"Não poderíamos estar mais orgulhosos com tamanha mostra de solidariedade e amor no desporto. Obrigado por esta lição de vida Braima. Parabéns pelo teu coração de ouro”, esta mensagem apresentada na página oficial da ONG 'Na Rota dos Povos' e dirigida a um dos seus filhos resume da melhor forma o gesto de Fair-Play maior do atleta de 26 anos no dia inaugural do Campeoanto do Mundo de Atletismo em Doha, no Qatar.
A 250 metros do final da prova de qualificação nos 5000 metros, Braima Suncar Dabó sacrificou-se para ajudar o rival Jonathan Busby de Aruba, uma pequena ilha das Caraíbas, a cruzar a meta. O gesto mereceu aplausos ensurdecedores de todo o público presente no Khalifa Internacional Stadium. O guineense terminou com o tempo de 18:10.87 minutos, mas isso é o que menos importa.
Criado em Catió, próximo de Tombali, a mais de 300 quilómetros de Bissau, cedo o jovem Braima percebeu que no país dificilmente concretizaria o sonho de tirar uma licenciatura. Na Guiné falta quase tudo em matéria de educação: salas de aula, livros, manuais e professores.
Foi o projeto levado a cabo pela ONG na 'Na Rota dos Povos' que permitiu a Braima voar. A organização deu-lhe a oportunidade de estudar, juntamente com mais sete rapazes e sete raparigas. Foi "a procura do conhecimento" que o levou a mudar-se para Portugal em 2011. Quando viu a oportunidade agarrou-a com as duas mãos.
O que encontrou era bem diferente do que estava habituado, mas nem o choque de realidades lhe retirou a motivação de querer singrar.
"Em termos gerais é uma vida diferente da Europa. Temos uma realidade completamente diferente em termos de recursos. [Em Catió] eu ia a pé para todo o lado. Mesmo o tapete rolante no aeroporto fez-me uma enorme confusão. Senti uma enorme adrenalina, mas estava no local certo para absorver tudo e tornar-me mais completo em todos os aspetos", conta, antes de recordar o momento em que foi confrontado pela primeira vez com o frio do norte do país.
"Não é fácil para quem vem de um país tropical e depois chega cá [A Mirandela] nos finais de setembro e já começa a estar frio. Mas consegui superar isso", recorda.
Já em terras lusas e mais confortável com a linguagem crioula falada em Catió, pronunciar e escrever corretamente o português de Portugal passou a ser um dos primeiros objetivos, até porque o domínio da língua seria condição essencial para ter aproveitamento no curso profissional que começou a frequentar em Mirandela.
"Os portugueses falam muito rápido. Felizmente os professores da escola profissional criaram aulas de apoio de português, matemática e físico-química. Aproveitámos e tirámos proveito. Fico feliz e muito grato porque sem a ajuda deles nada seria possível."
As corridas essas apareceram quase por um acaso na vida do guineense, que ainda no seu país pedia dispensa às aulas de educação física.
"Eu morava muito longe da escola, a cinco quilómetros. No início do ano lectivo ainda ia a umas aulas, mas por viver longe eles dispensavam-me porque não tinha tempo para voltar a casa para tomar banho e voltar para a aula."
Deve à sua 'mãe portuguesa' Susana Antunes, tutora também de outros jovens guineenses que estudam em Bragança, o incentivo para participar na sua primeira Meia-Maratona, depois de ter ganho o gosto pelas corridas nas aulas em Mirandela.
"Na Escola Profissional de Mirandela tinha aulas de educação física e até fazíamos provas de corta-mato. Dia sim, dia não, passei a correr. Em 2014, falei com a Susana e disse-lhe que queria participar na meia-maratona do Porto. E ela disse-me. 'Vais treinar e depois vemos se vais participar ou não'. Comecei a treinar no Parque da Cidade e fiz uns amigos nesse grupo de treino, e depois conheci o Vítor Carvalho [o seu guru no atletismo]. Depois chegou o dia, fiz a meia-maratona e correu muito bem. E na altura disseram-me. 'Se fores bem orientado, podes chegar a um patamar superior no atletismo', lembra.
Depois dessa prova, Dabó conseguiu uma bolsa na IPB (Instituto Politécnico de Bragança) e acabou mais tarde por se mudar do Ginásio Clube de Bragança para o Maia Atlético Clube e foi nessa altura que pensou que poderia fazer algo no atletismo.
Os 206 quilómetros que separam a Maia de Bragança, onde se desloca todas as semanas para treinar não o assustaram, até porque essa distância parece irrisória se compararmos a realidade portuguesa com a da Guiné, onde uma viagem de 300 quilómetros demora cerca de oito horas a percorrer.
Entretanto, o trabalho desenvolvido no clube chamou a atenção do seu país natal. Acabou por ser convidado pelo presidente da Federação de Atletismo da Guiné-Bissau Renato Moura para competir nos primeiros Jogos Africanos da Praia em 2019. Para sua surpresa, mais tarde recebeu novo convite para participar nos Mundiais de Atletismo.
"Quando o telefone tocou, a primeira coisa que eu disse é que não tinha os mínimos. Eles disseram-me: 'Temos um convite para levar um atleta, o melhor que temos'. E foi apenas para participar. Voltei a falar com o meu treinador e ele disse 'Vamos à luta e vamos ver o que vamos progredir até lá.'
Em estreia numa grande competição, num ambiente "fantástico e brutal", o corredor pôde viver o sonho de participar nas eliminatórias dos cinco mil metros.
Com um nervoso miudinho inicial, mas a fazer uma prova dentro das suas expetativas, a 250 metros do final viu o atleta de Aruba, Jonathan Busby em dificuldades. Aproximou-se dele e não hesitou em carregá-lo até à meta.
"Vamos embora, vamos lá terminar porque na verdade faltava pouco", disse-lhe, antes de explicar o que lhe passou pela cabeça antes de decidir agir.
"Vi que ele já não tinha uma postura correta, a andar de lado e depois decidi agarrá-lo."
O atleta de 26 anos decidiu agir com o coração. A vitória essa já a tinha, a de terminar a prova juntamente com o colega de Aruba.
"Não pensei nos recordes, nem que poderia ser desclassificado ou algo do género. São coisas que nem me passaram pela cabeça."
O gesto não espantou quem o conhece, dentro e fora das pistas.
“Não me surpreende a atitude em si. Porque ele é uma pessoa muito solidária, com princípios muitos superiores ao que nós estamos habituados. É o Braima, é o Braima é o que apraz dizer”, conta-nos José Regalo, seu treinador no Maia Atlético Clube.
Nos dias seguintes à prova, Braima e Jonathan mantiveram contacto. O momento que mereceu o aplauso unânime do mundo do desporto deu origem a uma ligação forte entre os dois protagonistas, que o guineense pretende que seja para a vida.
"Trocamos mensagens no Instagram e de vez em quando pelo WhatsApp. Acabei por ganhar um amigo para a vida."
À chegada a Portugal, o corredor não esperava tamanha atenção mediática, que se iniciou com a recepção apoteótica no aeroporto passando pela intensa cobertura dos meios de comunicação social até porque "O que [ele] eu fiz é tão simples que não esperava nada disso. Fico feliz por esse reconhecimento e agradeço do coração”, justifica, antes de puxar pela memória a emoção que viveu assim que reviu os amigos.
"Ver ali os meus grandes amigos, a apoiar-me, falar com eles e vê-los a chorar, não tenho palavras para descrever."
Com os Jogos Olímpicos aí à porta e com 26 anos de idade, quem sabe não poderá voltar a uma grande prova de nível mundial. Para já, o atleta promete continuar a trabalhar, com a ajuda do seu treinador, apesar das limitações que o condicionam pelo facto de ter que dividir a vida de estudante com os treinos de atletismo.
"O Braima é um atleta que não é superdotado, mas é uma pessoa que tem muita força de vontade e que ainda tem alguma margem de progressão. O facto de não o acompanhar de forma sistemática torna as coisas muito mais complicadas e não tendo o grupo por perto, não facilita. Eu diria que é um atleta com potencial para evoluir, mas só o tempo o dirá. Será uma incógnita o que ele poderá fazer", analisa José Regalo.
O fundista também está ciente das dificuldades em chegar a uns Jogos [Olímpicos] e dá um pequeno exemplo.
‘Uma coisa é tirar quatro ou cinco segundos a uma marca, outra coisa é baixar quatro a cinco minutos.’
Passadas as emoções do Mundial, o guineense está agora próximo de terminar outra corrida. Está a apenas três exames de concluir a licenciatura em Gestão. Concluída essa etapa, o objetivo será o de regressar à terra que o viu nascer, para assim colocar o saber ao serviço das suas gentes. Nestes anos de ausência, as saudades foram mais do que muitas e nem a internet serviu para as enganar, confessa.
"Quero voltar, tenho muitas saudades da minha família. Falávamos na Internet, mas não é a mesma coisa. Tenho lá os meus pais, os meus irmãos, os meus sobrinhos. Mas mesmo que regresse esta também será sempre a minha casa. Não virarei as costas a Portugal. Tentarei vir cá, para ver os amigos", promete, numa altura em que está um pequeno passo de concluir o sonho.
"Vim estudar para me formar e devolver o que me foi dado, ao dar a minha contribuição e colocar o conhecimento ao serviço do povo."
Quando regressar à Guiné, Braima quer arranjar um trabalho que lhe permita conciliar com o atletismo, mas garante que nunca vai deixar de fazer o que mais gosta.
"A corrida deixa-me tranquilo e feliz. Nunca vou deixar…mesmo quando for velho, ainda vou correr, mesmo que tenha que dar só um passo de cada vez", conclui.
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