Parece uma pergunta até um pouco estúpida, mas atualmente existem algumas posições dentro do futebol onde não se exige uma técnica específica de passe ou uma boa relação com a bola. Naturalmente que os defesas centrais e os guarda-redes são os jogadores a quem menos se exige um bom jogo de pés, mas não é por eles que tantas vezes a bola passa em fase de construção? Talvez seja por isso que tantas equipas preferem bater longo na frente.
O futebol vai evoluindo e, conforme vai evoluindo, são exigidos cada vez mais atributos aos vários jogadores. Se antes os extremos apenas tinham de atacar, hoje em dia têm de saber defender. Se antes o avançado apenas tinha de esperar pela bola para tentar marcar golo, hoje é o primeiro a defender, a pressionar e a saber oferecer um cobertura defensiva. Neste sentido, torna-se também essencial os jogadores habituados a defender saberem atacar.
Um dos grandes dilemas de hoje em dia é se se deve dispender tempo para trabalhar as características ofensivas de um guarda-redes, nomeadamente o passe, a visão de jogo, a própria relação com bola. Cada vez mais parece evidente que a evolução do guarda-redes caminha num sentido em que o mesmo precisa deste jogo de pés, todavia, claro que concordo com quem diz que o principal objetivo de um guarda-redes é saber defender a baliza, isto é, ter um bom jogo de mãos, saber sair da baliza, ter bom jogo aéreo, apresentar reflexos, etc. No entanto, descartar o jogo de pés é descartar a evolução do guarda-redes porque eventualmente irá necessitar de ter esta característica se quiser jogar com x treinador.
Se o avançado teve de aprender a defender, porque razão o guarda-redes não pode aprender a atacar? A primeira resistência passa pelos treinadora de guarda-redes (geralmente mais velhos) que nunca precisaram de saber dar dois toques na bola para serem muitas vezes titulares nas suas respetivas equipas enquanto jogadores há 15/20 anos trás. Posteriormente é importante perceber que os guarda-redes são geralmente os jogadores menos dotados tecnicamente e, portanto, existe uma maior resistência para treinar está característica quando estão mais confortáveis em preparar o seu jogo de mãos.
É ainda importante perceber que um erro do guarda-redes tem maior impacto do que um dos restantes jogadores. O facto de ser o último jogador antes da baliza faz com o seu erro possa originar um golo adversário com muito mais facilidade. No entanto, quando apresenta um bom jogo de pés permite à equipa sair com qualidade da primeira fase de construção, sendo mais um homem para construir, mantendo a posse de bola e até podendo ser o primeiro responsável por dar um ataque perigoso.
Este sábado, foi um ótimo exemplo para percebermos a importância de um bom jogo de pés (ou a falta dele). Ortega (Manchester City) e Steele (Brighton) mostraram-nos a influência que o jogo de pés pode ter positivamente na organização ofensiva de uma equipa, sendo os primeiros criadores em fase de construção - marca das equipas de Guardiola e De Zerbi. Já no jogo seguinte entre Arsenal e Chelsea, Raya (Arsenal) e Sánchez (Chelsea) mostraram que esse jogo de pés (ou a falta dele) pode originar golos adversários. Raya cometeu um erro num passe que por muito pouco não deu golo ao Chelsea e Sánchez errou um passe que originou mesmo um golo do Arsenal (1-2) que seria o início do crescendo da equipa arsenalista que chegaria ao empate na partida quando a mesma parecia completamente controlada pelos blues.
Claro que o erro é mais perceptível que o sucesso, mas o sucesso aparece mais vezes que o insucesso. Sabemos que o risco deve ser medido, mas sem risco não há recompensa. Perder a bola em primeira fase de construção é extremamente perigoso, mas quando a mesma é bem trabalhada e consegue ultrapassar a primeira fase de pressão adversária, consegue originar perigosos ataques rápidos, existindo espaço que origina maiores ocasiões de perigo. Por consequência, golos...
Poderão dizer-me guarda-redes de clube grande sem um bom jogo de pés? Haverá nomes certamente. Mas quantos guarda-redes de equipa grande são obrigados a ter esta característica? Façam os vossos cálculos, tirem as vossas conclusões. A evolução do futebol exige de todos. Os guarda-redes não são exceção.
PS: Rafael Pacheco, treinador de futebol, tem nas bancas o livro 'Rogerball - O Benfica de Schmidt', onde analisa a época do Benfica em 2022/23, que levou os encarnados ao título de campeão nacional e aos quartos de final da Liga dos Campeões.
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