Não há como negar o impacto das alterações climáticas no desporto, especialmente nas modalidades de inverno. A mais recente edição dos Jogos Olímpicos de Inverno, em Pequim, é exemplo disso mesmo. Inicialmente apresentados como um exemplo de sustentabilidade, os últimos Jogos debateram-se com uma situação paradoxal quando falamos de uma competição realizada em pleno inverno: a falta de neve.

Sendo Pequim uma cidade onde a neve nunca está garantida, as autoridades chinesas tiveram de apostar na maior operação de sempre de produção de neve artificial, que incluiu, entre outros investimentos, a inundação de um leito de rio que está seco há anos, e o desvio de água de reservatórios que abastecem a capital. O que levantou muitas questões sobre o verdadeiro impacto ambiental da prova.

Mas vamos por partes.

Os Jogos Olímpicos mais amigos do ambiente?

Entre os dias 4 e 20 de fevereiro, o Mundo esteve de olhos postos em Pequim. Além das polémicas inerentes a estes Jogos Olímpicos (nomeadamente o boicote diplomático e a persistência da pandemia), este fora o primeiro grande evento desportivo organizado pela China depois de anunciar as metas para a descarbonização (processo de redução de emissões de carbono na atmosfera).

Tendo essa preocupação ecológica em mente, todos os 26 locais de competição dos Jogos Olímpicos de Inverno foram abastecidos com eletricidade 100% ‘verde’, ou seja, eletricidade produzida a partir de fontes de energia renováveis (solar e eólica). Além disso, mais de 80 % dos veículos que serviram o evento (automóveis e autocarros) são elétricos ou com motores a hidrogénio.

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Outras soluções escolhidas para a realização do evento incluíram a reutilização de sete estruturas dos Jogos Olímpicos de Verão de 2008 e a plantação de árvores nas zonas onde decorreram as provas.

Segundo cálculos divulgados por especialistas, no próximo mês de março, a utilização desta ‘energia verde’ desde junho de 2019 até esse momento, terá permitido reduzir 320 mil toneladas nas emissões de carbono – o que equivale à quantidade média de CO2 absorvida por quase 32 milhões de árvores num ano.

A redução do número de espectadores internacionais, devido às restrições da COVID-19, também ajudará à poupança de cerca de 500 mil toneladas de CO2. Nas palavras de Juan Antonio Samaranch, presidente do Comité Coordenador do COI para Pequim2022, estamos perante os Jogos Olímpicos “mais verdes” de sempre.

Pode saber mais sobre o plano de sustentabilidade dos JO de Pequim aqui.

Complexo desportivo de Zhangjiakou, situado a cerca de 180 quilómetros de Pequim
Complexo desportivo de Zhangjiakou, situado a cerca de 180 quilómetros de Pequim créditos: AFP

Os primeiros Jogos com neve 100% artificial

Aquando da preparação para os Jogos Olímpicos de Inverno, a falta de neve em Pequim tornou-se uma grande dor de cabeça. Apesar das temperaturas baixas, a capital chinesa é uma das mais secas a nível mundial e, mais concretamente, os distritos de Yanqing e Zhangjiakou, onde tiveram lugar as provas ao ar livre, registam apenas cerca de 20 centímetros de neve por ano.

Os responsáveis pelo evento tiveram, por isso, de apostar na produção de neve artificial. A solução não é inédita. Nos Jogos Olímpicos de 2014, em Sochi (Rússia), 80% da neve utilizada era artificial enquanto em Pyeongchang2018 (Coreia do Sul) esse valor ultrapassava os 90%.

Mas Pequim fez história ao tornar-se a primeira cidade a depender quase totalmente de neve artificial para a realização dos Jogos Olímpicos de inverno. Para isso, foram utilizados cerca de 130 geradores e 300 canhões para cobrirem de neve, ininterruptamente desde dezembro de 2021, as montanhas de Yanqing (a cerca de 80 quilómetros a noroeste de Pequim), palco das provas de esqui e snowboard.

O que mais impressiona, no entanto, é a quantidade de água utilizada no processo: mais de 185 milhões de litros, o suficiente para encher 74 piscinas olímpicas.

"O Comité Olímpico Internacional sabia no que se estava a meter"

Os dados são apresentados no relatório "Slippery Slopes: How Climate Change is Threatening the Winter Olympics" [Pistas Escorregadias: Como as Alterações Climáticas estão a Ameaçar os Jogos Olímpicos de Inverno], feito por investigadores do 'Sport Ecology Group', da Universidade de Loughborough, em Londres, com base nas previsões do comité organizador de Pequim2022.

“A produção artificial de neve não é apenas intensiva em recursos, exigindo enormes quantidades de energia e água, como frequentemente usa produtos químicos para retardar o seu derretimento. A neve artificial também oferece uma superfície que muitos atletas dizem ser imprevisível e potencialmente perigosa”, pode ler-se no estudo.

Estes dados causam ainda mais preocupação sabendo que Pequim tem apenas 185 metros cúbicos de água per capita por ano para 21 milhões de habitantes, menos de um quinto do que é necessário, de acordo com os parâmetros da ONU.

“O consumo excessivo de água era uma inevitabilidade a partir do momento em que estes Jogos foram atribuídos a Pequim, uma vez que a região não tem neve natural suficiente para receber competições de inverno. Por isso, o Comité Olímpico Internacional e os responsáveis pela organização sabiam no que se estavam a meter”, explicou à revista Insider Madeleine Orr, especializada em ecologia do desporto e uma das responsáveis pelo referido estudo.

Neve artificial: tendência ou risco?

A produção de neve artificial incluiu o desvio de água de um reservatório para o leito de rio (que se encontra seco há anos) próximo da Aldeia Olímpica de Yanqing. O reservatório em questão teria um papel fulcral no abastecimento da região. Já em Zhangjiakou, a necessidade de aproveitar a água do solo fez com que os agricultores tivessem de abandonar as suas terras, segundo revelou o jornal New York Times em setembro.

No entanto, o Comité Olímpico Internacional (COI) veio a público assegurar que o aproveitamento de água para os Jogos Olímpicos não teria “qualquer impacto no consumo dos habitantes e nas suas necessidades para a agricultura.”

A produção de neve artificial ficou a cargo da empresa italiana TechnoAlpin. A água é recolhida do reservatório e chega aos canhões de neve através de um sistema de bombas e tubos de alta pressão. Essa água é depois misturada com ar comprimido em turbinas, antes de ser projetada a dezenas de metros de distância, em forma de pequenas gotículas, de forma a cobrir as montanhas alpinas.

No entanto, as temperaturas mais altas nesta região obrigam a um maior consumo de energia e água, sem esquecer o recurso a substâncias químicas para prevenir que a neve derreta.

"Isto já aconteceu noutros Jogos Olímpicos. Pesticidas, sal, fertilizantes foram usados anteriormente nos desportos de inverno, para garantir que a neve não derrete. O que traz riscos para a biodiversidade e para a vegetação”, indica o estudo da Universidade de Loughborough.

Michael Mayr, responsável da TechnoAlpin no continente asiático, garante que a água usada para a produção de neve artificial não contém aditivos químicos e que, quando derreter na primavera, voltará naturalmente ao solo. Mas admite: “Quanto mais quente fica, mais energia precisamos para produzir neve.”

Produção de neve artificial para os Jogos Olímpicos
Produção de neve artificial para os Jogos Olímpicos créditos: AFP

Entre os defensores da sustentabilidade de Pequim2022 e os que apontam o seu impacto no ambiente, as opiniões vão-se desdobrando. Timothy Kellison, professor na Universidade de Geórgia (EUA) e coautor do estudo "Slippery Slopes: How Climate Change is Threatening the Winter Olympics", conversou com o SAPO Desporto sobre esta e outras questões.

SAPO Desporto – Que mensagem quiseram passar com a realização deste estudo?

Timothy Kellison – Era uma história importante para contar. Para a maioria das pessoas que assistem aos Jogos Olímpicos na televisão (eu incluído), torna-se difícil pensar no que acontece nos bastidores e no que levou à realização destes grandes eventos. E olhando para o futuro, vai ser cada vez mais complicado garantir condições seguras para quem compete e para quem assiste. Quisemos alertar para isso mesmo.

SD – De que forma a produção de neve artificial numa competição como os Jogos Olímpicos de inverno pode ser prejudicial para o ambiente?

TK – Há várias questões a ter em conta. Em primeiro lugar, os recursos necessários para a produção de neve artificial, nomeadamente as infraestruturas que recolhem, armazenam e bombeiam água e a energia que é gasta no uso dessas mesmas infraestruturas, além, claro, da própria água. Ou seja, antes mesmo de a neve ser produzida, já existe uma série de custos ambientais. Depois disso, levantam-se outras questões relacionadas com o impacto que essa nova neve terá na hidrologia local, no solo e na vegetação, especialmente se for para cobrir áreas onde a queda de neve natural é reduzida. Em alguns casos, há quem acrescente produtos químicos para criar condições mais favoráveis à produção de neve, e esses químicos acabam por seguir o mesmo caminho da neve quando derrete, infiltrando-se no solo, nos lagos e nos rios – embora a organização tenha esclarecido que não foram utilizados quaisquer químicos durante o processo.

SD – As autoridades chinesas e o Comité Olímpico Internacional apontaram estes Jogos Olímpicos como os mais sustentáveis de sempre. Concorda?

TK – Ainda temos de esperar algum tempo até avaliar propriamente a sustentabilidade dos Jogos. Claro que existem alguns dados que comprovam essa preocupação ecológica, como o uso de CO2 na refrigeração de algumas pistas de gelo, e espero que cada edição dos JO seja cada vez mais sustentável que a sua antecessora. No entanto, preferia que se fizesse primeiro uma avaliação do impacto ambiental destes Jogos, antes de se afirmar se são ou não os mais sustentáveis. O que só poderá acontecer após a realização dos Jogos Paralímpicos [de 4 a 13 de março].

"Enquanto o mundo continuar a aquecer, os desportos de inverno estarão sempre em risco"

SD – Este estudo foca-se, também, no impacto que a neve artificial pode ter na performance dos atletas.

TK – Não sou um especialista no assunto, mas a verdade é que há atletas de elite que já se mostraram preocupados e acredito que muito destes receios se baseiem na incerteza. Houve quem considerasse a neve artificial mais dura, o que aumenta o risco de lesões mais graves em caso de queda. Mas também há quem goste de competir em superfícies mais duras, por isso, não é uma questão de estar certo ou errado.

SD – Numa altura em que os efeitos das alterações climáticas já se fazem sentir, que futuro prevê para os desportos de inverno?

TK – Enquanto o mundo continuar a aquecer, os desportos de inverno estarão sempre em risco. Um evento da dimensão dos Jogos Olímpicos arranjará sempre forma de contornar as condições climatéricas adversas, mas a verdade é que organizar eventos sem o recurso natural do qual depende – a neve, neste caso – não é só insustentável, é também irresponsável. Não só para o ambiente, mas também para a indústria desportiva, que se torna cada vez mais dispendiosa.

SD – Na sua opinião, o que deve ser feito pelas entidades responsáveis para garantir uma maior sustentabilidade nos próximos eventos?

TK – O facto dos JO estarem dependentes da produção de neve artificial não deveria ser uma surpresa, uma vez que tanto a organização como o COI sabiam perfeitamente que a neve natural seria escassa naquela região. No futuro, penso que o ideal seria reduzir a dimensão deste tipo de eventos, de forma a torná-los menos dispendiosos e invasivos, ou então optar por localizações ‘satélite’ em que a queda de neve esteja garantida. A pandemia mostrou-nos que eventos deste calibre podem decorrer em locais com pouca assistência. Uma alternativa ao que vimos este mês seria concentrar as provas ‘indoor’ na cidade anfitriã e as competições realizadas ao ar livre noutro local.

Ricardo Brancal termina em 37.º no slalom gigante
Ricardo Brancal terminou em 37.º no slalom gigante créditos: AFP or licensors

A perspetiva de um atleta

Tal como havia referido Timothy Kellison, as opiniões dividem-se também quanto à segurança da própria neve artificial. Ricardo Brancal, esquiador português que marcou presença em Pequim2022, aponta "coisas boas e más" a esta alternativa.

"É uma solução para quem não pode esquiar na neve, mas ao mesmo tempo prejudica um bocado. A superfície é diferente, mais dura, por isso a forma de esquiar também tem de ser diferente. Mas também agora há o exemplo de um atleta que está a esquiar muito bem na Taça do Mundo e que começou, precisamente, em pistas artificiais. Tem coisas boas e más, como tudo", conta o esquiador, de 25 anos.

A competir neste momento em Cerler, no norte de Espanha, Ricardo Brancal diz que os efeitos das alterações climáticas estão à vista. "Não há neve nenhuma. A Europa está a passar uma fase muito complicada. As pistas fechadas são uma alternativa, mas ao mesmo tempo acarreta gastos energéticos, que acabam por ser anti-climáticos", nota.

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"Nos últimos cinco anos, quase não foi possível fazer o campeonato nacional na Serra da Estrela, porque nunca há neve", lamentou o atleta natural da Covilhã.

O futuro também não augura nada de bom. Um relatório da organização Climate Central indica que os anfitriões da próxima edição dos Jogos Olímpicos de Inverno, Milão e Cortina d'Ampezzo, registaram uma subida de temperatura de aproximadamente 3.3 graus Celsius nos últimos 50 anos. As previsões apontam ainda para que apenas dez das 21 cidades que já receberam a prova venham a ter um clima adequado para desportos de inverno em 2050, se não houver uma redução significativa das emissões de combustíveis fósseis. Dá que pensar.