“Quando chegarmos ao ponto em que o jogador gay não conviva mais com o medo de chamar a atenção dos tablóides ou de ser evitado pelos companheiros, em que não terá qualquer receio de esconder quem realmente é, aí, sim, o facto de se assumir não terá importância. Mas ainda não chegamos lá.” As palavras de Jason Collins, primeiro atleta no ativo num campeonato profissional dos Estados Unidos a assumir a sua homossexualidade (fê-lo em 2013, quando estava ao serviço dos Washington Wizards), denunciam uma realidade que teima em não mudar no mundo do desporto.
Ser atleta de alta competição e gay continua a parecer incompatível nos dias que correm. O caso muda um pouco de figura se a carreira do jogador já tiver terminado. Aconteceu com todos os que assumiram tal orientação sexual. O próprio Jason Collins acabou por se retirar do basquetebol cerca de um ano depois. Em Portugal não há memória de qualquer atleta de primeiro plano ter dado esse passo. Contudo, há uma equipa de râguebi em Lisboa que tem procurado marcar a diferença... pela igualdade.
Chamam-se Dark Horses, são federados e jogam no Campeonato Nacional de Equipas Emergentes. E são maioritariamente gays. “Tudo começou com um amigo que decidiu criar uma equipa de râguebi semelhante às que existiam já em Inglaterra e noutros países. Uma equipa inclusiva, aberta a todo o tipo de pessoas, independentemente da sua orientação sexual, religião, etnia...”, conta orgulhoso Pedro Carita, 39 anos, o único ‘sobrevivente’ da primeira formação criada em 2009. Foi nessa altura que teve o primeiro contacto com a modalidade.
“Não é fácil começar a jogar râguebi a partir dos 30 anos, que foi o que aconteceu com a maioria das pessoas que aqui estão, mas isso vai ao encontro daquilo que o clube representa: a integração pelo desporto”, refere. E nem o género é impedimento. “Aceitamos muitas vezes raparigas. Elas não podem competir, porque a Federação não permite competições mistas nestas idades, mas sempre que fazemos torneios mais familiares, temos raparigas a jogar connosco”, confidencia.
Terry Martins, capitão dos Dark Horses, começou como jogador de voleibol mas foi no râguebi que descobriu a sua zona de conforto, há seis anos. “Na altura não tinha nenhuma experiência, mas era uma modalidade que até me despertava alguma curiosidade e que gostava de experimentar. Larguei o voleibol e nunca mais saí daqui. É aqui que me sinto bem”, afirma.
Tanto Terry como Pedro, de resto, nunca sentiram que a sua homossexualidade tivesse criado barreiras durante a passagem por outras equipas. “Já estive noutros clubes à experiência e nunca me senti discriminado. Há uns anos, quando comecei, talvez sentisse um pouco mais isso, mas neste momento já não se sente tanto o olhar de lado”, diz o primeiro. “Senti-me sempre integrado, mas também nunca tive necessidade de me abrir”, acrescenta o segundo. Uma equipa como os Dark Horses acaba, portanto, por facilitar essa abertura.
Com um conceito diferente das demais equipas, poderá haver quem confunda a premissa de inclusão dos Dark Horses como uma forma de auto-exclusão. Quem está lá dentro diz que não é assim. “Sinceramente, não concordo. o facto de sermos inclusivos convida todo o tipo de pessoas a virem para a nossa equipa e o facto de jogarmos com outras equipas permite que esse medo da exclusão não exista. Não perguntamos a orientação sexual a quem entra”, explica Pedro.
O caso de José Ricardo dos Santos, ou Jossan, como gosta de ser tratado, é prova disso mesmo. Fez parte da Força Aérea durante seis anos e é um dos poucos heterossexuais num grupo composto por 25 elementos. Mesmo não partilhando a orientação sexual da maioria, sente-se completamente integrado.
“Estava a atravessar uma fase complicada a nível pessoal, sentia-me em baixo. Conhecia o Terry, sabia que ele jogava numa equipa de râguebi e ele convidou-me para vir cá experimentar, sem compromisso. Fui muito bem recebido e fiz grandes amizades aqui”, começa por contar.
“Não sou homofóbico. Sabia para o que vinha. Se calhar senti mais pressão da parte deles do que eles da minha. Mas integrei-me logo e ao fim de uma semana de treino parecia que já está cá há muito mais tempo. A única diferença é que eles têm a sua orientação sexual e eu a minha. O que há, acima de tudo, é muito respeito e espírito de entreajuda”, explica.
Da resistência da Federação às bocas dos adversários
Era inevitável. O aparecimento de um projeto como o dos Dark Horses, com um plantel na sua maioria gay, iria sempre causar impacto. A começar pela própria Federação Portuguesa de Râguebi. “A aceitação da Federação não foi fácil. Só fomos aceites à terceira votação, depois de alguma discussão sobre o assunto. É como tudo na vida: primeiro estranha-se, depois entranha-se”, diz Pedro.
“Quando começámos a jogar no Campeonato Nacional de Equipas Emergentes – e na altura éramos mesmo uma equipa emergente – as outras equipas e jogadores sentiam algum desconforto em jogar connosco. O râguebi é uma modalidade muito física, de contacto, há sempre algum receio... Um colega meu chegou a ouvir um jogador adversário dizer: ‘Eu não vou jogar contra os pane******’”, recorda, por sua vez, Terry.
E como se combate essa discriminação? “Dentro do campo. Respeitando os adversários, mas também não deixando que nos faltem ao respeito. Se for necessário, com uma placagem bem dada, tal como também fazem connosco”, acrescenta o capitão dos Dark Horses. “A verdade é que o início foi muito duro para nós, perdíamos todos os jogos. Mas com o treino fomos lá e quando começámos a ganhar jogos e torneios, eles começaram a perceber que éramos uma equipa como as outras. E a partir daí conquistámos o nosso espaço.”
No caso de Jossan, as ‘bocas’ vêm de fora do contexto desportivo. “Por vezes, quando falo que jogo râguebi numa equipa onde a maior parte dos jogadores é homossexual, isso causa alguma estranheza. Muitas vezes perguntam o que é que se passa comigo ou se eu estou a esconder alguma coisa. Estou de consciência tranquila, não vivo da opinião dos outros”, diz.
Porquê Dark Horses?
Quando a equipa de râguebi nasceu chamava-se Boys Just Wanna Have Fun. “O nome diz tudo”, começa por dizer Pedro. “Mas depois pensámos: ‘Não faz muito sentido termos este nome se queremos ter cá raparigas a jogar. Decidimos, então, criar a associação, mantendo o nome apenas pelo carinho que ele nos desperta”, refere.
Surgiu então o nome Dark Horses, “os cavalos que numa corrida não são favoritos, em que ninguém aposta e que acabam por ganhar”, explica Terry. E os Dark Horses estão a ganhar? “Estão sempre a ganhar, independentemente dos seus objetivos. O râguebi tem passado por algumas dificuldades ultimamente, mas a equipa tem sobrevivido e vai continuar a sobreviver”.
A Associação BJWHF celebrou esta quinta-feira oito anos de existência. Durante esses oito anos, alguns passos foram dados em direção a uma prática desportiva mais inclusiva. Apesar de tudo, e pegando nas palavras de Jason Collins no início deste texto, ainda há um longo caminho a percorrer.
Comentários