Duas vezes por semana, 30 raparigas da localidade são-tomense de Santana trocam as tarefas domésticas pela prancha de surf, desporto até há pouco reservado aos rapazes, num projeto de uma organização portuguesa para mostrar que elas “são capazes”.
No centro da localidade piscatória de Santana, leste da ilha de São Tomé, o clube de surf guarda pranchas de todos os tamanhos, alinhadas junto à parede. Numa estante, está pendurada uma prancha com o fundo da bandeira nacional e autografada. Há material de surf, conchas e artesanato e muitas fotografias de ondas e de jovens surfistas.
Mesmo ao lado do clube, mulheres e crianças lavam roupa e loiça num pequeno curso de água.
Cinco raparigas, abrangidas pelo projeto SOMA (Surfista Orgulhosa na Mulher de África), têm uma sessão de surf agendada, mas só podem ir depois de ajudarem as mães. Terminadas as tarefas, entram no clube e cada uma escolhe uma prancha e espalha ‘wax’ (cera). Um cenário improvável até há pouco tempo.
Criado durante a pandemia por Francisca Cerqueira, assistente de bordo e praticante de surf, a SOMA conjuga terapia de surf com sessões de empoderamento feminino, psicoeducação e apoio académico, explica à Lusa Rita Vilaça, gestora do projeto, que vai já na terceira edição.
“O grande objetivo é não só pôr as raparigas a surfar, mas crescer com estas miúdas e dar-lhes mecanismos para elas poderem fazer o que quiserem e se sentirem mais empoderadas”, diz.
As 30 raparigas abrangidas por cada edição, com a duração de seis meses, fazem surf duas vezes, enquanto nos restantes dias trabalham temas como o empoderamento feminino.
“Consiste muito em falar-lhes sobre o papel da mulher e fazê-las pensar sobre quais são as oportunidades que têm e o que podem fazer por elas”, refere Rita Vilaça, explicando que também passa por dar exemplos de mulheres que se destacaram e, “de uma maneira muito leve, ir introduzindo conceitos que cá ainda não existem”.
“É óbvio que para elas quem vai lavar a roupa e os pratos são as mulheres, e nós às vezes pomos isso um bocadinho em causa: será que podem ajudar todos em casa”, ilustra.
Foi também a SOMA que organizou, no ano passado, o campeonato nacional de surf, em que as raparigas também competiram, pela primeira vez, e tiveram o mesmo ‘prize money’ (prémio monetário) que os rapazes, uma reivindicação ainda premente no mundo do desporto.
Maura, 12 anos, sagrou-se campeã nacional, um feito que quer ver outras raparigas alcançarem: “Aquelas que não conseguiram ganhar, que possam treinar muito e noutro ano possam ganhar”, diz.
Com um colar de missangas com uma prancha de surf ao pescoço, Maura resume o efeito que o projeto teve na sua vida: “Mudou o meu comportamento. Sinto-me empoderada”, descreve, naquele sotaque com o ‘r’ carregado típico de São Tomé e Príncipe.
Segundo Rita Vilaça, a principal mudança é a forma como estas raparigas ganham confiança.
“Vemos na forma como se sentem confortáveis em pertencer ao clube de surf, em virem surfar, se sentem orgulhosas por serem surfistas e participarem no campeonato nacional”, diz a coordenadora do projeto.
Uma das vertentes da intervenção é a psicoeducação, em que trabalham as emoções.
“Ajuda-as a perceber melhor o que se está a passar na vida delas, quando estão chateadas. Vemos uma grande diferença na maneira como elas lidam com alguns problemas, na motivação para irem à escola, na interação entre elas como equipa”, relata.
O projeto também tem reflexos nos rapazes, comenta Rita Vilaça. Além de ter facilitado o relacionamento entre eles e elas, foram os membros do clube de surf que disseram recentemente que querem que três raparigas passem a integrar o clube.
“Elas ganham uma voz no clube de surf e também ali na comunidade”, destaca a responsável.
Para Leonora, 15 anos, a estudar no 10.º ano, este projeto é sinónimo “de igualdade”.
“Eu achava que o surf não era para meninas. Este projeto é para mostrar que nós somos capazes, que somos tão boas como os rapazes a surfar”, afirma.
Se não estivesse integrada na SOMA, como seria a vida desta adolescente são-tomense? “Não podia conhecer muitos lugares, não podia andar, só ficava em casa a fazer os deveres de casa”, aponta.
“O desafio é tentar encaixar a escola, o trabalho que elas têm em casa, e que continuam a ter, e a SOMA. Nós falamos com as famílias, que quando começam a perceber a vantagem que isto tem, o que nós estamos a dar, também acabam por ser recetivas”, adianta Rita Vilaça.
Desde Santana até à praia das Sete Ondas, o percurso de carro faz-se em 15 minutos. Alheia à estrada, com o mar de um lado e a floresta do outro, Jéssica escreve no seu “caderno dos sonhos”. Aos 15 anos, já sabe qual é o seu: quer ser deputada.
“Diziam que surf não dava para menina porque a gente afoga. Eu fui competir, eu vou lutar, lutar, até conseguir, no ano que vem [ganhar o campeonato]”, afirma a jovem estudante.
Para chegar ao parlamento, o caminho é o mesmo: “A minha mãe e o meu pai disseram, tem de estudar para ter essa coisa na mão. Eu vou fazer 12 anos de estudo e depois faculdade. E vou tornar-me mulher de amanhã e com bom coração”, promete.
A longo prazo, o projeto pretende converter-se num ‘social business’, através da promoção do surf, ioga e turismo sustentável, e o objetivo é que algumas raparigas possam ter ali o seu emprego.
Rosy, 19 anos, é já uma funcionária da SOMA, depois de ter passado pelo projeto, que, garante, “mudou tudo” na sua vida.
“A SOMA ajuda as pessoas a serem mais abertas. O povo são-tomense é mais fechado, mais acanhado, faz tudo em segredo, não quer que o mundo saiba o que fazem. Ajuda a abrir mais as coisas, a ser mais clara e precisa”, comenta.
Sem disfarçar o orgulho de trabalhar nesta organização, Rosy relata como ganhou autoconfiança.
“Eu, com certeza, consigo ajudar outras meninas. Antes, eu não tinha segurança em mim, eu falava que não consigo, mas eu consigo. Eu tinha medo de ‘dropar’ uma onda enorme, mas deixei o medo para trás e agora ‘dropo’ ondas gigantes”.
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