Os ponteiros dos relógios em Eugene aproximavam-se das 20h locais e Fred Kerley preparava-se para atingir o auge na carreira. Afinal, não era todos os dias que se podia chamar de 'Homem mais rápido do mundo'.

Mas na cabeça do norte-americano só aparecia a necessidade de bater o recorde de Usain Bolt e honrar quem o tinha ajudado a escolher o caminho certo. Em 100 metros, não vacilou e apenas se deu ao luxo de ser verdadeiramente 'perseguido' por dois compatriotas. Nas dificuldades que passou noutros tempos talvez já seja mais difícil encontrar rival.

No pódio dos 100 metros dos Mundiais de Atletismo estiveram, assim, três nomes. Com Marvin Bracy e Trayvon Bromell no caminho, o ouro seguiu para Fred Kerley: um atleta que conseguiu juntar o título de 'Homem mais rápido do mundo' à proeza de ter evoluído desde a categoria de corrida de 400 metros.

Os números não enganam e colocam o norte-americano no top-10 dos melhores da história, depois de ter alcançado a marca de 9,86 segundos. Com a renovação de gerações no atletismo, é legítimo o espírito ambicioso de chegar ao pódio mundial.

Com a marca histórica registada no passado domingo, houve quem despertasse alguma curiosidade sobre o nome de Fred Kerley. E, na verdade, há razão para tal, uma vez que só a capacidade de fugir dos problemas que passou na infância e juventude permitiram ao atleta de 27 anos poder chegar onde chegou.

A infância de Fred Kerley e o papel da 'tia Virginia'

Normalmente, nas provas de desporto, falamos num amuleto de sorte que acompanha os atletas nas suas conquistas. Na 'corrida' de Fred Kerley para fugir a todos os problemas que a infância e a juventude lhe iam trazer, o amuleto para o sucesso não veio dos parentes diretos, mas sim de Virginia Meme, tia do atleta. "Sem ela eu provavelmente não estaria aqui. Eu não seria um atleta de elite e quem sabe o que seria de mim.", contou Kerley depois da mais recente conquista.

A verdade é que a infância tinha tudo para correr mal. Com o pai preso e com a mãe a seguir um caminho "errado" na vida, o destino do menino de dois anos acabou nos braços da tia, juntamente com mais 12 crianças (os primos e irmãos de Kerley).

Mas também coube a si próprio distinguir o certo do errado. O atual rosto dos 100 metros nos Mundiais de Atletismo de 2022 viu amigos e familiares também talentosos perderem-se por maus caminhos. "Eles eram ótimos, mas de repente, quando terminaram o ensino médio, tomaram o mesmo caminho que os seus irmãos mais velhos", explicou.

Para poder alcançar a marca do passado fim-de-semana, Kerley teve de ser diferente desde cedo. "Desde muito jovem, convenci-me de que não podia fazer isso, que não podia acabar como eles. Eu queria ter estudos, viajar pelo mundo, seguir em frente. O atletismo permitiu-me fazer isso e a minha tia ajudou-me no processo", acrescentou.

Fred Kerley podia ter sido jogador de futebol americano - ainda hoje a sua modalidade preferida - ou de basquetebol, mas quis o destino que abraçasse o atletismo depois de uma lesão em que partiu a clavícula. A paixão pelo desporto veio desde os tempos em que era um jovem estudante na Taylor High School e foi algo que passou a correr pelas veias familiares. Com vários primos atletas de futebol americano, destaque para Jeremy Kerley, que jogou oito temporadas na NFL e com uma passagem significativa nos New York Jets.

Mas a tia Meme não foi o único amuleto. A crença e a fé também ajudaram Fred a desviar-se dos maus caminhos. Quando tinha 12 anos, fez uma tatuagem que ainda hoje o acompanha nas suas conquistas. "Louvado seja, minha alma, o Senhor! Senhor meu Deus, você é grande; você se vestiu de glória e majestade" (Salmo 104), pode ler-se no lado direito da zona peitoral do atleta.

Se para um homem que vive com várias tatuagens é natural ter algo relacionado coma crença, ainda faz mais sentido que tenha uma homenagem a quem o guiou para o que é hoje. "A tatuagem que mais significa para mim está dentro do meu braço esquerdo: Meme. Sem ela, não sei qual seria a minha vida. Não sei onde estaria, se estaria com meus pais ou se estaria em apuros. É por isso que, onde quer que eu esteja no mundo, eu chamo sempre a minha tia Virgínia, todos os dias. Mudou a minha vida, fez a minha vida. Ela será sempre a minha força.", voltou a frisar Kerley a respeito da tia Virginia.

A passagem dos 400 metros para os 100 metros vitoriosos

O que também distingue Fred Kerley dos restantes é que o atleta norte-americano foi capaz de evoluir do patamar de 400 metros para 100 metros em corrida. E mais uma vez foi o destino que assim o quis. Os 400 metros eram a categoria vitoriosa de Kerley, onde, entre várias conquistas, recebeu a medalha de bronze nos Mundiais de 2019 no Qatar.

Talvez no passado domingo teríamos visto de novo o norte-americano nos 400 metros se em 2021 um problema no tornozelo não o empurrasse mais para a marca dos 100 metros. O apuramento para os Jogos Olímpicos de Tóquio deveria, assim, significar um 'jogar pelo seguro', mas mostrou que até havia futuro sem ser nos 400 metros.

Kerley não só apurou-se para os grandes jogos, como esteve perto de receber a medalha de ouro. Foi mesmo por uma unha negra: quatro segundos separaram-no do auge alcançado por Marcell Jacobs, que atingiu os 9,80 segundos.

Se tudo isto já parecia um sonho, o que dizer do facto do norte-americano se ter tornado num dos três melhores atletas de sempre a conseguir menos de 10 segundos em 100 metros, menos de 20 segundos em 200 metros e menos de 44 segundos em 400 metros?

O melhor até agora está feito, mas os números ainda estão distantes do recorde mundial. Mas deixar de acreditar não parece fazer parte do dicionário de Fred Kerley, e o passado que o diga. O atleta diz mesmo que se não seguisse o 'bom caminho' poderia hoje já estar preso ou morto.

Até lá, ficam os festejos à moda de Conor McGregor com o grito de fundo do único país que representou no pódio: os EUA.

Para chegar ao recorde mundial de todos os tempos, é preciso destronar o registo de Usain Bolt com 9,58 segundos nos Mundiais de Berlim em 2009. Kerley queria ultrapassar já essa marca, mas ainda não foi desta. Talvez no dia em que bata o recorde do jamaicano se possa dizer que a maior corrida, afinal, não foi a fugir dos problemas do passado.