Correr é seguramente a atividade desportiva mais natural para o ser humano. É uma necessidade, que nos ajuda a passar do ponto A para o ponto B. Na antiga Grécia, era o mais popular dos desportos, superado mais tarde pelo futebol, basquetebol, no que respeita à paixão das massas.

A simplicidade com que se pratica – até se pode correr descalço – torna mais difícil a busca por predestinados. A velocidade é um desses exemplos, e é no continente africano que encontramos alguns dos homens mais rápidos do mundo. Um deles nasceu há 40 anos, em Onitsha, na Nigéria.

Estamos a falar de Francis Obikwelu, o homem mais rápido da história da velocidade portuguesa, e atual detentor do recorde da Europa nos 100 metros, com 9.86 segundos. Foi este tempo que lhe valeu a medalha de prata na final dos Jogos Olímpicos de Atenas em 2004.

Em março último, já com 40 anos, Obikwelu voltou às pistas, em Torun na Polónia, para competir no mundial de veteranos, na prova de 60 metros, mais de uma década depois da glória olímpica. Acabou por levar o ouro para casa, com o tempo de 6.90 segundos, derrotando por quatro centésimos o sueco Lion Martinez. O nigeriano que o país adoptou como seu filho, voltava novamente a fazer soar 'A Portuguesa'.

“Mostrei que um atleta com alguma idade ainda pode fazer muita coisa.”

"Não tinha que provar nada. Sentia-me bem no treino e estava a fazer 7 segundos [nos 60 metros]. Foi muito bom. Mostrei que um atleta com alguma idade ainda pode fazer muita coisa."

Mais do que querer provar algo a si próprio, o ex-vice campeão olímpico tinha a certeza de que podia levar o ouro para casa.

"Quando eu quero fazer uma coisa…Comecei a treinar cinco meses antes e pensei: "mesmo que parta mal, vou ganhar a prova". Pensavam que o 'gajo' estava velho, mas afinal estava vivo."

Obikwelu
Obikwelu créditos: KERIM OKTEN / EPA

Encontramos Francis Obikwelu por volta das 13h00 da tarde, no Centro de Alto Rendimento do Jamor, que é praticamente a sua segunda casa. O peso da passagem do tempo parece não querer nada com ele. Mantém a mesma aparência que tinha em 2004. Alto, magro e com robustez física capaz de desafiar atletas, 20 anos mais novos.

“A minha genética é boa. O meus irmãos são todos magros e o meu pai não tem barriga”.

O talento para as corridas está-lhe no sangue. As histórias já são conhecidas: Filho de um antigo internacional de futebol nigeriano, Francis Obikwelu desenvolveu o gosto pelas corridas nas deslocações a pé e durante as aulas de educação física na escola. A queda para a velocidade livrou-o, não raramente, de alguns raspanetes em criança.

"Talento eu sabia que tinha, desde criança. É algo que já é natural. Como africanos temos uma vida completamente diferente da de cá. Vivemos na rua, andamos na rua, fazemos corridas. Não andamos de autocarro, nem de carro. Faz-se tudo a pé e voltamos para casa a pé. E na escola tínhamos uma coisa boa: competição. Eu pratiquei tudo. Eu adoro correr e sabia que tinha talento. Era sempre o mais rápido, ganhava a toda a gente. Mesmo quando fazia algo de mal em criança, o meu pai ia atrás de mim, mas nunca me conseguia apanhar", recorda entre sorrisos.

Festa de Encerramento do Ano Escolar com o tema Dia Olímpico
O atleta olímpico Francis Obikwelu, dá autógrafos a jovens durante a Festa de Encerramento do Ano Escolar, com o tema Dia Olímpico, organizada conjuntamente pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) e pelo Comité Olímpico de Portugal (COP), com o apoio de diversas Federações Desportivas Nacionais, no Jardim da Quinta das Conchas, Lumiar, 06 junho 2012, em Lisboa. JOSÉ SENA GOULÃO / LUSA créditos: © 2012 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

O futebol até podia ter sido o futuro do velocista, não fosse uma lesão do joelho, que no entanto, não o afastou das pistas.

"Comecei com 14 anos. Eu vim do futebol, mas tive um problema nos joelhos, e por isso tive que deixar o futebol, não havia dinheiro para pagar operações. Mas para correr dava."

Francis Obikwelu nasceu a 22 de novembro de 1978 em Onitsha, na Nigéria

Poderíamos pensar que crescer em África, numa Nigéria com imensas carências, pudesse ter deixado marcas na vida de Francis. Mas pelo contrário, foi lá que viveu os melhores momentos da vida e aprimorou o gosto pelas passadas largas.

É de sorriso no rosto, o seu cartão de visita, com que nos recorda esses tempos.

“Os meus melhores momentos da minha vida tive-os entre os 10 e os 15 anos. Quando normalmente aparece um africano bom, é porque ele é mesmo bom. Isto porque não tivemos uma vida tão fácil, como por exemplo na Europa. Aqui tudo é fácil, temos transportes, temos estádio, temos pista, temos tudo. Mesmo assim os jovens queixam-se… Nós lá treinamos na estrada, na terra, em qualquer lado."

O Mundial de Juniores em Lisboa e a fuga para a vitória

Foi a procura de melhores condições de vida que fez com que Francis Obikwelu, então com 15 anos, começasse a planear a fuga para a Europa, juntamente com dois amigos: Sylvester Omodiale e o Wilson Ogbeide. O Mundial de Juniores de 1994 em Lisboa acabou por ser o pretexto ideal. O país era pouco importante para os três adolescentes, na mente só havia uma objetivo: Chegar à Europa.

"Já tinha planeado fugir com esses dois amigos. Quando vimos que estávamos selecionados [para a seleção da Nigéria], pensámos logo em ficar. Para nós, na altura, o que interessava era chegar à Europa, não interessava o país. Sabia que íamos para um sítio com melhores condições. Já sabia que não voltaria para a Nigéria. A qualidade de vida que a Europa tem…Pensei, com o talento que eu tenho e com um bom treinador, ia correr bem…".

Ao contrário do que se podia esperar, o primeiro contacto com a Europa não foi um choque para Obikwelu. Em Lisboa, o velocista sentiu-se em casa.

"Parecia que estávamos em África. Há muitos africanos cá. Quando cheguei, pensei: 'Estamos em África', conta.

Contudo, teve que lutar para não se deixar cair no abismo. Rapidamente a realidade mostrou-lhe algo de diferente. Para triunfar teria que lutar e muito. Depois de se ter escondido numa pensão da capital após o Mundial de Juniores, acabou por rumar ao Algarve. Sem papéis, nem passaporte, viu-se obrigado a trabalhar nas obras para sobreviver. No meio de tanta dificuldade sobressaia um sonho: Triunfar na Europa.

"Quando há saúde, há sempre a esperança de que a vida vai correr bem. Se hoje corre mal, amanhã vai correr melhor"

"Não foi fácil…Fugir, trabalhar nas obras. Nunca tinha trabalhado nas obras na Nigéria, mas não tive medo, nem baixei os braços. Sabia que a minha vida ia melhorar. Quando há saúde, há sempre a esperança de que a vida vai correr bem. Se hoje corre mal, amanhã vai correr melhor."

De repente o medo tomou conta de Obikwelu. O receio de ser descoberto e deportado levou o jovem a mudar de nome. Passou a ser Joe Smith, mais um dos muitos africanos a trabalhar nas obras em Portugal. Foi com essa identidade que travou conhecimento com uma inglesa que lecionava português.

Francis Obikwelu
Francis Obikwelu vitória nos 200 metros com camisola do Sporting. EPA/LUIS FORRA créditos: epa01357634

Mary Morgan acabou por abrir as portas de casa ao nigeriano e acolheu-o como um filho. Deu-lhe um lar, e tudo aquilo que o nigeriano precisava na altura. Também a generosidade merecia a verdade. Joe Smith acabou por contar a Mary Morgan a sua história de vida.

"Aprendia português durante a semana e durante o fim de semana ia jogar râguebi. E foi lá que me perguntaram [o filho do Mary Morgan] se eu praticava atletismo porque era muito rápido a apanhar a bola. E eu respondi...mais ou menos, tive de mentir. Porque não tinha passaporte, não tinha documentos, estava ilegal no país. Acabou por me convidar para almoçar uma vez, e aí é que percebi que ele era filho da Mary Morgan. Mais tarde confessei que era o Francis Obikwelu e contei-lhes a história toda."

Com dificuldades em expressar-se em português, foi a professora que acabou por fazer a ponte com os clubes. Rejeitado inicialmente pelo Benfica e pelo Sporting, foi o emblema da Cruz de Cristo que lhe deu a primeira oportunidade de demonstrar o seu talento.

"A Mary Morgan ligou para o Benfica, e eles disseram que já tinham muitos atletas, o Sporting a mesma coisa. E depois ligou ao Belenenses. Eles ouviram o meu nome e o treinador [Fausto Ribeiro] disse que me queria mesmo, que eu era um talento. Eles sabiam que eu tinha fugido e que estavam à minha procura. Cheguei ao Belenenses e o clube ofereceu-me um sítio para viver."

Francis Obikwelu
O professor Moniz Pereira, acompanhado por Francis Obikwelu do Sporting, assiste as provas da Taça dos Clubes Campeões Europeus de Atletismo, 26 de Maio de 2007, em Albufeira. LUSA/ LUIS FORRA créditos: © 2007

O sucesso de Francis Obikwelu no atletismo tem dois nomes: Fausto Ribeiro e Moniz Pereira. O primeiro foi quem o acolheu no Belenenses, o segundo que dispensa apresentações, abriu-lhe as portas do Sporting onde permanece até hoje.

Foi já de leão ao peito e com algum dinheiro no bolso, que o ‘pai’ do atletismo do Sporting impediu que Obikwelu saísse do trilho do sucesso.

"Pagavam-me bem e deram-me casa. [Moniz Pereira] deu-me muitos conselhos quando entrei no Sporting, para guardar o dinheiro que ganhava e não gastar tudo, para guardar para a família. Quando não tens nada e vês-te com dinheiro, tens tendência a querer comprar tudo. Era um jovem que vinha de África e que não tinha nada.”

“Quando não tens nada e vês-te com dinheiro pela primeira vez tens tendência a querer comprar tudo”

A lesão que atirou Obikwelu para os braços de Portugal

Foi em 2001 que Obikwelu se naturalizou português. Depois de uma lesão grave nos Jogos Olímpicos de Sydney (2000), o atleta não se sentiu apoiado pela sua federação e teve mesmo que pagar a operação do próprio bolso. Após a cirurgia no Canadá, chegou a ter a carreira em risco, mas recuperou e fez um 9.99, ainda com a camisola do Belenenses. Este tempo reacendeu o interesse da Federação nigeriana de atletismo, mas Obikwelu já tinha a decisão tomada.

"Tive um problema no menisco, que já tinha tido no futebol. Voltou e ficou pior. Tive que fazer uma ressonância e pensei que não poderia mais competir. Pedi ajuda à Federação, mas eles não ajudaram. Fui para o Canadá e a operação correu mal. Três meses depois voltei para cá. Depois comecei a treinar e comecei a correr. Depois fiz 9.99 ainda no Belenenses. Foi a melhor coisa que aconteceu. Acabou a prova, recebi depois uma mensagem do presidente da federação nigeriana, mas eu disse que era tarde. E acabei por me naturalizar português.", conta o atleta que confessa não pensou duas vezes em relação à escolha da nacionalidade.

"Não pensei nisso...Onde é que eu vivo? Sentia-me bem em Portugal, tratavam-me bem. Se eu fosse para outro país ia viver outra aventura. E não sabia se ia correr assim tão bem, porque também havia muita concorrência. Aqui era um dos melhores."

Atenas 2004: Por um centésimo a prata soube a ouro 

Saltemos então três anos no tempo...O acontecimento são os Jogos Olímpicos de Atenas, dia 22 de agosto de 2004 para ser preciso. Escreveu-se nesse dia a página mais dourada da velocidade portuguesa. Na final dos 100 metros , Francis Obikwelu estabeleceu o recorde da Europa, com 9.86, apenas atrás de Justin Gatlin, que fez menos um milésimo (9.85). Para o antigo atleta olímpico foi 'apenas' o resultado de anos de trabalho, já o recorde da Europa, não tinha dúvidas de que o ia bater.

"Comecei a inclinar antes da meta e foi aí que eu perdi o ouro"

“Para mim foi um trabalho. [No final ] senti-me uma pessoa normal como toda a gente. Mostrei ao Mundo que era capaz de bater uma marca que ninguém pensava que era possível. Eu sabia que ia cair o recorde da Europa porque estava a treinar muito. Pena não ter conseguido [o primeiro lugar]. Comecei a inclinar antes da meta e foi aí que eu perdi o ouro. Essas coisas acontecem, somos humanos. Cometi erros e paguei caro. Quando cheguei aos Jogos sabia que estava bem. Senti o recorde da Europa ao meu alcance. Já tinha avaliado isso, antes de chegar lá.", analisa.

Francis Obikwelu
Francis Obikwelu na final dos 100 metros, nos Jogos Olímpicos de 2004. A prova foi ganha por Justin Gatlin. @epa/keystone Fabrice Coffrini EPA/Fabrice Coffrini

Nem o ambiente de uma final dos 100 metros, inédita no atletismo português, e 'monstros' como Maurice Greene, Justin Gatlin serviram para intimidar o luso-nigeriano, então com 26 anos.

"Eu estava tranquilo, eles tinham mais pressão do que eu", relata-nos, isso antes de recordar uma história que mostra a admiração que os outros atletas tinham por ele.

"Antes [de Atenas 2004] eu tinha estado na 'Golden League' em Paris, um Meeting que eu ganhei e em que o Maurice [Greene] ficou em terceiro lugar. Na altura, numa entrevista, ele disse que não estava preocupado, nem com o Asafa Powell, nem com o Justin Gatlin, mas sim com o Francis Obikwelu."

Em relação ao recorde da Europa, o tal 9.86, não teria o mesmo valor se não tivesse sido na final Olímpica, que lhe valeu a prata. Obikwelu explica porquê.

"Já tem muitos anos e continua a ser o recorde da Europa. Mesmo que alguém bata esse recorde, vou continuar a ser um atleta de referência. Juntar o recorde da Europa, com a medalha nos Jogos Olímpicos é um trabalho. É diferente bater o recorde da Europa num ‘meeting’, depois vai-se aos Jogos e nem se chega à final...Está também aí a diferença.", diz-nos o atleta, que não se mostra preocupado com o futuro da marca.

"Nunca se sabe, um dia vão bater. Mas bater o recorde...sem títulos. Asafa Powell bateu o recorde do mundo, mas não tem grandes títulos."

A medalha essa, está 'guardadinha' no museu do Sporting, num ato de gratidão do nigeriano ao seu clube de coração.

"Se não fosse também o Fausto Ribeiro eu também não seria o Francis Obikwelu"

"Sim está no museu, está lá. Gratidão? É um clube que me apoiou num momento em que eu precisava para crescer. O Belenenses é a minha casa. Se não fosse também o Fausto Ribeiro, eu também não seria o Francis Obikwelu. O Moniz Pereira agarrou-me, sabendo que eu podia ajudar o Sporting a ganhar o campeonato europeu de clubes. "

O sonho de participar nos últimos Jogos Olímpicos esfumou-se em 2016, nas estafetas dos 4x 100 nos Europeus de Amesterdão. Prova onde o atleta não conseguiu o apuramento para a final.

"Essa é a nossa vida. Não aconteceu, mas pronto", relembra, sem qualquer tipo de mágoa. O sentimento é o mesmo quando consulta a memória para recordar o momento em que deixou as pistas.

"Perdi a minha juventude nas corridas. Não sei o que é que é passear, não sei o que é discotecas. Era o meu trabalho, não havia brincadeira."

"Precisava de descansar um bocado, não tinha vida. Perdi a minha juventude nas corridas. Não sei o que é que é passear, não sei o que é discotecas. Era o meu trabalho, não havia brincadeira."

A terminar o curso de treinador, e observador de jovens atletas do Sporting, o luso-nigeriano não tem dúvidas de que em Portugal há talento para a velocidade. O problema são as distrações…e a falta de disciplina.

"O problema que temos é grave: vemos um jovem que treina aqui [no Centro de Alto Rendimento do Jamor] todos os dias…Se chove vai lá para dentro [pista interior]. Agora temos os telemóveis, os tablets, o Instagram. Marca-se treino para as 10h00 e eles aparecem às 10h30. Quando o treino começa às 10h, é para começar às 10h. Os jovens têm talento, mas não têm disciplina e assim é difícil".

Ao olhar para trás, Obikwelu não sente quaisquer arrependimentos. Os sonhos foram todos cumpridos.

“Cumpri todos os meus sonhos. Até consegui o título que não tinha. Com 32 anos ainda fui ganhar o campeonato da Europa de pista coberta, em Paris.”

Adiado ficou apenas a desejo de ser pai, objetivo que foi cumprido há 15 meses.

“A minha mulher diz que eu sou bom pai. É muito educado o meu filho, quando eu digo não, ele respeita." O primogénito carrega o apelido de um dos nomes grandes das corridas, mas nem isso constitui um fardo.

"Por mim ele vai praticar vários desportos. Eu vou deixá-lo praticar tudo e depois ele escolhe. É um grande erro forçar os filhos a praticar um desporto, que eles não gostam ou não têm jeito. Desporto traz muita coisa boa", finaliza.