A argumentação presente na carta foi divulgada num comunicado em que a ONG considerou que a Advocacia-Geral da União (AGU), órgão público que representa o Governo brasileiro em processos judiciais, deve rever imediatamente um parecer normativo que consolidou a tese jurídica em debate no Supremo Tribunal Federal (STF)  de que povos indígenas não podem obter o reconhecimento formal de suas terras se lá não estavam presentes a 5 de outubro de 1988 --- dia da promulgação da Constituição Federal ainda em vigor no país.

"O Presidente Lula comprometeu-se a defender os direitos dos povos indígenas durante sua campanha e depois de eleito", disse Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch no Brasil.

O "seu governo deveria cumprir essa promessa rejeitando, sem demora, a tese do marco temporal, endossada pelos governos Temer e Bolsonaro para arbitrariamente bloquear demarcações de terras indígenas", acrescentou.

Entre os dias 24 e 28 de abril de 2023, milhares de indígenas devem reunir-se no Acampamento Terra Livre em Brasília, uma mobilização anual para reivindicar a proteção de seus direitos, inclusive a demarcação dos seus territórios.

Em 2017, no Governo do ex-presidente Michel Temer, a AGU adotou um parecer que, dentre outros aspetos, consolida a tese jurídica defendida por proprietários de terras e líderes do agronegócio sobre o chamado marco temporal de 1988.

A HRW e outras organizações consideram que a implementação dessa tese tornaria impossível a demarcação para comunidades que foram expulsas do território antes da Constituição de 1988 ou que não possam comprovar a sua presença nessa data.

O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022) manteve essa tese e, na prática, suspendeu todas as demarcações de terras indígenas, travando processos que já aguardavam uma conclusão há anos.

Procuradores da República do Brasil já alertaram sobre a inconstitucionalidade do parecer da AGU, e o Supremo Tribunal Federal está a examinar a legalidade do limite temporal. O tribunal suspendeu os efeitos do parecer em 2020 até chegar a uma decisão final, que terá repercussão geral e se aplicará a todos os casos.

A insegurança jurídica sobre os territórios indígenas os torna especialmente vulneráveis à invasão por redes criminosas envolvidas em exploração mineira ilegal, extração de madeira e roubo de terras públicas, alimentando os conflitos e a violência no campo brasileiro, segundo a HRW.

Segundo o levantamento do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) citado na carta enviada a AGU, as invasões possessórias e outras incursões para explorar recursos naturais em terras indígenas aumentaram 180% entre 2018 e 2021.

O novo Advogado-Geral da União, Jorge Messias, nomeado por Lula da Silva, está a rever as posições do órgão adotadas durante as gestões anteriores e, para a HRW, deveria comunicar ao STF, imediatamente, umparecer que rejeite o limite temporal e defenda os direitos dos povos indígenas.

"Escolher um marco temporal arbitrário e deixar de reconhecer terras tradicionais reivindicadas após determinada data não está em conformidade com os padrões internacionais. A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, adotada com o apoio do Brasil, reconhece que os povos indígenas têm direito às terras, territórios e recursos que tradicionalmente possuem e ocupam ou que tenham de outra forma utilizado ou adquirido", argumentou a organização que trabalha globalmente em defesa dos direitos humanos.

A HRW avaliou ainda que a "demarcação e a proteção de terras são fundamentais não apenas para a defesa dos direitos indígenas, mas são ainda referências nos esforços bem-sucedidos de conservação" já que "os territórios mantidos por povos indígenas ajudam a efetivamente barrar o desflorestamento. No Brasil e em outros países amazónicos, essas áreas registam taxas de desflorestamento menores em relação a áreas comparáveis."

"Os povos indígenas enfrentaram quatro anos de ataques constantes a seus territórios por madeireiros, mineradores ilegais e outros invasores fortalecidos pelas ações e retórica hostis do Governo Bolsonaro em relação aos direitos dos povos indígenas", disse Canineu.

"O Governo Lula deveria apoiar os povos indígenas e retomar a demarcação e a proteção de seus territórios, conforme a Constituição", concluiu a especialista.

 

CYR // PJA

Lusa/Fim