O 'bichinho' do futebol atacou desde cedo Bruno Romão. Cresceu na zona de Marvila e facilmente percebeu que não seria um Messi ou Cristiano Ronaldo nos relvados. Começou por desenvolver outra paixão: O treino. Começou no clube de coração, acumulando experiências no Casa Pia, Sporting e Olhanense no panorama nacional. Acompanhou Rui Águias durante a passagem do técnico português na seleção de Cabo Verde e trabalhou na seleção feminina de sub-19. No estrangeiro foi adjunto no Al Hilal (Arábia Saudita) e Pharco (Egito), e no Busan IPark da Coreia do Sul.
Em entrevista ao SAPO Desporto, o técnico de 39 anos fala-nos das suas ambições e do objetivo de assumir um projeto enquanto treinador principal e não faltam histórias e episódios inusitados numa carreira que já o levou a conhecer muitas culturas.
Como é surgiu a tua ligação ao futebol?
A ligação ao futebol surge por ter crescido onde cresci. Cresci em Marvila, aprendi a gostar de futebol no meu clube do coração, o Oriental. Tive a oportunidade de jogar no futebol sénior, e acabei por cumprir o meu sonho de menino de jogar pela equipa principal do clube. Cresci numa família que gostava muito de desporto e futebol. Depois há aquele momento em que te apercebes que não vais ser jogador ao nível que achas que deves ser e a minha opção foi apostar na formação e aproveitar os últimos anos como jogador para começar a observar pessoas e a estar com uma postura diferente para depois me adaptar à função de treinador.
E a paixão pelo treino?
Surge alicerçada nos treinadores que foram passando por mim. Joguei nove, 10 anos, mas tive treinadores que me deixaram bons ensinamentos, que me fizeram sonhar e para que fosse melhor todos os dias. É uma paixão irracional, mas é uma paixão que eu tenho pelo jogo.
Qual foi a reação dos teus pais quando lhes disseste que querias seguir uma carreira no futebol?
Há uma história gira em relação à minha entrada no futebol. Eu digo-lhes que queria jogar no clube da minha zona, que é o Oriental. E os meus pais: 'só se tiveres boas notas'. E eu entendi que não lhes podia dar motivos para não jogar. Estava num contexto escolar muito bom, numa escola no bairro, mas com muita qualidade. Mas resolvi o problema, tive cinco a tudo (risos). Ao longo da vida têm-me dado todo o suporte. Mas é um caminho que precisa de confiança.
Como foi o teu início do percurso enquanto treinador?
Comecei nos sub-13 do Oriental, com pouquíssimos recursos, com poucas bolas, em campo pelado. Miúdos com talento, que tratavam bem a bola. Pude trabalhar várias competências porque os jogadores tinham qualidade. Foi um ano muito rico, a acumular com a faculdade. No ano a seguir o professor Rafael Gomes convidou-me para ir com ele para o Casa Pia. Foi um ano de grande aprendizagem, também com o Casemiro que era o adjunto. Regresso depois ao Oriental para fazer parte da equipa técnica dos seniores do Oriental. Conseguimos subir à segunda divisão. Acumulo funções na equipa técnica, com a de treinador principal dos sub-15 e depois, entretanto faço a transição para o Sporting.
Como é que foi passar de um clube da dimensão do Oriental para o Sporting?
Encontrei um clube de topo na formação, a maior referência em Portugal na formação. Um grupo de colegas espectacular, com muita partilha de ideias. Tenho muito orgulho por ter trabalhado naquela casa e os jogadores também facilitaram, porque havia muita qualidade. Trabalhei com várias gerações, com a do Daniel Podence, Francisco Geraldes, mais tarde apanho a geração do Bruno Wilson, Matheus Pereira. No primeiro ano acumulei funções de treinador de guarda-redes nos iniciados e juniores e apanhei o William, Afonso Taira, Nuno Reis, Renato Neto. Acabamos por ser campeões nacionais de sub-19 naquele ano.
Em 2012/13 embarcas para uma aventura na Arábia Saudita, como adjunto no Al Hilal. Como foi essa experiência?
O convite surge através do professor Rafael Gomes. O Rui Águias precisava de uma pessoa para ir com ele. Falei com o Rui ao telefone, o meu contrato com o Sporting tinha terminado e seria um passo interessante para a minha carreira. E porque não? Fomos para um país fechado, com características diferentes, em que a religião tem um enorme peso. Os jogos e os treinos tinham que ser ajustados consoante o horário das rezas. Tínhamos um grupo com muito potencial, conseguimos desenvolver essa qualidade. Foi o clube onde senti uma maior ligação entre treinadores e jogadores, uma proximidade muito boa e positiva. Mas existiram particularidades culturais e há hábitos que dificilmente vais mudar. No Ramadão os treinos realizam-se muito tarde e voltas a trabalhar novamente muito cedo e quase não dormes. A vida à noite ganha uma intensidade enorme, de dia tudo para. A qualidade da alimentação para um desportista não é a melhor. Durante quatro meses por ano, o calor é muito diferente do que estamos habituados na Europa, e em termos humanos não é possível renderes continuamente o mesmo e os esforços têm que ser doseados.
Assistimos à mudança de Cristiano Ronaldo para o futebol árabe, como vês a evolução do campeonato nos próximos anos?
A estabilidade emocional que é necessária para se estar no desporto não é uma caraterística do povo árabe. O que acaba por acontecer é que treinadores – aconteceu há pouco tempo ao Pepa – em clubes mais pequenos não têm tempo para fazer a equipa crescer ao longo de dois anos. E é raro um treinador ficar mais do que um ano num clube mais pequeno. E isso afeta o nível competitivo a progressão dos clubes. A questão da alimentação e os cuidados profissionais é algo que o futebol árabe ainda tem muito que melhorar. Faz-se um investimento tão grande em jogadores que não faz sentido que toda a estrutura de apoio não esteja preparada e que esse rigor não seja cumprido. O campeonato teve uma evolução, mas os clubes têm que ser menos emocionais em relação ao resultado.
Trabalhaste depois no futebol feminino, na seleção portuguesa de sub-19. Como é que foi essa transição?
Surpreendeu-me o brio, o profissionalismo, o facto de ser muito mais fácil trabalhar com mulheres do que com homens. Da minha experiência foi muito fácil lidar com as várias gerações, trabalhei com sub-17, sub-19, também auxiliei em alguns jogos na seleção principal. Senti que havia potencial para se fazer o percurso que se fez nos últimos 10 anos. E se jogarmos de forma ajustada ao que é o perfil da jogadora portuguesa vamos ser muito competitivos. Por isso é que conseguimos estes resultados, é fruto da organização, do trabalho dos treinadores, das jogadoras e também de uma forma de jogar que tem sido promovida ao longo destes anos.
Trabalhaste com o Rui Águias na seleção Cabo Verde, quais são as principais diferenças entre um contexto de clube e de seleção?
"Em Cabo Verde tive os melhores anos profissionais da minha vida, num contexto de muita adversidade, mas com pessoas muito comprometidas e positivas. As coisas por vezes têm tudo para não resultar, mas tivemos dois anos muito bons. Claro que na seleção temos a quebra da continuidade no processo, essa é evidente. Nas seleções estás 10, 12 dias, os jogadores chegam a conta gotas e tens muito mais dificuldades em desenvolver o processo, de uma etapa para a outra. Tem a ver com a relação que tens com o grupo, e priorizar o que é o mais importante no momento. No clube há uma continuidade marcada, mas ao longo do tempo o meu processo de clube, tem que ser tão paciente como o de seleção e priorizar muito bem o que se vai fazer durante a semana. Tens mais tempo para trabalhar, mas na seleção tens jogadores que se adaptam mais rápido, com mais qualidade e que respondem mais rápido ao que tu pedes.
Pelo meio, tens aí uma passagem curta pelo Olhanense.
Estivemos na segunda liga até final da época, nos últimos 17 jogos. Num contexto de crescimento profissional e pessoal. Estou muito grato ao Olhanense, infelizmente o clube está num momento muito difícil. Se o clube conseguir reajustar a sua relação com os adeptos, é um gigante adormecido e a cidade merece um Olhanense forte.
Quando chegas a um clube, quais são ideias que tentas desde logo implementar?
Há coisas do jogo que eu gosto bastante, jogo vertical, chegada à área. Para mim é muito importante que as ideias casem com os jogadores que tenho no plantel e com a cultura do clube. Vou para os clubes para promover a identidade dos locais, não vou para me promover a mim e potenciar as capacidades dos jogadores. Na minha carreira tem sido tudo muito natural."
Mais recentemente fazes um temporada no Pharco do Egito e duas no Busan IPark da Coreia do Sul. Duas culturas e um futebol completamente diferente.
Sou convidado para ir para o Egito, um desafio adicional no estrangeiro, em Portugal conheces a cultura, e a minha personalidade encaixa muito bem com a cultura local, mas as circunstâncias enviam-te para fora. Um clube muito cumpridor e que também tinha tudo. As coisas boas deram suporte, as menos boas fizeram-me refletir e ajustar algo. Foi mais uma cultura em que o jogador tem muita qualidade em todas as posições do campo. É um país com muito talento, jogos competitivos. Na Coreia, o fator crescimento foi enorme. A primeira vez que vou para tão longe. A adaptação à vida diária é facílima, tinha uma vida familiar muito boa, o clube com boas condições de trabalho, Academia, condições que muitos clubes da I Liga em Portugal não têm. Jogadores com talento também, a dificuldade naquele contexto foi arranjar jogadores com uma formação desportiva próxima dos padrões dos que praticas na Europa. Na Coreia há um conjunto de hábitos sociais difíceis de alterar. De grosso modo foi uma experiência difícil, pessoas espetaculares, acolhedoras. Paradigma diferente, mas uma experiência muito positiva.
Qual é abordagem que se tem que ter com um jogador árabe ou coreano, há muitas diferenças?
O jogador árabe tem um grande respeito pelo treinador, mas os resultados podem marcar o início do desrespeito, normalmente. Na Coreia, também aparecem este tipo de comportamentos, mas não é um povo de confronto. O que pedes, eles cumprem, taxativamente. E isso é muito positivo para o treinador. Na Coreia tens que meter o travão, retirar o factor pressão. É uma cultura em que como não são questionadores, dizem que sim e tu queres que os jogadores aportem algo à situação e o jogador tem muitas vezes dificuldade. A tua profissão e a tua idade marcam tudo o que é o estatuto social. Se um jogador de 20 anos fizer uma falta dura sobre outro, leva cartão amarelos de caras. Mas o mesmo pode não acontecer com outro de 30 ou de 31.
Tens alguma história curiosa que trazes dessa experiência na Coreia?
Em Portugal atravessamos a rua como nos apetece e não damos o melhor dos exemplos, e lá comecei a atravessar a rua à portuguesa, então as senhoras na rua chamavam-me à atenção, mas depois aprendi (risos). Na Coreia, os jogadores de futebol também têm que fazer o serviço militar obrigatório, Fizemos o primeiro jogo contra a equipa do exército na primeira jornada e ganhámos. A liga tinha quatro voltas, no segundo jogo perdemos por 1-0. A equipa do exercito representa a identidade nacional, e os jogadores têm que permanecer lá durante 18 meses na tropa. No terceiro jogo fomos cilindrados. Estavam a jogar na segunda liga e era tudo jogadores da seleção da Coreia, que jogaram contra o Busan.
Como é que sentiste o impacto do Paulo Bento no futebol coreano?
O Paulo foi o treinador com mais impacto na seleção coreana, só para começar. A nível de resultados foi quem mais venceu e tem um prestígio muito grande. Tinham uma admiração enorme por ele, trouxe organização àquela vertigem, um futebol muito baixo e que depois ataca em transições, e conseguiu transformar aquela vertigem em organização. A equipa conseguia jogar em vários registos.
Estiveste agora recentemente perto de assinar com o Ararat Yerevan, da Arménia, naquela que seria a tua primeira experiência como treinador principal. Porque é que não se concretizou?
A ideia seria ficar até final da época e salvar a equipa da descida. Mas não foi possível, porque não ofereceram ao meu adjunto a estabilidade que ele precisava, para alterar a vida. Decidi que não estavam reunidas as condições.
Quais são os teus próximos objetivos?
Passo os meus dias a tentar melhorar a minha formação. Há muito pouco tempo estive a fazer um curso de francês, para melhorar as minhas capacidades, vejo muitos jogos, dos mais variados campeonatos e dos mais variados níveis. Estou naturalmente aberto a ouvir e a conversar. Quero dar a conhecer o meu trabalho, tentei preparar-me para tudo. A minha experiência é muito variada. É esperar pela oportunidade certa, numa carreira que tenho desfrutado.
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