E depois do olimpismo, o que fazer? Que caminhos seguir após terminar a carreira desportiva no alto rendimento? Qual o papel do atleta olímpico na sociedade? Essas são algumas das muitas questões que a AAOP - Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal - tenta ajudar a responder diariamente aos 800 indivíduos que fazem ou fizeram do olimpismo uma escolha de vida.
Para trocar experiências, confraternizar e partilhar ideias, a AAOP realizou entre os dias 24 e 26 de março o Cascais Olímpico, a maior reunião alguma vez feita no nosso país de atletas olímpicos portugueses, na 'Nova School of Business and Economics'. Ao todo, mais de duas centenas de atletas e ex-atletas, de todas as idades e gerações, voltaram a partilhar o espírito olímpico, a recordar o passado, numa iniciativa aproveitada pela AAOP para dar a conhecer as suas atividades e o apoio que pretende fornecer a todos os olímpicos, nomeadamente no pós-carreira desportiva.
O convívio serviu também para homenagear os atletas que participaram nos Jogos entre 1952 e 1972, 50 anos após a realização dos Jogos de Munique 1972. Estiveram presentes atletas que representaram Portugal em Helsínquia1952, Roma1960, Tóquio1964, México1968 e Munique1972.
A antiga campeã olímpica da maratona Rosa Mota, presidente do Conselho Consultivo da Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal, foi uma das muitas figuras que marcou presença no evento.
"Há mais vida para além do mundo olímpico". defende Rosa Mota
"É bom juntarmos e falarmos sobre o que foi as nossas olimpíadas. Mas também queremos saber o que se passa ou o que se passou com alguns atletas olímpicos [que caíram no esquecimento]", frisou.
As melhores imagens do Convívio Cascais Olímpico
Alto rendimento e formação académica? É possível, mas…
Uma das grandes preocupações de muitos atletas olímpicos é a pós-carreira, quando deixam o alto rendimento e precisam de um ingressar no mercado de trabalho. São poucos os que conseguiram conciliar os estudos com a carreira desportiva e mesmo aqueles que tiveram sucesso, só depois dos 30 anos conseguiram entrar no mercado de trabalho.
É um ingresso tardio, onde enfrentam indivíduos com mais formação, mais experientes, e precisam de apanhar o 'comboio' para não ficarem para trás. O espírito competitivo que os acompanhou poderá não ser suficiente num ambiente de trabalho, pelo que é preciso toda uma nova adaptação.
Há quem, mais consciente das dificuldades futuras, começou a preparar o amanhã desde cedo. Foi o caso da Joana Pratas, antiga velejador que representou Portugal em três Jogos Olímpicos: Atlanta96, Sidney2000 e Atenas2004.
"Depois de Atenas2004, a Federação Internacional de Vela decidiu que a embarcação onde eu navegava - Classe Europe - deixaria de ser classe olímpica. Eu não tinha peso nem altura para ir para outra classe e nem possibilidade financeira para ir para um barco em dupla. Tive de acabar a minha carreira de forma abrupta. A minha sorte é que estudava, tirei licenciatura ao mesmo tempo que tinha a carreira desportiva e já estava a dar aulas de vela", conta Joana Pratas ao SAPO Desporto.
Marcos Chuva não teve a mesma possibilidade. Durante algum tempo ainda conseguiu conciliar os estudos universitários com o alto rendimento, até aperceber-se que não estava a conseguir colocar padrões de excelência nos dois lados.
"Eu é que não estava apto para fazer as duas coisas bem como gostaria. Foi difícil conciliar, então optei pelo desporto. Há quem consiga, mas a maioria tem dificuldades", revela, em conversa telefónica com o SAPO Desporto, dando um exemplo mais recente.
"A Irina Rodrigues [11 vezes campeã nacional no lançamento do disco] está no quarto ano de medicina, tem 30 e poucos anos, os colegas dela acabam o curso com 25, 26 anos, ela tem ali um atraso em relação aos outros e ao mercado", lembra.
O fator tempo é algo que Marcos Chuva tem sempre presente. O segundo melhor português de sempre no salto em cumprimento [8,34 metros, alcançado em 2011, ano em que foi 10.º classificado nos Mundiais de Daegu, na Coreia do Sul] lamenta não ter conseguido fazer o percurso ensino secundário-universidade-entrada no mercado de trabalho como as pessoas comuns.
"O conciliar o desporto com a formação académica e profissional não é facilitado em Portugal. Até pode haver apoios legais, mas a verdade é que as entidades não aplicam a legalidade", defende Marcos Chuva.
O atleta explica que facilmente se pode ficar com a área académica em pausa por causa do desporto. "Acabamos por perder o ‘comboio’ porque não conseguimos fazer um curso do início ao fim, tem de ser feito em partes. Acabar o percurso desportivo e depois tentar entrar no mercado é muito difícil por causa do fator tempo", lamenta.
As Unidades de Apoio ao Alto Rendimento na Escola são um sucesso
Se Marcos Chuva teve dificuldades em conciliar a prática desportiva com o ensino, os atletas mais novos já tem a vida mais facilitada. Em 2016, foram criadas as Unidades de Apoio ao Alto Rendimento na Escola - UAARE -, com o objetivo de alcançar uma melhor articulação entre os agrupamentos de escola, os encarregados de educação, as federações desportivas e os municípios. Assim, os alunos do ensino secundário enquadrados no regime de alto rendimento ou seleções nacionais podiam conciliar, com sucesso, a atividade escolar com a prática desportiva.
Este projeto nasceu no Gabinete de Apoio ao Alto Rendimento (GAAR) da Escola Secundária de Montemor-o-Velho, e teve como mentor Victor Pardal. Este professor percebeu que alguns dos seus alunos, que também eram atletas, tinham dificuldade em ter o rendimento escolar esperado, muito por culpa da falta de um enquadramento pedagógico específico.
O projeto, da Direção-Geral da Educação, em colaboração com o Instituto Português do Desporto e Juventude e replicado depois em todo o país, é um sucesso, como mostram os números do IPDJ: vários campeões nacionais, várias medalhas internacionais e alunos integrados no projeto olímpico. No ano letivo 2020-2021, os alunos integrantes deste projeto tiveram um desempenho académico global de 96.89 %, acima da média nacional.
"Os indicadores desportivos quantitativos recolhidos (referentes a julho de 2020 até junho de 2021) estão organizados de acordo com as linhas orientadoras internacionais, considerando medalhas em campeonatos do Mundo (25) e Europeus (53), n.º de participações em provas internacionais (737), medalhas em campeonatos nacionais (721), chamadas a seleções nacionais (613) e a evolução de nível dos alunos-atletas", detalha o site das Unidades de Apoio ao Alto Rendimento na Escola.
No último Orçamento do Estado para 2022, o Governo assumiu o compromisso de estender as Unidades de Apoio ao Alto Rendimento na Escola (UAARE) ao ensino superior.
"É preciso tirar-lhe o chapéu". O sucesso do programa é reconhecido por Luís Alves Monteiro, presidente da AAOP - Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal.
Joana Pratas deixou a vela há vários anos, mas reconhece que, com os UAARE, "já não existe tantas desculpas para não haver essa conciliação", em termos genéricos, entre o desporto de alto rendimento e a prática desportiva.
Em janeiro de 2019, também foi criado o Estatuto do Estudante Atleta do Ensino Superior que consagra direitos mínimos - tais como relevação de faltas, alteração de datas de exames, a prioridade na escolha de horários e a possibilidade de requerer a realização de exames para além dos já consagrados legalmente.
Para os Atletas, Pelos Atletas e Para a Sociedade – A AAOP quer ajudar, mas precisa de ajuda… dos atletas
Para um jovem que queira ter sucesso no Alto Rendimento e no ensino, a resposta estará nas Unidade de Apoio ao Alto Rendimento. Para quem está a terminar ou já terminou o seu ciclo como atleta de Alto Rendimento, é na Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal que poderá encontrar algumas respostas.
Foi nessa base que a AAOP promoveu o Convívio Olímpico em Cascais, para dar a conhecer o seu trabalho e os seus planos para o pós-carreira desportiva, mas também recolher mais informações sobre os 800 atletas olímpicos de Portugal.
"Se quisermos fazer alguma coisa com os atletas, temos de saber onde estão, quantos são, o que fazem, para poder ajudá-los", detalha Luis Alves Monteiro.
O presidente da AAOP adianta que já há trabalho feito. "Criamos uma base de dados atualizada, não só com dados demográficos, mas a ir mais longe: saber o perfil dos atletas, quem é licenciado, médico, os que estão desempregados, que estão no estrangeiro, os que estão no desporto, segmentar por perfis, categorias profissionais, etc. e ligar isso à nossa missão de responsabilidade social", adiantou Luís Alves Monteiro.
"Não há nenhum plano estruturado para acompanhar estes atletas no pós-carreira. O que acontece é que eles têm momentos mediáticos muitos forte e depois não são acompanhados. Temos que chamar a atenção às entidades oficiais que há aqui indivíduos que deram a vida pelo país, representaram-nos ao mais alto nível e não podem ser esquecidos. Existem situações muito complicadas, com Olímpicos a passar fome, com dificuldades económicas, a caírem no esquecimento e há bastante exemplos disso", denunciou ainda este antigo atleta do pentatlo, lembrando que, para a missão da AAOP tenha sucesso, será preciso os atletas darem a cara.
Durante o Convívio Olímpico, vários olímpicos participaram numa visita à Escola Salesianos de Manique em Cascais onde participaram numa ação com alunos e deixaram alguns conselhos e perspetivas sobre o que foi e o que é ser atleta de alta competição, em provas de excelência como são os Jogos Olímpicos. Rosa Mota esteve presente e, em conversa com os alunos, lembrou que foi nas provas de corta-mato na escola que ganhou o 'bichinho' pelo atletismo,
"Treinei sempre com paixão e ambição para tentar realizar os meus sonhos. Quando acabei de vencer a medalha de bronze, comecei logo a treinar porque tinha que ser logo no dia a seguir. A nossa vida é um ‘comboio’ porque se o perdemos é mais difícil recuperar. Consegui o meu objetivo de ser campeã olímpica, mas fiz muitos amigos", recordou.
São estas influências que podem inspirar os mais novos a enveredar pelo desporto. São nas escolas que residem os futuros campeões europeus, mundiais e olímpicos. Os mais novos, detalha Marcos Chuva, "têm de ser estimulados a terem um percurso de vida desportivo com os valores do olimpismo", por isso, "iniciativas [como o Convívio Olímpico] deviam acontecer muito mais vezes".
"A minha ligação ao desporto foi sempre as minhas influências e ali é uma partilha de experiências que é uma influência. Se queremos um futuro desportivo de sucesso para Portugal temos de começar assim, pelos mais novos", finalizou.
A AAOP quer "os atletas a falarem deles, mas também a desempenhar um papel ativo na sociedade", onde são vistos como modelos a seguir. Das duas centenas de atletas que estiveram presentes, Luís Alves Monteiro ficou impressionado com o judoca Jorge Fonseca.
"O Jorge Fonseca é um verdadeiro campeão. Duplamente medalhado mundial e olímpico, apareceu no Cascais Olímpico, misturando-se com toda a gente, com toda a sua naturalidade, um verdadeiro exemplo de campeão. Ele sozinho já é uma marca e esteve lá connosco", elogiou Luís Alves Monteiro, que representou Portugal nos Jogos Olímpicos de Los Angeles em 1984, no pentatlo moderno.
Nos últimos anos a Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal ganhou autonomia financeira e meios para "capacitar os atletas para poderem enfrentar os desafios do pós-carreira". A Associação assinou um protocolo com o Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa (ISEG) que permite aos atletas terem um desconto de 50 por cento nos cursos de 'Business Executive' nas pós-graduações.
Há um projeto para oferecer 25 cursos de empreendorismo aos atletas que queiram iniciar um negócio. Além destes, a AAOP tem protocolos com várias empresas, como a Altice Portugal, numa tentativa de encontrar as melhores soluções para "poder pagar-lhes, em parte, o tempo e dedicação que eles deram ao desporto nacional e ao país".
No campo da intervenção social, a Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal tem levado a cabo algumas ações, como a que teve com a Associação Corações com Coroa, para levar atletas femininas às escolas para falar sobre violência no namoro e ‘bullying’. Além disso, está a fazer um plano de visitas às escolas de vários conselhos para passar a mensagem de responsabilidade social através dos atletas olímpicos.
"Só se lembram de nós de quatro em quatro anos"
Para evitar que sejam lembrados apenas em anos de Jogos Olímpicos, Luís Alves Monteiro pede aos atletas que tenham também consciência dos seus deveres. O dirigente frisa que "há que também ensinar os atletas a terem uma maior e melhor cultura desportiva", uma vez que "ninguém os preparou" para o pós-carreira desportiva.
"Alguns atletas queixam-se que caíram no esquecimento, mas quando há este chamamento de grupo para deixarem de ser indivíduos e passarem a ser um grupo forte e criar mais direitos, há muitos que não dizem 'presentes'. Temos de ter noção coletiva dos deveres. Isto é um ciclo de vida, quem tem mais mediatismo hoje, amanhã no pós-carreira, poderá não ser assim e poderá precisar dos outros", recorda o líder da AAOP.
O esquecimento a que estão vetados ao longo do ano é frequentemente lembrada pelos atletas, já que o "mediatismo se cinge aos Jogos Olímpicos, tirando pontualmente um ou outro atleta que continua a ser falado mesmo depois dos jogos", explica Joana Pratas. Este esquecimento é algo que "cria mágoa". A antiga velejadora lamenta que "as atenções ao longo de quatro anos", sejam "centradas numa modalidade em Portugal, quando temos tantas modalidades com excelentes atletas que não são dados a conhecer."
Depois do primeiro grande encontro em Cascais, a AAOP já tem em mente a realização de mais dois Convívios Olímpicos.
Adaptar a legislação aos novos tempos
Outras mudanças passam por uma legislação eficaz e atual para enquadrar os atletas após o fim da carreira Olímpica. Como acontece por exemplo em Itália, "onde a maior parte dos atletas olímpicos são ‘Carabinieri [polícia militar italiana], onde nem sequer frequentam as instalações ou fazem o serviço", diz-nos o presidente da Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal.
Aos poucos, as mudanças introduzidas vão ajudando os olímpicos a alcançar os seus objetivos, como aconteceu com Jorge Fonseca. Depois de ser rejeitado na Polícia por não ter o 12.º (agora já tem) e pela idade (limite era 27 anos e concorreu com 28), o bicampeão do Mundo viu serem realizadas algumas alterações na legislação para que os atletas na sua situação possam pertencer às forças de segurança pública no futuro.
Do ponto de vista legislativo é "preparar estes indivíduos para que possam, por exemplo, integrar a função pública, as autarquias, é criar condições para que possam ter uma pós-carreira mais digna", diz-nos o presidente da AAOP.
Para que Marcos Chuva possa ter condições de voltar aos estudos e acabar a sua formação académica e ter o seu diploma de licenciatura. É que depois de terminar a carreira, o atleta, agora com 32 anos, teve de se fazer à vida porque "havia contas para pagar".
O antigo especialista em saltos é agora consultar imobiliário, algo que adora, mas lamenta que Portugal não apoie "quem faz, por opção, a vida de olimpismo como sua".
"Não há apoio, não há motivação para um atleta em Portugal escolher o desporto, sabendo que depois vai ter uma alteração de vida que pode ser louca, após os 30 anos, que pode acabar com os seus sonhos. Porque desistimos dos sonhos para pagar contas porque não há apoio desportivo", acusa o antigo saltador do Benfica.
Apesar de o atletismo ser das modalidades que melhor paga em Portugal quando o atleta tem sucesso desportivo, Marcos Chuva conta que durante a sua carreira teve de ir "fazendo uns trabalhos por fora para pagar as contas porque não conseguia viver apenas do desporto".
O atleta que, além do salto em cumprimento, fez triplo salto, 100 metros, 60 metros e 110 metros barreiras, não se arrepende das suas escolhas, apesar das mágoas.
"Dei muito e recebi muito emocionalmente, mas pouco economicamente. Aprendi muito com o desporto, com o olimpismo, a organização desportiva dos clubes, deram-me muito enquanto pessoa e isso formou-me. Sou muito rica a esse nível. Por isso nas minhas opções de vida não mudaria nada", garante Marcos Chuva.
Luís Alves Monteiro, que esteve em Los Angeles1984 no pentatlo moderno, pretende que os atletas tenham a pós-carreira já estruturada, algo que, garante, irá ajuda-los a ter melhores resultados: "Só tem de se focar no treino por altura do treino, sabendo que quando acabar a carreira, terá condições para seguir a vida porque o desporto não é um fim em si mesmo, mas um processo de vida".
O dirigente defende ainda um alinhamento, um plano estratégico, com o desporto a ajudar a "criar uma sociedade mais solidária, mais inclusiva" e, para tal, será preciso um maior envolvimento por parte dos atletas.
"Que o atleta olímpico tenha a noção dos seus direitos, mas também dos seus deveres, que utilize o facto de ser ou ter sido olímpico e aproveitar os valores olímpicos para intervir na sociedade e que tenha um propósito. Isto não é para nós é para as futuras gerações. O atleta olímpico tem de ser visto como um exemplo a seguir, um veículo para passar mensagens de responsabilidade social para a sociedade. E isso só se consegue pro bono e com muita paixão", finalizou o gestor e advogado.
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