A ciclista neerlandesa Annemiek van Vleuten despediu-se domingo do ciclismo como a mais condecorada e dominadora da história do pelotão feminino, ganhando (repetidamente) tudo o que há para ganhar.
Com 103 vitórias no circuito profissional de estrada, enumerar-lhe os triunfos torna-se fastidioso, mas necessário, uma vez que são quatro as Voltas a Itália conquistadas, em 2018, 2019, 2022 e 2023, e duas provas de fundo em Mundiais, em 2019 e 2022.
A Volta a Espanha, essa, venceu-a três vezes seguidas, de 2021 até este ano, e ‘Monumentos’ como a Volta à Flandres (duas vezes) e a Liège-Bastogne-Liège (duas) também lá constam.
A Strade Bianche, o Ladies Tour, em que hoje se despediu, a prova La Course, uma corrida curta que a Volta a França promovia antes de dar ao pelotão feminino o que todos os outros organizadores já faziam, o Grande Prémio de Plouay ou um total assombroso de 16 etapas no ‘Giro Rosa’ prosseguem o ritual.
Ainda assim, em 2022 o simbolismo do Tour completou-se quando a corredora, ao serviço da Movistar, mostrou que só podia haver um nome no topo do pódio da primeira ‘grande boucle’ digna desse nome entre mulheres.
Num ano que encapsula a tenacidade e ambição da primeira grande estrela do ciclismo feminino moderno, e a mais dominadora na estrada, Van Vleuten apresentou-se em França com o intuito de vencer e juntar a ‘grande’ que faltava – não por culpa própria.
Fê-lo com ‘panache’, como se diz na modalidade, e venceu as últimas duas etapas, pulverizando quaisquer dúvidas que, aos 39 anos, ainda era por larga margem a melhor do mundo, mas até se deu ao ‘luxo’ de começar mal, com problemas de estômago que a fizeram perder tempo e não conseguir comer.
Foi vencer o ‘Challenge de La Vuelta’, uma ‘mini Vuelta’ que só em 2023 se tornou uma prova ‘a sério’, e que também venceu, a caminho dos Mundiais Wollongong2022, e fraturou o cotovelo direito durante a estafeta mista.
Três dias depois, apresenta-se à partida da prova de fundo e captura a camisola arco-íris com um ataque que teve tanto de surpreendente como de poderoso, e a belga Lotte Kopecky chegou a um segundo, no segundo lugar.
Em 2023, e apesar de vencer a Vuelta e o Giro, cedeu o espaço nos primeiros lugares a outras corredoras mais frequentemente, de Kopecky à compatriota Demi Vollering, este ano vencedora do Tour.
A forma de correr completa precede os novos ‘alienígenas’ do pelotão masculino, por exemplo, uma vez que é capaz de estar bem na montanha, no contrarrelógio e discutir tanto provas por etapas como clássicas de um dia – uma imagem à qual Tadej Pogacar ou Remco Evenepoel se querem ‘colar’.
Elisa Longo Borghini, uma das ‘estrelas’ do pelotão, já lhe chamou ‘alien’ por mais que uma vez, e a sensação de espanto a cada novo feito só encontra eco em duas compatriotas, amigas e rivais – Anna van der Breggen e Marianne Vos, companheiras na luta pela visibilidade do ciclismo no feminino.
Ganha às duas na quantidade de vitórias e na variedade de vitórias, além da longevidade e da capacidade de triunfar por larga margem, e o ‘patrão’ da Movistar, Sebastián Unzué, já admitiu que não se importava de a manter mais anos – para lá dos 40.
“Quer deixar a modalidade quando ainda está no topo e a lutar por tudo. Não há ninguém que possa substituir a Annemiek. Essa é a realidade”, disse, à Cycling Weekly.
Annemiek van Vleuten nasceu em 08 de outubro de 1982 e, apesar da longevidade e mais de uma centena de triunfos, não lançava ataques e sprintava desde cedo – enquanto criança, o futebol, a ginástica e a equitação eram o desporto, a bicicleta o meio de transporte para a escola.
Estudou ciências animais e epidemiologia na Universidade de Wageningen, em que concluiu o mestrado, e uma lesão no joelho, enquanto jogava futebol, levou-a ao ciclismo, começando em equipas amadoras dois anos depois, já com 25 anos.
Deixou o emprego e tornou-se profissional, começou a vencer, e a vencer, e a vencer, e chegou ao mais alto dos palcos, os Jogos Olímpicos, em que teve um revés no Rio2016, caindo e abandonando com múltiplas fraturas na espinha.
Voltou cinco anos depois, nos adiados Jogos Olímpicos Tóquio2020, com a prata no fundo – só a austríaca Anna Kiesenhofer, com um ataque de longe, lhe tirou o primeiro lugar, que ela achou ter ganho e celebrou efusivamente na meta, porque sem rádio não se tinha apercebido da escapada.
Recuperou da ‘gafe’ da melhor maneira, um ouro no contrarrelógio, e em Glasgow2023 foi oitava, lamentando uma avaria, para depois dizer adeus hoje 'em casa', em Arnhem, no final do Simac Ladies Tour.
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