O maliano Moussa Marega abandonou o campo num Vitória de Guimarães-FC Porto de 16 de fevereiro de 2020, após persistentes insultos racistas de adeptos vimaranenses, num caso que chocou o país e o mundo do futebol.

Corria o minuto 71 da partida da I Liga quando Marega, que além dos ‘dragões’ também tinha representado o clube de Guimarães, disse ‘basta’ e deixou o relvado do estádio D. Afonso Henriques, após uma ‘chuva’ persistente de insultos e cânticos racistas que o visavam desde o aquecimento para a partida.

Marega, que 11 minutos antes tinha feito o golo da vitória portista (2-1), acabou por abrir uma discussão no país sobre o racismo no desporto, que já havia conhecido casos no estrangeiro – do italiano Mario Balotelli ao brasileiro Neymar, entre centenas de outros episódios.

O caso deu origem a vários processos, por entidades distintas. Um, pela Autoridade para a Prevenção e Combate da Violência no Desporto (APCVD), puniu o organizador do espetáculo desportivo, isto é, o Vitória, com três jogos em casa à porta fechada, que serão cumpridos após o regresso do público aos estádios.

O emblema de Guimarães recorreu desta decisão, e criticou ainda o presidente da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP), Pedro Proença, considerando que este desrespeitou “a separação de poderes” após ter tomado posição sobre uma decisão do Tribunal da Relação de Guimarães.

Este órgão decidiu anular uma multa imposta a um adepto - um indivíduo de 29 anos na bancada sul, junto à claque vitoriana White Angels - pela APCVD por ocultação de identidade.

O outro processo decorre após uma investigação da Polícia de Segurança Pública (PSP), que acedeu às imagens de videovigilância do estádio, de forma a serem identificados os eventuais autores dos insultos racistas, e um processo-crime do Ministério Público (MP) "por atos de discriminação racial".

Três adeptos do emblema vimaranense estão a ser julgados no Tribunal de Guimarães, pelo crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos, desde 25 de setembro.

Também o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) levantou processos disciplinares, um ao próprio jogador ofendido e outro ao Vitória. Marega foi absolvido, não surgindo, um ano depois, qualquer decisão sobre o clube.

Pela parte do avançado, que regressou em dezembro deste ano ao D. Afonso Henriques, mas sem público nas bancadas devido à pandemia de covid-19, as críticas viraram-se também para o árbitro, Luís Godinho, que lhe mostrou um cartão amarelo por “defender a cor da pele”, chamando-lhe “uma vergonha”.

Sobre o incidente, admitiu mais tarde ter-se sentido “humilhado” e chamou “idiotas” aos adeptos, que entoaram cânticos, insultos, e imitaram sons de macaco para o diminuir durante cerca de duas horas, do aquecimento até abandonar o relvado.

Após o acontecimento, o caso abriu um debate sobre o racismo no futebol português, não por ser o primeiro, mas pela ação do avançado ao retirar-se do campo.

As manifestações de solidariedade, bem como promessas e pedidos de projetos sociais e o endurecimento de penas para estes crimes, sucederam-se em todos os quadrantes, do Governo, incluindo do primeiro-ministro, António Costa, ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Também no futebol o eco chegou a todo o país e mesmo ao estrangeiro, onde a ‘lenda’ dos Países Baixos Ruud Gullitt criticou a posição dos companheiros de equipa, que na sua opinião deviam ter saído com o avançado e não tentado demovê-lo da ação.

A federação maliana de futebol também repudiou os atos, assim como o treinador francês Arsène Wenger, que pediu penas severas e interdição do futebol para quem comete crimes de racismo, entre uma ‘multidão’ de vozes que saíram em apoio a Marega.

Mesmo sem adeptos nas bancadas, o fenómeno ‘teima’ em não desaparecer do futebol, como o atestaram os jogadores do Paris Saint-Germain-Istambul Basaksehir, que abandonaram o relvado de uma partida da Liga dos Campeões em 08 de dezembro de 2020.

O quarto árbitro Sebastian Coltescu sinalizou a expulsão do treinador adjunto dos turcos, Pierre Webó, dizendo: “O negro está ali, vai lá ver quem é. O negro que está ali não pode agir desta forma”.

Em Portugal, em 2020, avançaram dois novos projetos relacionados: o ‘Black Lives Matter in Football', criado pela Associação Plano I e apoiado pela rede internacional contra o racismo no desporto Fare Network, e o recém-criado Observatório Nacional da Violência Contra Atletas, iniciativas que ajudam a combater, ou documentar, uma realidade cuja prevalência e extensão se desconhece na totalidade.

Tendo abalado a sociedade portuguesa, vários foram os pedidos para o endurecimento da atuação contra crimes nos estádios, como o do presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, que reagiu "com indignação”, exigindo medidas de prevenção e de repressão contra criminosos nos estádios.

“Há uma questão estrutural importante, que é a forma como os jogadores de futebol têm vindo a ser olhados já há muitos anos, e não se alterou. São alvos fáceis, de insultos, de insultos racistas, como o caso do Marega, de violência”, explicou o investigador da Universidade Nova de Lisboa José Neves à Lusa.

Se Neves vê os futebolistas como “alvos fáceis”, o antropólogo Daniel Seabra, que tem estudado as claques em Portugal, refere o “contexto favorável” do desporto à aparição da agressividade, com a psicóloga Ana Bispo Ramires a pedir o fim da “conivência” de colegas futebolistas, dos ‘media’ e da sociedade portuguesa.

“O episódio de domingo inscreve-se a outros episódios e diz-nos uma coisa muito simples: não vale a pena enfiarmos a cabeça na areia e não vermos o que é evidente, que na sociedade portuguesa o racismo é tutelar. Faz parte da vida quotidiana, não é excecional”, afirmou, então, o sociólogo João Sedas Nunes à Lusa.

"A melhor forma de termos espetáculos seguros é aumentar a inclusão, a hospitalidade, e ver que um espetáculo desportivo não deve ser um rufar de tambores, quase como uma batalha, mas termos gosto, querermos ser campeões de receber bem, de dar o exemplo, de estar no desporto pelos valores", disse à Lusa, no ano passado, o presidente da APCVD, Rodrigo Cavaleiro.