Viana do Castelo, Portugal - O Atlântico azul e profundo na praia do Cabedelo. O vislumbre desse enorme corpo de água salgada que se une ao claro da areia é provavelmente uma das visões que transmite maior tranquilidade ao ser humano.
Marta Paço, 14 anos, nasceu cega, devido a uma condição rara, a amaurose congénita de Leber (ACL). Por isso, só pode imaginar como o mar se parece. O escuro / claro que consegue distinguir não lhe permite experienciar o azul do Oceano.
Guiada pela perceção sensorial e pelos sinais do treinador, através do toque e da voz, a surfista de Viana do Castelo, com pouco mais de um ano na modalidade, participou no Campeonato do Mundo de surf adaptado em La Jolla, na Califórnia, onde conquistou a medalha de bronze, em dezembro de 2018.
A entrevista estava combinada para as 14h30 de uma quarta-feira. O ponto de encontro foi no CAR (Centro de Alto Rendimento), em Darque, Viana do Castelo. Somos recebidos por uma rapariga de rosto doce e discurso sereno. E é com essa tranquilidade que Marta nos descreve essa relação com o mar.
"É no mar onde me sinto mais segura e onde tenho mais liberdade porque lá não há obstáculos como na rua. No máximo eu bato contra a água ou contra a areia", conta-nos a surfista.
A atenção e a ponderação com que responde às perguntas desmentem a idade no bilhete de identidade. Não é a primeira onda de entrevistas, depois da atenção mediática após o lugar no pódio. A firmeza na voz não lhe foge, mesmo nos momentos em que aborda as limitações.
"Eu acho que a minha maior limitação é perceber quais são as melhores ondas e quais são as ondas e qual é a melhor maneira de eu as surfar."
"É no mar onde me sinto mais segura"
É o companheirismo entre o instrutor e o atleta, e a relação próxima que se desenvolve entre ambos, que distingue o surf adaptado. A relação é de confiança e só poderia ser. Dela depende a segurança de Marta.
"Desenvolve-se uma relação muito próxima porque o atleta tem que confiar no treinador, assimilar a informação e estar à vontade dentro de água", conta-nos Gonçalo Cruz, técnico de 26 anos que neste momento acompanha a surfista da Póvoa de Varzim.
O à vontade de Marta no meio aquático não faz descurar o olhar atento do treinador, mas o trabalho do Gonçalo começa bem antes de se pisar a areia.
"A Marta é muito autónoma, equipa-se sozinha [no Surf Clube de Viana], já conhece o espaço, mas é necessária uma fase de conhecimento. Com a cegueira é necessário perceber até que ponto um atleta é autónomo ou até que ponto ele quer o nosso apoio", relata.
15h48 - A cumplicidade entre Gonçalo e Marta, enquanto caminham de mãos dadas para a praia do Cabedelo faz lembrar um postal ilustrado.
O aquecimento faz-se sem demoras, as instruções são ouvidas com um aceno atento de Marta. À falta de um sentido, as orientações são cuidadosamente ouvidas. O dia é de sol. Apesar do vento, convida a umas ondas. O treino é seguido à distância por quem não trocou o calçado de trabalho por uma havaiana.
"Parte integrante da sessão de surf [adaptado] é uma análise das condições do mar em que podemos recorrer a um toque no braço. Dou-lhe uma explicação do pico para que ela perceba o melhor possível a zona em que ela vai surfar”.
Trabalhar com atletas com limitações como cegueira fez com que saísse da zona de conforto, mas isso também lhe proporcionou grandes recompensas.
"Para já trouxe-me muita satisfação pessoal porque a envolvência do atleta é enorme. Eles de facto estão ávidos por aprender e isso para um treinador é ótimo. Ganhei também a capacidade para pensar e como adaptar o surf. Eu antes dava aulas a um só tipo de atletas e aprendi a adaptar o surf a pessoas com necessidades."
Marta, a radical
"Radical", Marta começou a praticar desporto desde o primeiro ano de idade. Primeiro começou na natação, depois veio a equitação e o skate, onde já demonstrava um equilíbrio e instinto fora do comum. A proximidade da praia - a 2 quilómetros de casa – a ligação da família à pesca e um conjunto de acasos acabaram por levá-la para o surf.
"A Marta sempre foi muito radical, quis experimentar os patins da irmã, andar de bicicleta, jogar à bola"
"Eu tinha um café na altura, os instrutores paravam por lá. 'Então a Marta não é cega?, perguntavam-me. Eu respondia que sim. 'Mas ela anda tão bem de skate, tem bom equilíbrio, o surf é um skate em cima da água, se calhar era bom ela experimentar’, disseram-me. Foi nas férias de Carnaval", recorda. "Levaram-na e foi assim. A Marta sempre foi muito radical, quis experimentar os patins da irmã, andar de bicicleta, jogar à bola", conta-nos Dulce Paço, a mãe da atleta.
De coração nas mãos nas primeiras vezes em que a filha se colocou em cima de uma prancha, Dulce sabia, porém, que Marta ia estar bem entregue.
"Sabia que ela ia estar acompanhada por pessoas responsáveis e sendo surf adaptado explicaram-me que alguém estaria sempre na água com ela, que nunca iria sozinha, isso deu-me um certo conforto."
Desde aí, passaram dois anos entre a primeira onda até à participação no Mundial de Surf Adaptado, em La Jolla, na Califórnia (EUA), no passado mês de dezembro.
"Eu comecei um bocado na brincadeira. Nunca pensei competir no início, mas depois essa ideia também conseguiu a surgir. O Surf Adaptado também se estava a desenvolver por isso eu aceitei essa ideia e comecei a competir", recorda Marta, que tão cedo não vai esquecer a aventura nos Estados Unidos.
"Foi uma experiência inesquecível porque eu nunca tinha ido aos Estados Unidos e ir lá para surfar era o ideal para mim. Adoro surfar, adorava ir aos Estados Unidos, então juntou-se o útil ao agradável e foi muito boa a experiência", recorda, sublinhando o apoio essencial dos colegas na primeira competição em que participou além fronteiras.
"Fui com a Camila Abdula e o Nuno Vitorino, acho que toda a equipa me apoiou bastante e eu também tentava apoiá-los no máximo possível. Nos hits, eu estava sempre a torcer por eles. Eles têm muito mais experiência do que eu e isso ajudou-me".
Já a presença da mãe serviu-lhe de porto de abrigo e foi talismã para a medalha de bronze conquistada na Califórnia.
"Fui acompanhada pela minha mãe e não teria sido a mesma coisa sem o seu apoio psicológico"
"Fui acompanhada pela minha mãe e não teria sido a mesma coisa sem o seu apoio psicológico. Foi tudo muito de repente, eu não estava à espera e minha mãe foi essencial, até na minha vitória. Ela apoiou-me mas ela tem sempre receio, ela não gosta particularmente de me ver a surfar, mas acho que ela com o tempo se vai habituar."
"Ela apoiou-me mas ela tem sempre receio, ela não gosta particularmente de me ver a surfar, mas acho que ela com o tempo se vai habituar."
A viagem também vai ficar para sempre na memória de Dulce, sobretudo porque não esperava o peso extra do bronze na bagagem.
"Não estávamos habituados a viajar sem o pai e sem a irmã. Fomos as duas e foi giro. Foi uma experiência única mesmo". Única sim, bem se pode dizer isso, já que Marta acabou por surpreender vencendo a medalha de bronze na classe AS-VI.
"Só caí em mim depois de ter acontecido e do impacto que causou.", recorda.
Marta Paço terminou a final com 3,73 pontos, menos 11,11 pontos do que a vencedora, a britânica Melissa Reid.
Durante a visita ao CAR de Viana não pudemos ignorar o facto do nome da atleta de 14 anos estar marcado em praticamente todas as paredes e pranchas de surf do espaço. Marta servirá de fonte de inspiração para a organização do próximo Campeonato do Europa de Surf Adaptado, que terá lugar em maio na praia do Cabedelo.
"Só caí em mim depois de ter acontecido e do impacto que causou."
"Eu acho que a Marta é uma atleta espectacular, o clube tem também outros atletas espectaculares. De facto foi um ramo por onde este clube enveredou e foi-se desenvolvendo e com sucesso e cada vez nos conseguimos adaptar melhor para darmos resposta a outros atletas que vão aparecer e também promover essa prática desportiva na nossa comunidade", refere Gonçalo.
Também Dulce espera que o exemplo da filha possa inspirar outros jovens com limitações a praticarem desporto.
"Ela recebeu muitas mensagens de várias modalidades, que ela tinha servido de inspiração. Um exemplo de que as pessoas não se podem limitar à deficiência que têm e podem aspirar a outros voos."
"Ela recebeu muitas mensagens de várias modalidades, a dizer que ela tinha servido de inspiração. Um exemplo de que as pessoas não se podem limitar à deficiência que têm e podem aspirar a outros voos."
Motivo de orgulho para o Surf Clube de Viana, o título não tirou o norte a Marta Paço. Apesar de jogar em casa, a atleta não pensa em medalhas no próximo Campeonato da Europa.
"Sinto que orgulho este clube, mas não sou só eu, mas há outros atletas que passaram por aqui e ainda estão cá. Não há pressão para acabar no pódio. Eu quero competir e ser cada vez melhor, aproveitar as técnicas das pessoas e treinar para ser cada vez melhor."
Não esqueça o leitor que Marta ainda tem 14 anos. Boa aluna, em todas as disciplinas, a vianense não arrisca um palpite sobre o quer ser quando for grande. Uma coisa é certa, o surf não vai largar tão cedo.
"Gostava de continuar a surfar, mas também fazer um curso e ter uma profissão...Qual? Ainda não sei."
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