Se é cliente da Netflix, é bastante provável que já se tenha cruzado com o documentário "The Deepest Breath" (lançado em português com o nome "De Tirar o Fôlego"). O filme, que chegou a estar no top dos mais vistos da plataforma no último verão, debruça-se sobre uma prática altamente perigosa, mas que, paradoxalmente, tem vindo a atrair cada vez mais aficionados: o mergulho em apneia.

Sem recurso a botijas de oxigénio, com ou sem barbatanas, os mergulhadores tentam descer o mais fundo possível no oceano, procurando bater recordes de distância. Na modalidade de imersão livre, por exemplo, o mergulhador vai puxando uma corda, o que o ajuda a poupar energia. Nesta vertente, o recorde do mundo pertence atualmente ao russo Alexey Molchanov, que desceu até aos 133 metros e voltou à superfície em 04:42 minutos, no Dean's Blue Hole, nas Bahamas.

São várias as atividades (recreativas ou competitivas) praticadas em apneia: 'snorkeling', caça submarina, pesca submarina, natação com barbatanas, fotografia subaquática, râguebi subaquático, hóquei subaquático, tiro subaquático, e também disciplinas não tuteladas pela Confederação Mundial das Atividades Subaquáticas (CMAS), como a natação artística (sincronizada). No entanto, é exclusivamente no mergulho livre competitivo (ou 'freediving') que se centrará este artigo.

O cartaz do documentário
O cartaz do documentário O cartaz do documentário "The Deepest Breath" créditos: Netflix

Voltando a "The Deepest Breath" – e atenção a quem ainda não viu e não quer saber o que acontece –, o documentário relata o percurso da italiana Alessia Zecchini, detentora de vários recordes mundiais da modalidade, que procurava ultrapassar o registo da lendária Natalia Molchanova, naquele que é apontado como "o local de mergulho mais perigoso do mundo".

No Mar Vermelho, junto à localidade de Dahab, no Egito, existe um buraco azul com 120 metros de profundidade, mas cuja principal atração é um túnel subaquático chamado "O Arco". O túnel em questão conduz ao mar aberto e tem 26 metros de comprimento, sendo que o seu teto encontra-se a 55 metros da superfície e o chão a 120 metros. Estima-se que entre 130 e 200 pessoas tenham perdido a vida no local, nos últimos 15 anos.

O recorde de Molchanova no Blue Hole de Dahab era de 127 metros; Zecchini queria chegar aos 128. A apoiá-la neste objetivo estava Stephen Keenan, um mergulhador de segurança, cuja função é acompanhar outros mergulhadores no regresso à superfície e prestar assistência se algum deles perder a consciência.

Na tentativa realizada a 22 de julho de 2017, Zecchini deveria encontrar-se com Keenan do outro lado do túnel, mas os dois desencontraram-se por 30 segundos; quando o irlandês encontrou a italiana, que entretanto continuou a nadar, esta estava desorientada. O mergulhador de segurança gastou todas as suas forças para a levar de volta superfície, antes de perder os sentidos – Zecchini também desmaiou, mas ficou a boiar virada para cima, ao contrário de Keenan, o que acabou por ser fatal.

Alessia Zecchini e Stephen Keenan
Alessia Zecchini e Stephen Keenan Alessia Zecchini e Stephen Keenan créditos: Netflix

A própria Natalia Molchanova, uma das maiores referências da modalidade, desapareceu enquanto mergulhava ao largo da ilha de Formentera, no Mediterrâneo, em 2015. No entanto, a realizadora do documentário, Laura McGann, assumiu que um dos objetivos do documentário foi combater a ideia de que os mergulhadores em apneia "têm algum tipo de desejo de morte horrível".

Carolina Schrappe, detentora de 14 recordes sul-americanos de 'freediving', nunca pensou que um mergulho seu pudesse ser o último. "Nunca senti medo de morrer, nem que estava a arriscar a minha vida", começa por dizer ao SAPO Desporto.

"O risco é sempre muito calculado. Só participo numa competição ou tento bater um recorde se me sentir segura naquilo que estou a fazer. E há sempre uma equipa de segurança à nossa volta para nos ajudar", explica.

Natural de Curitiba, no Brasil, Carolina Schrappe, que é também formada em fisioterapia, passou recentemente por Portugal para participar no evento "Diving Talks", um congresso internacional de mergulho. Descer às profundezas do mar traz-lhe uma sensação de "paz".

"Quando era criança, brincava muito com o meu pai e com os meus irmãos para ver quem ficava mais tempo a suster a respiração debaixo de água. Só mais tarde é que comecei a estudar os benefícios da apneia. Uma das coisas que mais me atrai é a sensação de autocontrolo e autoconhecimento que se ganha estando num fundo do mar, um estado de relaxamento profundo", revela Carolina, que por várias vezes ultrapassou os 100 metros de profundidade.

Um desporto anti-adrenalina (quem diria?)

Muito antes de se tornar uma disciplina desportiva, o mergulho livre começou com o único propósito de encontrar comida ou produtos para vender, como era o caso das mergulhadoras Ama, no Japão, que se dedicavam à recolha de marisco, algas e pérolas, ou dos colecionadores de esponjas na Grécia antiga.

Os Bajau, comunidade nómada da Indonésia, têm um baço 50% maior do que populações vizinhas, o que lhes permite permanecer mais tempo debaixo de água – lança glóbulos vermelhos oxigenados na circulação, produzindo um aumento de até 9% no oxigénio que chega às células.

Foi só no século 20 que o mergulho em apneia tornou-se uma prática desportiva, a nível recreativo e competitivo. Em 1949, o piloto italiano Raimondo Bucher fixou a primeira marca oficial, ao atingir 30 metros de profundidade no Golfo de Nápoles; já o francês Jacques Mayol, o primeiro mergulhador a atingir os 100 metros, em 1976, levou o 'freediving' por um caminho mais espiritual, recorrendo à meditação e ao ioga na preparação para um mergulho.

Os Bajau
Os Bajau Os Bajau créditos: DR

Em "The Deepest Breath", o mergulho em apneia é apresentado como um desporto extremo e contranatura; mesmo quando não acaba em tragédia, existe a possibilidade de causar danos no tecido pulmonar, devido à pressão subaquática, que podem originar problemas de saúde a longo prazo.

No entanto, a ocorrência de problemas clínicos durante a prática deste tipo de atividades "é rara e advém, na maior parte das vezes, do não cumprimento das regras básicas de segurança", segundo Marcos Miranda, médico da CUF especializado em Desporto.

"Considero-me uma atleta conservadora, tenho muitos cuidados e desde que comecei a apneia que faço exames frequentemente. Nunca tive nenhum tipo de lesão ou sequela, nem tenho medo de vir a ter", diz Carolina Schrappe, que é instrutora de 'freediving' desde 2009, mas já mergulha há mais de 20 anos.

Ainda assim, os desmaios são frequentes entre os praticantes de mergulho livre, com a grande maioria a acontecer nos últimos dez metros da subida à superfície. "Tive cinco 'blackouts' na minha carreira, o que é muito pouco para uma atleta do meu nível", conta a brasileira, de 48 anos.

"Todas as vezes em que apaguei foi quando tentava bater recordes, ou seja, quando tentava superar os meus próprios limites. Mas há coisas que fazemos no dia a dia que podem causar esses ‘blackouts’, seja não me ter alimentado direito ou ter dormido pouco na noite anterior. Cabe a cada um perceber o que correu mal nesses incidentes", ressalva.

Carolina Schrappe
Carolina Schrappe Carolina Schrappe créditos: Instagram Carolina Schrappe

Um dos mitos associados ao 'freediving' tem a ver com a ideia (errada) de que o atleta deve respirar profunda e frequentemente antes do mergulho.

"Ao contrário do que habitualmente se pensa, [o mergulhador] não só não consegue absorver mais oxigénio para prolongar o mergulho (a hemoglobina – proteína do sangue que transporta o oxigénio – já está saturada ao máximo em condições normais), mas poderá mesmo originar perda de consciência, ainda na profundidade, por falta de oxigénio", indica Marcos Miranda.

"Ao hiperventilar, vai diminuir o teor de dióxido de carbono normal do sangue e é precisamente a acumulação deste gás que constitui um estímulo poderoso que dá a informação ao cérebro de que necessitamos de respirar", acrescenta.

"Nunca senti medo de morrer, nem que estava a arriscar a minha vida. O risco é sempre muito calculado"

Acredita-se que foram os conhecimentos de mergulho em apneia que ajudaram a surfista Maya Gabeira a aguentar o máximo de tempo possível submersa, depois de cair numa onda gigante na Praia do Norte, na Nazaré, em 2013.

Dois anos antes do acidente, a surfista brasileira tinha feito um curso especializado com Kirk Krack, responsável pelo treino dos atores e da equipa técnica para o filme "Avatar: O Caminho da Água", de James Cameron.

"Todas as pessoas têm capacidade para ficar entre quatro a cinco minutos, pelo menos, em apneia. Basta treinar a respiração de forma correta, com segurança. Isso ajudou à sobrevivência dela [Maya Gabeira]", conta ao GloboEsporte a veterana Karol Meyer, detentora de vários recordes mundiais de mergulho livre, entre os quais um impressionante registo de 18 minutos e 32 segundos debaixo de água (em apneia estática).

"O nosso organismo é uma máquina maravilhosa, preparada para nos salvar nas mais diversas situações. Quando estamos debaixo da água, numa situação de hipoxemia (baixa concentração de oxigénio no sangue), temos um mecanismo de defesa em que a epiglote (uma espécie de válvula, localizada no inicio da traqueia e esófago) bloqueia a passagem de qualquer substância em direção à traqueia, evitando assim que a água chegue até aos pulmões. Aliado a isto teremos o desmaio, ou apagamento, que é na verdade um outro mecanismo de defesa, como se o corpo ficasse em 'stand-by', no modo mais económico possível, tudo isto para que ainda haja oxigénio para os órgãos vitais", explica Karol Meyer.

Com a apneia aprende-se, acima de tudo, a "estar em total controlo sobre a mente e o corpo". "Quando algo corre mal e entramos em pânico, é muito fácil perder o controlo. A apneia ajuda-nos a estar em profundo relaxamento", sublinha Carolina Schrappe.

Vídeo: Kirk Krack aborda técnicas de mergulho livre no filme "Avatar: O Caminho da Água"

Mergulhar em apneia… no gelo

Foi no passado dia 15 de março que David Vencl quebrou o recorde mundial de mergulho livre em águas geladas. Sem fato de proteção, com a água a uma temperatura entre 1 a 4 graus Celsius, o mergulhador checo conseguiu descer até 52,1 metros de profundidade numa abertura feita no Lago Sils, em St. Moritz, na Suíça.

Demorou um minuto e 54 segundos para descer e voltar à superfície. Quando finalizou o mergulho, Vencl tinha sangue na boca, mas uma visita posterior ao hospital confirmou que estava bem de saúda. “Estou habituado à dor”, justificou então o mergulhador.

“Para ele não é nada difícil estar na água fria… A falta de oxigénio é algo normal para ele. Mas isto foi completamente diferente porque é muito difícil trabalhar com a pressão nos ouvidos em água fria”, explicou o seu promotor, Pavel Koulous.

David Vencl, de resto, já tinha um recorde no livro do Guinness por nadar 80,99 metros num lago gelado na República Checa, em 2021.