm a noção de que "se trata de uma situação temporária" provocada pela crise sanitária. Até porque o desporto "é algo paralelo. O que interessa é a vida das pessoas."

Com a escassez de informação, resultante da paragem das competições, o COVID-19 é um tema incontornável na agenda dos canais desportivos.

Imagem da transmissão de um jogo
Imagem da transmissão de um jogo créditos: SAPO Desporto

"Temos que ir ao encontro do que as pessoas querem saber hoje em dia. Se não tens futebol, não tens modalidades, se não tens nada disso, obviamente tens que oferecer a informação que interessa às pessoas. O mundo neste momento não quer saber de Sporting, Benfica, FC Porto ou SC Braga, querem saber no máximo quando é que as coisas voltam e dar às pessoas o que elas procuram", relembra o coordenador geral da Bola TV.

Luís Mateus: O mundo neste momento não quer saber de Sporting, Benfica, FC Porto ou SC Braga"

Do que têm vivido as grelhas dos canais?

Para preencher a grelha, os canais têm optado por recuperar jogos clássicos, colocando também no ar reportagens antigas e documentários.

"É sobretudo a forma de estar ao lado dos portugueses. Já tínhamos experimentado no Natal e em datas históricas e sabíamos que o impacto seria grande", opina Pedro Sousa.

Também as redes sociais têm servido para manter os espectadores ligados às marcas, até porque o conceito de televisão já não é mesmo que era há 20 anos atrás: O produto pode ser consumido em direto ou inferido, no telemóvel, tablet ou televisão.

"Na Eleven Sports, temos estado ativos quatro a cinco vezes por semana [com um programa nas redes sociais], onde dedicamos parte da atenção ao futebol com entrevistas e análises", denota o responsável de Marketing da Eleven Sports.

A aposta nos esports nos canais de desporto

Com as pessoas confinadas às suas residências, os esports ou desportos eletrónicos têm ganho cada vez mais espaço nas grelhas dos canais.

Os Esports estão a ganhar cada vez mais espaço nos canais desportivos
Os Esports estão a ganhar cada vez mais espaço nos canais desportivos

"É algo que hoje em dia estamos a assistir durante este período, com as pessoas todas em casa, logo é mais fácil utilizar este tipo de plataformas, nós enquanto canal já estávamos a olhar, e será ser certamente uma plataforma a apostar no nosso portfólio de produto", destaca Nuno Miranda.

Ainda assim, ainda há um longo caminho a percorrer até que os esports possam ser uma aposta segura, avisa o diretor de programas da SportTV.

"O que me parece é que de repente se começou a considerar que tudo o que é esports é bom e as audiências não sustentam isso", adverte.

Queda nas audiências com a suspensão das competições

Com os canais de desporto a perderem terreno nas audiências devido à suspenção das competições, estes números, ainda assim, não parecem assustar as estações que esperam que o mercado possa reagir assim que a normalidade seja retomada.

"Não estamos a sentir...os números estão a crescer, soubemo-nos adaptar à realidade e demos um passo em frente. [Com as ofertas dos serviços a atuais a novos clientes] Começamos a ter melhores audiências, mais tráfego e provavelmente um público novo. Estamos a trabalhar para agarrar essas pessoas pós-período COVID-19", refere o responsável de Marketing da Eleven Sports.

Serena Williams acena para uma câmera
Serena Williams acena para uma câmera créditos: 2019 Getty Images

Apesar de admitir a quebra de 'share', Pedro Sousa salienta que o 'reach' do canal 11 subiu. "Por se tratar de um canal novo, com apenas 8 meses, provavelmente muita gente descobriu-nos agora. Já tivemos dias com um milhão de pessoas a passar no [canal] 11, o que é um número muito impressionante", sublinha.

Opinião diferente tem Nuno Ferreira que fala mesmo de um "impacto arrasador".  Com as competições paradas, o canal optou por suspender a faturação, para novos e atuais assinantes. O diretor de programas da SportTV explica que "num período tão complicado para a generalidade da população seria uma atenção que poderíamos acomodar temporariamente" mas que "tem um custo muito alto para estação."

Crise pandémica poderá dar origem a uma mudança de paradigma na organização das redações?

A questão que se coloca agora, tanto na sociedade como no jornalismo em geral, é em que medida esta crise poderá levar a uma mudança de paradigma na organização do trabalho das redações. Será possível sustentar uma televisão com recurso ao tele-trabalho e às transmissões através de video-chamada?

Luís Mateus considera que "ainda há muito aversão em relação às pessoas que estão a trabalhar a partir de casa, antes de sustentar que "em casa não há a necessidade de ir à rua para fumar ou ir ao café". "Todos se sentem muito mais confortáveis, pode-se estar a trabalhar até de pijama, embora isso não seja muito recomendável [risos]. Se o editor conseguir que as pessoas estejam focadas e a trabalharem no limite, é perfeitamente possível que possa mudar o paradigma", atira.

Luís Mateus: "Ainda há muito aversão em relação às pessoas que estão a trabalhar a partir de casa. Mas se todos estiveram focados no produto, é perfeitamente possível mudar o paradigma"
Câmera e microfone da SportTV na cobertura de uma partida de futebol
Câmera e microfone da SportTV na cobertura de uma partida de futebol

Com as pessoas praticamente forçadas a usar as tecnologias durante o isolamento, Pedro Sousa acredita que nada vai ser como dantes. "Julgo que algumas deslocações que antes eram feitas deixarão de existir. Na verdade, não eram necessárias. Com a televisão creio que será igual. A sociedade fez uma aprendizagem acelerada destas tecnologias e vai continuar a utilizá-las. A televisão também, claro", observa, invocando a génese do canal 11.

“O Canal 11 nasceu assim. Fizemo-lo por observarmos que hoje em dia se banalizou o ato de duas pessoas conversarem através de uma vídeo-chamada. Pensámos que seria muito mais fácil ter os protagonistas em antena dessa forma. Isso já aconteceu com o Cristiano Ronaldo, mas também com o jogador do Lusitano Vildemoinhos ou com o José Morais, campeão na Coreia do Sul ou o Rui Vitória na Arábia Saudita", lembra.

Mas não se pense que é fácil colocar uma televisão a operar longe do local onde esta é suposto acontecer. Tal só é possível com muita "dedicação e espírito de sacrifício". "Fazer televisão de casa é um milagre", reconhece Luís Mateus que confessa que nem ele acreditava "que seria possível."

"Ninguém acharia possível, mas a Bola TV está a fazê-lo, e a nossa redação nem sequer é das maiores como estação televisiva. Agora se calhar já se consegue justificar que uma redação possa funcionar de casa, antes não era possível", remata o coordenador geral da Bola TV.