Três pessoas diferentes com histórias que se iniciaram há décadas, mas que se continuam a escrever, a cada dia que passa. Vidas que já percorreram muitas estações do ano, mas que ainda assim, se recusam a encaixar em estereótipos.
Existências que desafiam o peso da idade e que não se deixam moldar pelo vagar dos dias. Exemplos de vitalidade separados na geografia de um país, mas unidos pela mesma paixão. Conheça as vidas de Alice Quintela, Armando Aldegalega e Silvestre Gomes.
Dona Alice Quintela – Aprendeu a nadar com 51 anos e detém 14 recordes aos 81 anos
Dona Alice Quintela está longe de ser uma simples senhora de 81 anos. Percebemos isso, logo nas primeiras tentativas de contacto. "A Dona Alice tem sempre muita coisa para fazer e tem sempre uma agenda muito preenchida", avisa Ana Oliveira, treinadora da nadadora de Matosinhos no Complexo de Piscinas de Águas Santas, na Maia.
Feita a ponte para um contacto inicial, uma voz entusiástica mas atarefada, responde-nos do outro lado do telefone. Entre o ofício como costureira, os afazeres do dia-a-dia e os treinos na piscina, Dona Alice acede em falar-nos sobre uma das suas paixões: A água.
Foi em criança que desenvolveu esse gosto, na praia de Matosinhos. “Desde pequenita ia para a praia, gostava muito. E às 8 horas da manhã ia à água. Era uma 'atrevidita', não tinha medo da água", relembra. Mas foi só aos 51 anos que tomou "a iniciativa de aprender. Não tinha piscina na minha freguesia".
Primeiro experimentou a ginástica, depois aventurou-se na natação. “Isto porque as pessoas não devem parar quando atingem uma determinada idade”, justifica.
30 anos depois, soma 13 recordes: "13 não", corrige. "Tenho 15, não 13. Na última prova fui a Loulé e trouxe mais dois. Oito em piscina curta e sete em longa. Vai falar disso não vai?", questiona-nos num tom orgulhoso.
Mas aprender a nadar não lhe bastou: Queria testar as capacidades. O próximo passo era federar-se. A vontade em competir começou por embater num muro. E foi com dificuldade que obteve a autorização médica necessária.
"Eu não tenho nada a ver com isso senhor doutor, não me corte as asas"
"Teve dificuldades para obter autorização para competir? Se tive…", conta. Depois de uma primeira 'nega', acabou por convencer o antigo médico de família que, no entanto, ainda a tentou demover, alertando-a para os casos de jogadores de futebol 'que ficam no campo'. Eu não tenho nada a ver com isso. Não me corte as asas, disse-lhe eu. O médico acabou por aceder e depois de alguns exames acabou por lhe dar a luz verde que tanto queria ouvir para colocar as suas capacidades à prova e foi assim. "E hoje sou federada", diz-nos com uma ponta de brio. Ainda no sábado, aos 81 anos, Dona Alice fez exames. 'Está tudo em ordem', assegura a atleta do escalão L, entre os 80 e 85 anos, onde competem ambos os sexos.
Quem nunca teve dúvidas sobre as suas capacidades foi Ana Oliveira. A treinadora destaca-lhe o dinamismo e a força de vontade que constitui "um exemplo para todos no clube".
"Ela é muito dinâmica, muito positiva. E quando coloca uma meta, ela quer e faz. Portanto percebeu-se logo de início que não ia ser difícil. Não é difícil trabalhar com ela". Apesar da idade, a nadadora "alinha" em tudo e acompanha a equipa nos estágios. "Vamos para os campeonatos para mais de dois e três dias e divide quarto connosco".
A responsável pelo Clube de Natação da Maia garante ainda há margem de progressão para a atleta de Matosinhos. A água é o alimento que derruba as fronteiras físicas da otogenária. "A vontade de alimentar a atração dela pela água é que permite que ela vá conquistando estes patamares", elogia.
Voltando à conversa com Dona Alice, entre sorrisos, lá nos confidencia que ainda no dia anterior tinha ido treinar: "Tem que ser. É um prazer que me enche a alma”. Mesmo naqueles dias em que se sente mais em baixo, não abdica da piscina. "Às vezes digo para mim: 'Estou tão cansadinha e hoje não me apetece ir à piscina'. Mas depois, arranjo-me num instante e venho nova", conta a nadadora que compete nas disciplinas de estilo livre e costas.
Mas a genica não se fica apenas pela piscina. Modista de profissão, não consegue estar quieta e "detesta estar sentada", confessa
"Se sou muito ativa? Pois sou, pois sou”, diz-nos em jeito apressado. “Eu podo as árvores, eu podo a ramada. Corto relva, eu lavo o carro. Eu nem lhe sei dizer o que não faço, compreende. E ainda tenho a minha profissão".
Dona Alice tem a consciência de que é diferente da grande maioria dos otogenários e até de pessoas um par de anos mais novas. A nadadora de Matosinhos já convidou amigos para se juntarem a si na piscina, mas na maioria dos casos, as solicitações são devolvidas em forma de desculpas.
"Eu convido, mas dizem que não vão porque vão cortar o cabelo. Têm sempre desculpa para tudo. A pessoa quando quer, quer mesmo", diz.
"Nadar até não poder, que é o que eu gosto de fazer"
O avançar da idade não lhe retira o desejo de fazer da piscina a segunda casa. A D. Alice promete "nadar até não poder".
"Mas que Deus me ajude (Risos). Que o que eu quero…é nadar até não poder. Porque é o que eu gosto de fazer".
Desporto na terceira idade? O que dizem os especialistas
Com o objetivo de conhecer os benefícios concretos e os cuidados a ter na prática de desporto, nomeadamente na terceira idade, entrevistámos a fisioterapeuta Maria da Conceição Graça, especialista e Mestre em Geriatria e Geontologia na Universidade de Aveiro.
SAPO Desporto (SD): Quais os benefícios para a saúde que se podem retirar da prática desportiva na terceira idade?
Maria da Conceição Graça (MCG) : "Em qualquer idade a prática desportiva oferece benefícios de saúde como reforço muscular, melhoria da mobilidade, estimulação sistémica como cardiovascular, renal e sistema nervoso. Na terceira idade estes benefícios são uma evidência cientifica, estando confirmado que uma pessoa com mais de 65 anos que pratica atividade física com componente desportiva, previne doenças próprias do envelhecimento senescente ou recupera com melhor performance pela componente emocional que estará mais motivada para os desafios da vida".
SD: Como é que o corpo reage à intensidade que é colocada? É preciso alguma precaução redobrada a partir dos 60 anos?
MCG: "Evitar os exageros de carga física na musculação ou corrida intensa. Sabe-se que a idade regula a excitação muscular, produzindo uma bradicinesia (movimento mais lento) que deve ser respeitada. No entanto, a evidência científica demonstra que treinos intermitentes tem efeitos de estimulação sistémica, no pâncreas e fígado, regulando a metabolização de toxinas e outros componentes nefastos à boa saúde (gorduras e açúcares). Acima de tudo é preciso haver uma atenção especial às perceções sensoriais que o corpo oferece".
SD - Há exercícios que não se devem realizar?
MCG - "Sim, se houver alguma patologia como insuficiência cardíaca; infarto do miocárdio recente; miocardite ativa; angina pectoris que piora com o esforço; embolia recente (sistêmica ou pulmonar); aneurisma dissecante; doenças infeciosas agudas; trombo- flebite; taquicardia ventricular e outras arritmias graves; estenose aórtica grave".
SD: O trabalho de força é indicado?
M.C.G - "Sim, mas de preferência com acompanhamento de Fisiologista do Movimento para um plano individual adequado às competências da pessoa idosa".
SD - Como é o caso da musculação?
MCG - "A musculação traz benefícios se respeitar as capacidades da pessoa idosa, bem como a sua evolução postural. Existem encurtamentos que poderão necessitar de ser alongados antes e depois como forma de prevenção de contraturas ou ruturas por má uso da musculatura".
SD: O atletismo não é um tanto perigoso para atletas em idade avançada, tendo em conta o esforço a que o coração é obrigado?
MCG - "Esse risco existe em qualquer idade. Na pessoa idosa deverá haver um estudo do seu estado de saúde de forma a despistar qualquer patologia ou contra-indicação. As pessoas idosas que praticam atletismo estão conscientes das suas capacidades e o risco é diminuído".
Armando Aldegalega, 80 anos: “Quero correr até que as pernas me caiam”
"Há uma canção que diz: 'vou cantar até que a voz me doa". Eu vou correr até que as pernas me caiam". Estas palavras saídas da boca de Armando Aldegalega não soam estranhas. Apesar da idade convidar a uma vida calma, parar não faz parte do dicionário do antigo atleta do Sporting. Depois de marcarmos entrevista pelo telefone, marcamos encontro no estádio António Moniz Pereira, em Lisboa, local que frequenta religiosamente, como treinador e atleta.
Encontrámos um homem que transpira vitalidade e elegância e que ainda no ano passado completou a sua 63ª Maratona, - numa espécie de aposta entre amigos -, mas que para a qual, reconhece, "não se preparou convenientemente".
"Concluí com muito sacrifício. Foi a [Maratona] Cascais-Lisboa. Fiz mais de quatro horas. Duas pessoas convidaram-me para participar. E eu disse: - 'Ok, está bem, eu vou. Mas vou umas vezes a correr, outra vezes a andar'. Quis ver até onde o ser humano pode suportar o esforço. Foi um exame que fiz a mim mesmo para ver onde é que as minhas capacidades me traziam", conta. Espera ainda concluir a sua 64ª prova de 42 quilómetros. "Penso que ainda posso fazer uma".
Mas a história de Armando Aldegalega no atletismo não é de agora. Começou há mais de 60 anos, em 1956. Descoberto pelo Clube Independente de Setúbal deu nas vistas e rapidamente foi convidado para ir para o Sporting. Foi um dos momentos que lhe mudou a vida. “O Sporting deu-me tudo”, reconhece. Em Odivelas, onde vive, enverga diariamente o ‘leão ao peito’ e até o tratam por ‘Senhor Sporting’.
Dos tempo de competição, guarda com enorme carinho a primeira participação nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 1964. "É o máximo que um atleta pode atingir. Ver a grandiosidade de um espectáculo, dentro de um espectáculo".
Com o avançar da idade, e mesmo deixando o alto rendimento, o ex-fundista nunca deixou as corridas e continuou a ganhar provas nos escalões de veteranos. Sente que serviu de inspiração para que pessoas da sua idade iniciassem a prática desportiva.
Armando não tem a receita para a fonte de juventude. Porém, não se esquiva a dar um conselho aos ‘jovens da sua idade’, que ao invés do exercício optam por frequentar as tascas e os cafés: "Movimentem-se que assim vão ver que vão durar mais uns 'aninhos'. Se não correr, anda. Vai ver que vai trabalhar o seu corpo, a sua mente e fazer com que a sua alma esteja viva".
Ciente de que exibe uma forma invejável, comparativamente com as pessoas da sua idade, também porque “não tiveram preparação física”, demonstra uma generosidade em tudo idêntica à sua resistência física: "Vejo pessoas da minha idade que já estão muito mal. E é pena. Gostava que estivessem como eu”.
Os 80 anos de idade não parecem ser um argumento suficiente para o arrancar das pistas. Sem receio que a ‘máquina’ pare: A acontecer, que seja a fazer o que mais gosta.
“Se tenho medo que me dê alguma coisa enquanto corro? Não tenho receio. Porque nós para morrer só precisamos estar vivos. Não podemos pensar…Eu antes quero morrer a correr do que deitado numa cama", conclui.
Silvestre Gomes: Começou a correr aos 41 e aos 63 anos promete não abrandar
De Lisboa até à Baixa da Banheira é um pequeno salto: São 39 km para se ser mais exato. É na margem sul que encontramos Silvestre Gomes. À beira da terceira idade – 63 anos feitos – este cabo-verdiano, natural de São Nicolau, tem uma narrativa diferente no atletismo da de Armando Aldegalega. Começou tarde, demasiado tarde, dizem alguns.
"Quando comecei há 20 e tal anos atrás, as pessoas achavam que já era muito tarde para começar no atletismo. Mas depois quando comecei a fazer tempos bons e a superar alguns atletas que já corriam há bastante tempo… até a família e amigos me começaram a incentivar”, recorda o atleta do escalão M60 do Vitória de Setúbal.
Foi com 41 anos que este antigo tipógrafo se estreou nestas andanças, quase por 'casmurrice'. Na primeira prova (6 km) em que participou, correu sem um único treino realizado.
"Comecei a levar a minha filha ao atletismo e a vê-la nas provas. Entretanto ia realizar-se uma prova no Barreiro. E o meu irmão que era treinador enviou-me as autorizações que tinham que ser assinadas para elas entrarem na prova. Então eu disse-lhe: ‘Não mandes duas, manda três que eu também quero correr’. 'Mas tu para correres tens que treinar', avisou-me. E eu em jeito de brincadeira lá lhe disse 'Para ganhar não preciso de treinar'. Conclusão: Fui fazer a minha prova sem treinar um único dia", atira.
A partir desse dia ficou com uma espécie de ‘bichinho’ e percebeu que até poderia ter ‘queda para a coisa’. "Acabei a prova e os meus pulmões parecia que iam explodir. A corrida foi num domingo e a partir de segunda-feira comecei a treinar. Passado dois, três meses comecei a entrar nos primeiros do escalão e passado mais algum tempo já ganhava", conta.
Apesar de ter começado tarde, não se arrepende até porque “se tivesse começado mais cedo provavelmente já não estaria a correr”. Embora alguns entendidos lhe tivessem dito que poderia ter “sido um atleta acima da média”.
Em jeito descontraído confessa que nunca se preocupou em tomar nota das classificações. Para controlar o treino, utiliza um simples relógio de pulso para marcar o tempo. "Nunca tive o objetivo de fazer mais, mais e mais", confessa o atleta de veteranos do Vitória de Setúbal.
Ainda assim, em 22 anos de atletismo não são raras as vezes em que bateu o pé a atletas de renome. Numa das primeiras provas em que participou houve uma ocasião que, como não era conhecido, fizeram de tudo para que não vencesse.
"Três meses depois de ter começado no atletismo, participei numa prova e avisaram-me. 'Hoje não ganhas porque está cá o Franklin, que era um dos favoritos. E eu disse-lhes: 'Não vou ganhar, mas vou atrás dele'. Na última volta apertei e passei por ele e quando ia para ganhar, não me queriam deixara ganhar, porque o Franklin não estava à minha frente, eu não podia estar à frente dele".
Dono de uma excelente condição física foi nos últimos Campeonatos do Mundo em Espanha, que Silvestre Gomes esteve mais perto de desistir pela primeira vez numa prova. Mas a vontade de cortar a meta, acabou por ser mais forte que as dores.
“Por pouco não cortei a meta. Tive um problema de ciática e não deu mesmo para fazer uma corrida como eu queria: 'Em 22 anos, nunca tinha desistido de uma prova, e não é no Campeonato do Mundo que vou desistir', pensei eu. O meu primeiro objetivo era vencer, o segundo era o pódio. Mas pronto cortei a meta, foi a primeira vez que tive uma lesão a correr".
Mas nem esse último percalço o fez abrandar o ritmo. O exercício e a corrida como forma de vida serão sempre o vício do atleta de 63 anos. “As pessoas quando começam a gostar, é um vício. Quando começamos a treinar, já não se consegue parar. Eu se estiver dois, três dias sem correr parece que me falta alguma coisa”.
O treino diário e o estilo de vida saudável saltam à vista na altura de fazer exames. A última prova de esforço valeu-lhe mesmo o elogio ‘valente’ de uma profissional de saúde.
“Antes dos Mundiais fui fazer a minha prova de esforço. E ela disse-me assim: 'Com essa pedalada, você deve ganhar o seu escalão. E eu disse-lhe que sim'.
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