"Não me sinto bem em campo, não estou a desfrutar. Os primeiros seis meses [no Barcelona] correram muito bem, depois as coisas mudaram para pior. Talvez inferno não seja a palavra mais certa, mas foi nisso que se tornou a minha vida porque comecei a ter mais pressão. Com a pressão convivo bem, não convivo bem é com a pressão em mim mesmo”. Assim recebemos a notícia de (mais) um caso de um jogador que atravessa uma crise de ansiedade no futebol.

A 21 de julho de 2016, dias depois de ter levantado o troféu de campeão europeu em Paris pela seleção portuguesa, o Barcelona anunciava a contratação de André Gomes, proveniente do Valência, por 35 milhões de euros, ele que tinha custado 15 milhões aos cofres da equipa ‘che’ quando contratado ao Benfica.

André Gomes celebra com Jordi Alba e Samuel Umtiti o triunfo do Barcelona diante do Chelsea
André Gomes celebra com Jordi Alba e Samuel Umtiti o triunfo do Barcelona diante do Chelsea. créditos: EPA/ALEJANDRO GARCIA

“Pensar muito faz-me mal. Penso em coisas más e, depois, no que tenho que fazer, e estou sempre a reboque. Ainda que os meus companheiros me apoiem bastante, as coisas não me saem como eles querem que saiam”, continuou André Gomes, em declarações à edição espanhola da revista Panenka, publicadas no passado 12 de março.

O internacional português desabafou e partilhou os seus medos, uma frustração que parece não ter cura.

"Já me aconteceu, em mais do que uma ocasião, não querer sair de casa para evitar que as pessoas me olhem de lado. Incomoda-me que me digam que não consigo fazer as coisas bem".

"E pergunto a mim mesmo: ‘Porque não as faço?’"

Primeiro chega a ilusão, depois a desilusão.

O Drº Jorge Silvério é licenciado em Psicologia pela Universidade do Porto e pós-graduado em desordens da ansiedade e do humor pelas Universidades de Maastricht e Oxford. Foi o primeiro mestre em Portugal em Psicologia do Desporto, sendo também doutorado nesta área. Atualmente trabalha com a seleção portuguesa de futsal, que se sagrou campeã europeia no passado mês de fevereiro.

“Isto é igual à política. Depois de alguém ser escolhido, existe um período de seis de meses de adaptação, que ninguém questiona. Os adeptos estavam na expetativa. É evidente que a transferência envolveu bastante dinheiro e ele [André Gomes] beneficiou de um período de adaptação Além da pressão interna, começou a existir uma pressão externa, com os adeptos a assobiarem nos jogos, a criticar, para quem não está preparado, quem não tem mecanismos de defesa, pode ser muito complicado. Fala-se muito do apoio do 12.º jogador, mas há o reverso da medalha, é a pressão dos adeptos”, começou por dizer o psicólogo, em conversa com o SAPO Desporto.

Drº Jorge Silvério, psicólogo de desporto
Drº Jorge Silvério, psicólogo de desporto créditos: FPF

“Ele chega a dizer que não sabe mais o que fazer, é quase um pedido de ajuda. Curiosamente, da parte dos adeptos, existiu uma resposta fantástica. Não vejo isso como ato de piedade, acho que é importante nesta fase de recuperação. No momento em que foi ovacionado em Camp Nou [no jogo da Champions contra o Chelsea], houve uma mudança com os adeptos a apoiarem, sentindo que o público estava do lado dele”, refere Silvério.

Kevin Love, 29 anos, jogador de NBA dos Cleveland Cavaliers, confessou recentemente que sofre de distúrbios mentais, depois do seu colega DeMar DeRozan, craque dos Toronto Raptors, ter admitido que já sofreu de depressão.

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Voltando ao futebol, numa entrevista à revista Der Spiegel, Per Mertesacker, de 33 anos, revelou, na mesma altura da confissão de André Gomes, que não está feliz e que o futebol lhe provoca ansiedade, afetando a sua saúde: “Prefiro ficar no banco ou, melhor ainda, na bancada. Quando me retirar, vou finalmente sentir-me livre”, desabafou, confessando que sentia o vómito chegar à boca antes dos jogos começarem.

“Este caso não é comum, é um caso mais isolado, embora possa acontecer. É normal não gostar da profissão e aí arranjar estratégias para lidar com isso”, disse o psicólogo.

Porém, sabemos que os casos são mais frequentes do que se imagina. Existem jogadores da I Liga que, antes dos grandes jogos - por exemplo contra Benfica, FC Porto e Sporting - inventam desculpas/lesões/indisposições aos treinadores para não entrar em campo, evitando assim a pressão. Na época 2016/17, num plantel de uma equipa do escalão principal do futebol português mais de metade dos jogadores queixou-se de algo para evitar ir a jogo.

“Nem todos os jogadores têm psicólogo a nível profissional, nem todos os agentes recorrem a profissionais da área aquando existem mudanças de clubes, só em casos de emergência, algo que não devia acontecer. Por vezes, pode ser demasiado tarde, nunca é tarde, mas pode haver um atraso no rendimento desportivo”, conta o Drº Jorge Silvério.

O que esperar depois destas declarações?

“Penso que para um treinador é importante ter a sensibilidade para perceber que tipo de jogador tem à frente. Há jogadores que, quanto maior é a ansiedade e a pressão, mais querem demostrar que são capazes de superar e ser irreverentes. Existem outros que precisam de ser protegidos para poderem entrar noutros momentos, em que a equipa está mais estável e que possam recuperar os níveis de confiança e satisfação pelo jogo”, respondeu Vasco Seabra, atual treinador do Famalicão, depois de ter passado pelo Paços de Ferreira.

Vasco Seabra dá indicações durante o jogo entre Paços de Ferreira e Marítimo
Vasco Seabra dá indicações durante o jogo entre Paços de Ferreira e Marítimo. créditos: Homem de Gouveia

A ansiedade ou pressão é algo que os treinadores também estão habituados, mas Vasco Seabra fala-nos através de uma perspetiva diferente no vídeo abaixo.

“Há momentos em que temos de desligar. Não tens que provar nada a ninguém, tens de provar a ti mesmo, que dás o melhor de ti enquanto estás ali. A certa altura tens de aprender a desligar, para estar fresco quando voltares a pegar no teu trabalho e ser capaz de tomar as decisões certas. Há alturas em que chegamos a casa e sentimos que tudo aquilo que fizemos é colocado em causa, parecendo que estamos no deserto. Eu procuro isolar-me, ficar no meu momento e a minha introspecção é: ‘Mas o que deixaste de fazer? O que te levou aqui?’ E aí percebo que não deixo nada por fazer no meu trabalho. Frustrações todos temos, em qualquer profissão, mas aqui existe mais mediatismo, porque é um desporto que move muita gente”, partilhou connosco o treinador de 44 anos.

As taxas de prevalência das depressões, ataques de pânico e ansiedade nos jogadores são muito semelhantes às que acontecem no resto das pessoas, que não são atletas. Tudo o que aconteça na vida íntima do jogador, pode ter consequências no seu rendimento desportivo, sendo necessário um acompanhamento mais personalizado e aprofundado.

A tragédia Robert Enke

"Às vezes o amor não basta"

Em novembro de 2009, o mundo ficava chocado ao saber que Robert Enke tinha cometido suicídio de uma forma violenta. Aos 32 anos, nos arredores de Hannover, o guarda-redes alemão deixou-se atropelar por um comboio, depois de deixar uma carta de despedida à família. O lugar da tragédia aconteceu a poucos metros da sepultura de Lara, filha única, falecida em 2006 devido a problemas cardíacos. Este ato foi o capítulo final de um vida de "graves depressões", que foram posteriormente confirmadas pelo médico do jogador, Valentin Makser.

A morte da filha de dois anos contribuiu para uma grande depressão, não conseguindo superar nos três anos seguintes, tendo terminado apenas quando colocou termo à sua vida.

"Tentei dar-lhe esperança, dizia-lhe que nem tudo era mau, que havia coisas belas na vida. Pensava que conseguiríamos, com amor... mas às vezes o amor não basta", disse Teresa Enke, mulher do alemão que passou pelo Benfica entre 1999 e 2002, altura em que coincidiu no clube da Luz com o português João Tomás.

O presidente do Hannover 96, clube de Enke na altura do suicídio, garantiu que a tragédia "não teve nada a ver com o futebol”, sublinhando que o jogador tinha problemas privados, sem adiantar mais pormenores.

Robert Enke com a filha Lara

Após a passagem por Portugal, transferiu-se para o Barcelona, onde não conseguiu impor-se, viajando depois até à Turquia para representar o Fenerbahçe, onde as coisas correram ainda pior. As notícias deram conta de que Robert Enke sentia-se ofendido pelos adeptos. Recusou o dinheiro a que tinha direito e terminou a ligação com o emblema turco.

"Não tinha esperança de se curar, e tinha medo de que o público soubesse"

Isto foi o que afirmou Teresa, explicando que o marido recusou ficar internado, algo que foi recomendado pelo seu médico. Enke tinha receio de perder aquilo de que mais gostava, o futebol e Leila [filha que o casal adotou posteriormente].

A presença de psicólogos

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“Há esse receio. Quando as coisas não estão bem definidas pode haver confusões. O facto de haver um psicólogo [externo], e quando os jogadores não o conhecem bem, podem não haver a confiança suficiente, receando que alguém possa comentar alguma coisa. A integração de um psicólogo é um sinal de inteligência. Quando olhamos para o rendimento desportivo temos quatro componentes: física, técnica, tática e psicológica. Já se trabalham três, se aperfeiçoarmos a quarta, vamos potenciar ainda mais o rendimento desportivo”, alerta o psicólogo.

João Tomás diz que, “quem está fora da competição, está longe de imaginar o que significa o esforço e a dedicação que os jogadores colocam dentro de campo”.

“São muitos os momentos em que os jogadores têm dificuldades. O André demonstrou coragem em dar o seu testemunho, sabendo que não foi fácil para ele”, disse o atual diretor desportivo do Famalicão.

Existem aqueles que leram nas palavras de André Gomes uma chamada de atenção desnecessária e quis aproveitar-se do seu insucesso no Barcelona, respondendo que pressão sentem as pessoas que não têm emprego ou dinheiro suficiente para viver.

“Não é o dinheiro que nos traz felicidade, sei que é um lugar comum dizer isto, mas a verdade é que existe a possibilidade de as coisas não correrem da forma como expectamos e isso dá a garantia de alguma serenidade no futuro, para que não tenhamos de abdicar de tudo o que fazemos, só porque há uma coisa que não corre bem”, refere Vasco Seabra.

Três dias depois das declarações de André Gomes, o avançado português entrou em campo no jogo da Liga dos Campeões, entre Barcelona e Chelsea, tendo recebido uma enorme ovação que recebeu dos adeptos aos 61 minutos, quando entrou no relvado de Camp Nou.

Após o final do jogo, André Gomes agradeceu o 'carinho' dos adeptos do Barcelona através da sua conta pessoal do Twitter.