A última edição da Taça da Liga ficou ferida pela polémica, com discursos inflamados entre alguns clubes, e acusações fortes às equipas de arbitragem. Luís Filipe Vieira, presidente do Benfica, afirmou no final da derrota (3-1) com o FC Porto que Fábio Veríssimo, que desempenhou as funções de VAR, não mais podia ser árbitro depois dos erros de avaliação que tinha cometido.
"Quando assistimos alguém com câmara de televisão à frente, é árbitro e não consegue distinguir em lance de TV se é fora de jogo ou não [no golo anulado a Pizzi aos 45+2’]... Se não consegue distinguir, no lance do primeiro golo do FC Porto, se é falta ou não, este homem não pode arbitrar mais", afirmou então Luís Filipe Vieira.
Depois das críticas, Fábio Veríssimo acabou por pedir dispensa, por tempo indeterminado, ao Conselho de Arbitragem (CA) da Federação Portuguesa de Futebol (FPF). "A atitude de Fábio Veríssimo, ao reconhecer um período em que a sua forma não é a ideal, define-o como homem e prestigia-o como elemento de um grupo forte e empenhado em trabalhar duramente para melhorar a arbitragem portuguesa", escreveu o organismo liderado por José Fontela Gomes.
No mesmo comunicado, o Conselho de Arbitragem garante que "nunca aceitou e nunca aceitará qualquer veto de árbitros por parte dos clubes ou outros agentes desportivos" e que "considera igualmente inaceitáveis quaisquer outros tipos de pressão sobre as nomeações e gestão dos árbitros nacionais".
A segunda meia-final foi igualmente fértil em relação ao tema. Após o desaire com o Sporting, nos penáltis, o presidente do SC Braga acusou Manuel Oliveira de ser um "mau árbitro”, que "não sabe o que faz" e que "não tem coragem". Abel Ferreira, treinador dos minhotos, 'atirou-se' contra o VAR após o golo anulado a João Novais, apelando a que "deixem os árbitros errar". Segundo avançou o jornal A Bola no passado dia 25 de janeiro, o juiz da AF Porto também ficará de fora das nomeações nas próximas jornadas.
Recorde as críticas de António Salvador ao árbitro Manuel Oliveira
Declarações que fizeram correr tinta durante a última semana e que levaram vários agentes desportivos a invocar maior proteção para os árbitros. Ao SAPO Desporto, Luciano Gonçalves, presidente da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF), lamenta a forma como o processo de aceitação de dispensa de Fábio Veríssimo foi conduzido por parte do Conselho de Arbitragem.
"Não nos interessa de que forma é encarada a situação publicamente. Enquanto Associação da classe, preocupa-nos a forma como as notícias sobre os árbitros são utilizadas para justificar o quer que seja e que sejam tornadas públicas decisões ou solicitações que apenas deveriam ser tratadas no foro interno das instituições. Este tipo de notícias, ao serem tornadas públicas desta forma, não defendem nem o árbitro nem a arbitragem", defende Luciano Gonçalves.
A APAF, de resto, já havia manifestado publicamente que, "apesar de não compreender e não concordar" com a dispensa temporária de Fábio Veríssimo, "não pretende interferir na gestão efetuada ao caso". E não hesita em defender o juiz de Leiria, assim como Manuel Oliveira.
"Os árbitros estão bem e focados no seu trabalho. Naturalmente não podem estar satisfeitos por verem a sua honorabilidade ser posta em causa desta forma tão desumana. São homens de família e querem preservar o seu bom nome e profissionalismo", assegura Luciano Gonçalves, que confirma ainda ter avançado com uma queixa contra Luís Filipe Vieira, António Salvador e Abel Ferreira no Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol.
Marco Ferreira, que deixou a arbitragem no final da época de 2014/15, considera "perfeitamente normal" um juiz pedir dispensa das suas funções. O problema, refere, foi quando o Conselho de Arbitragem decidiu vir a público.
“Não sei ao certo o que levou ao pedido de dispensa do Fábio Veríssimo, mas sei que ao longo dos anos os árbitros têm autorização para colocar algumas dispensas, quando considera que não está nas melhores condições para desempenhar o seu trabalho. Não é uma situação excecional. O que eu acho que não foi correto foi o Conselho de Arbitragem emitir um comunicado a expor esta situação. E o 'timing' desse comunicado. Depois das críticas que foram feitas na Taça da Liga, as pessoas associam aqui uma causa-efeito e com alguma razão", aponta o ex-árbitro madeirense.
E acrescenta: "Acho que o facto de um árbitro se autoexcluir durante uma, duas, três jornadas, é sinal de que está perfeitamente consciente da importância da sua função."
Afinal, porque são os árbitros tantas vezes visados?
"A culpa é do árbitro". Certamente já usou esta expressão para justificar a derrota do seu clube. No entanto - e basta recuar até à 'final four' da Taça da Liga - os adeptos não são os únicos a fazê-lo. Perguntámos a Jorge Silvério, especialista em Psicologia do Desporto e psicólogo da seleção nacional de futsal, o porquê de se recorrer a eventuais erros de arbitragem para camuflar um resultado negativo.
"É sempre mais fácil pormos as culpas nos outros do que em nós próprios. É pouco frequente vermos um dirigente ou um treinador, salvo raríssimas exceções, assumir que as coisas correram mal porque a culpa foi deles. No caso do treinador, porque não utilizou a melhor estratégia ou não escolheu bem os seus jogadores, e no caso dos dirigentes, por fazer más contratações ou porque não geriu bem a equipa. E não havendo o reconhecimento do próprio erro, os árbitros acabam por estar mais 'à mão', por assim dizer, para funcionarem como bode expiatório", esclarece Jorge Silvério.
Já Luciano Gonçalves considera que o ataque contínuo à sua classe acontece por "incompetência própria e falta de cultura desportiva", enquanto Marco Ferreira aponta o dedo aos clubes. "Quando as pessoas ouvem constantemente os seus clubes criticarem os árbitros quando perdem, cria-se uma base de desconfiança, onde o erro é visto como premeditado e com intenção de prejudicar A e beneficiar B. Ainda mais numa sociedade como a nossa, que vive o futebol intensamente e onde a emoção supera a razão", refere o antigo árbitro, que também não esquece os programas televisivos "que dedicam a maior parte do tempo a falar, não de futebol, mas de arbitragem".
É sempre mais fácil pormos as culpas nos outros do que em nós próprios. E desse ponto de vista, os árbitros estão mais 'à mão', diz Jorge Silvério.
Árbitros portugueses estão preparados para as críticas
Jorge Silvério não tem dúvidas quando diz que os árbitros são os agentes desportivos "mais bem preparados para lidar com a pressão". "Porque já trabalham essa componente há alguns anos. Aprendem a controlar os níveis de ansiedade, de forma a que as críticas não afetem o seu rendimento desportivo. Obviamente pode haver comentários que deixem o árbitro mais instável e isso aumenta a probabilidade de erros. Mas eles sabem de antemão que a pressão vai sempre existir", refere o psicólogo, que não tem dúvidas: "O futebol português sempre foi fértil neste tipo de polémicas e há-de continuar assim."
Marco Ferreira, por sua vez, recorda que o erro é inerente à profissão e que há formas diferentes de lidar com as críticas. "Errei muitas vezes, como é lógico, mas nunca me deixei influenciar. Tinha uma vantagem: a partir do momento em que dava o apito inicial, conseguia esquecer todo o ruído que vinha de fora e concentrar-me no meu trabalho e nas informações da minha equipa. Mas sabia de colegas que acusavam um pouco mais essa pressão e alteravam o seu comportamento em função disso. Muitos autoexcluíam-se das nomeações porque achavam que não estavam no melhor momento, mas também havia outros que iam a jogo, mesmo sabendo que não estavam nas melhores condições psicológicas", revela.
A verdade é que, contrariamente ao que já aconteceu noutros países, não são conhecidos casos de portugueses que tenham abandonado a arbitragem por força das pressões da alta competição e da exploração do erro público. "Há já alguns anos que os árbitros são acompanhados de forma sistemática, o que pode funcionar como fator preventivo de depressões ou outros problemas do foro psicológico", refere Jorge Silvério.
"Se pensarmos no percurso que um árbitro faz desde o futebol distrital até ao profissional, é de esperar que aqueles que chegam ao patamar mais elevado sejam os melhores também a nível psicológico e que já estejam mentalmente preparados para encarar a pressão do futebol português", refere, por sua vez, Marco Ferreira, acrescentando que o apoio psicológico aos juízes de campo começou com Vítor Pereira ainda na presidência do Conselho de Arbitragem.
VAR é sinónimo de mais pressão?
A polémica em torno das arbitragens na Taça da Liga reacendeu a discussão sobre o videoárbitro, que muitos pensavam viria a reduzir a contestação aos juízes. Um ano e meio após a sua implementação, os dados mais recentes do International Football Association Board (IFAB), mostram que a introdução da tecnologia aumentou o acerto das decisões de 89,8% para 95,3%. Mas desengane-se quem pensa que o VAR retirou pressão aos árbitros.
Nesse sentido, vale a pena recordar as palavras de Santiago Solari, treinador do Real Madrid, após a derrota por 0-2 com a Real Sociedad. O técnico espanhol deixou críticas ao VAR, afirmando que há uma clara diferença em falhar porque se é humano e em falhar quando se tem hipótese de corrigir o erro: "O VAR perde toda a razão de ser quando não corrige uma má decisão do árbitro. Ele está lá para ser consultado. Todos somos humanos e erramos, mas se alguém tem a possibilidade de corrigir o erro e mesmo assim falha, é difícil de compreender."
O videoárbitro depende sempre da interpretação de uma pessoa que está sujeita ao erro, diz Marco Ferreira
Marco Ferreira acredita que a introdução do VAR trouxe "uma pressão acrescida" sobre o árbitro, sobretudo "pela forma como foi anunciado e implementado no futebol português": "Estávamos no final de uma época muito atribulada no que toca à arbitragem, e numa tentativa de serenar os ânimos, o doutor Fernando Gomes optou por lançar o videoárbitro logo na época seguinte, esquecendo-se que este ainda estava em fase de testes. Foi um risco muito grande e acredito que as pessoas olharam rapidamente para o VAR como a solução de todos os problemas."
Em resposta aos críticos, o ex-juiz lembra que esta é uma tecnologia que "depende sempre da interpretação de uma pessoa que está sujeita ao erro". "Não estamos a falar da tecnologia da linha de golo, essa sim, infalível, porque não está dependente de um olhar humano. Enquanto ferramenta de auxílio na tomada de decisão, é óbvio que o VAR é positivo, desde que se perceba que também pode falhar."
Luciano Gonçalves também não tem dúvidas que a ferramenta é uma mais-valia. "Todas as melhorias em todas as áreas trazem mais exigência e responsabilidade e o VAR não foge à regra. Ainda está num processo de aprendizagem. Mas quem disser que o videoárbitro não funciona é porque não quer o melhor para o futebol", advoga o presidente da APAF.
Os árbitros deviam falar?
Na última segunda-feira, o árbitro do encontro entre o Paris Saint-Germain e o Rennes, que os parisienses venceram por 4-1, pediu desculpa por não expulsar o senegalês M'Baye Niang, após uma entrada mais dura sobre Thilo Kehrer, que apenas viu a cartolina amarela. "Faltou-me lucidez e deveria ter mostrado o cartão vermelho ao jogador do Rennes. Mesmo quando se trabalha para evitar um erro, ele pode existir", admitiu Karim Abed num comunicado enviado à AFP.
Em 2015, na Turquia, o juiz Deniz Coban interrompeu a 'flash interview' do treinador do Kasimpasa para fazer um pedido de desculpas público por ter assinalado penálti a favor da equipa adversária, que levaria ao empate do Rizespor já no período de compensação. Riza Calimbay, técnico da equipa prejudicada, não ficou indiferente ao inesperado pedido de desculpa e acabou por ser ele a confortar o árbitro. “Todos nós cometemos erros, mas o simples facto de ter a coragem de vir aqui admitir o seu merece muito respeito”, afirmou.
Estes são dois comportamentos quase impensáveis num árbitro, que, recorde-se, está impedido pelo IFAB de falar no final dos jogos. Durante as primeiras edições da Taça da Liga foi possível ver os árbitros a prestar declarações, ao lado dos treinadores e jogadores, na antevisão da final, bem como nos momentos importantes da prova. Em 2016/17, o Conselho de Arbitragem decidiu tirar Artur Soares Dias da conferência de imprensa de antevisão da final, em virtude do contexto de crispação em torno da arbitragem. Na altura, Pedro Proença mostrou-se contra a decisão do CA. "Sempre defendi a humanização da arbitragem, os árbitros têm uma palavra a dizer, uma perspetiva, são pessoas com grandes capacidades e esta é uma oportunidade única para falarem", declarou.
Sempre defendi a humanização da arbitragem, os árbitros têm uma palavra a dizer, afirmou Pedro Proença em 2017
Confrontado com esta questão, Luciano Gonçalves considera que a mudança de mentalidades em relação à arbitragem não passa por uma maior abertura na forma de comunicar dos árbitros. "Não é aí que reside o problema. Não é por se falar no final de um jogo que se iria compreender melhor uma decisão ou outra, infelizmente apenas iria servir para alimentar ainda mais o circo diário de comunicação destrutiva que gravita em volta do futebol. Primeiro temos de mudar mentalidades e só depois conseguiremos pensar numa abertura a esse nível", observa.
Jorge Silvério, por sua vez, considera que o distanciamento dos árbitros tem "vantagens e desvantagens". "Por um lado, ajudaria a aproximar a figura do árbitro dos restantes agentes desportivos, mas por outro haveria sempre a crítica aberta e a possibilidade de uma má interpretação das palavras. Principalmente depois de um jogo, em que os ânimos ainda estão muito exacerbados. Creio que esta conduta é mais aconselhável. Embora nalgumas circunstâncias específicas seria importante os árbitros explicarem um bocadinho daquilo que é o seu trabalho", afirma o especialista em Psicologia do Desporto, acrescentando de seguida: "Ainda há pouco tempo tivemos alguns jornalistas a experimentar a função de VAR."
Marco Ferreira também é a favor de os árbitros comunicarem com mais regularidade, numa perspetiva mais didática. "É algo que devia começar logo nos escalões de formação, com os árbitros a irem até aos clubes dar formação no início de cada época, explicar as alterações às leis de jogo. Isto existe nas equipas profissionais, mas nos escalões de formação é raro ver um árbitro internacional português dar uma palestra", começa por dizer.
"É importante haver uma interação entre a figura do árbitro e os mais jovens, para tentar eliminar logo à partida aquela sensação de que o árbitro é a ovelha negra do futebol e mostrar que somos iguais a todas as outras pessoas", acrescenta.
De referir que os relatórios de jogo das equipas de arbitragem nas competições profissionais passaram a ser públicos a partir da época 2017/2018. Os mesmos podem ser consultados no site da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), depois de concluída a análise e publicadas as decisões do Conselho de Disciplina. Também nesse ano, os árbitros do primeiro escalão decidiram, numa reunião com o Conselho de Arbitragem, abandonar as redes sociais. Além do escrutínio público, as contas pessoais dos juízes em redes como o Facebook já serviram para que fossem feitas ameaças, sendo esta uma forma de salvaguardar os visados e eliminar focos de instabilidade.
Como pôr fim à contestação?
Em novembro de 2016, José Mourinho foi punido com um jogo de suspensão e multado em cerca de 12 mil euros por criar pressão através de comentários sobre o árbitro Anthony Taylor. Na véspera do duelo com o Liverpool, o então treinador do Manchester United afirmou que Taylor era "um bom árbitro" mas acreditava que alguém estava a colocar "uma pressão desmedida sobre ele", pelo facto de ser natural de Manchester. A federação inglesa de futebol viu os comentários como "uma camada adicional de pressão" sobre o juiz da partida, e acusou o técnico português de conduta imprópria e de descrédito do jogo.
No ano passado, Vítor Pereira, treinador do Shanghai SIPG, também não escapou à mão pesada da Federação Chinesa de Futebol: três jogos de suspensão e mais de dois mil euros de multa depois de ter aplaudido o árbitro pelo cartão amarelo mostrado a Hulk, durante o encontro frente ao Guizhou Zhicheng.
Tomando como exemplo o que acontece lá fora, Luciano Gonçalves defende "um "endurecimento" das medidas punitivas, caso a "boa vontade" dos dirigentes seja insuficiente para pacificar o futebol português. "Serei sempre defensor da prevenção, mas se não existir boa vontade e tiver de ser por repressão, então devemos ter castigos mais penalizadores. Ou fazermos com que os que existem sejam mesmo postos em prática, já que por vezes isso não acontece", explica.
Marco Ferreira partilha desta opinião, mas constata que, para isso acontecer, os setores da arbitragem e disciplina "têm de ser independentes" da Liga e da FPF, para que os clubes não tenham peso na regulamentação da modalidade.
"É preciso não esquecer que quem decide e quem vota as multas a aplicar aos clubes por falarem dos árbitros são os próprios clubes. São eles que têm o poder para alterar seja o que for. Inclusive são eles que elegem o Conselho de Arbitragem, o Conselho de Disciplina e o Conselho de Justiça. Mas depois, curiosamente, são os clubes que mais criticam os árbitros", frisa o ex-juiz madeirense, que não deixa de pedir uma maior "intervenção do Governo" no futebol, mesmo sabendo que "em ano de eleições nenhum político tem a coragem de ir contra um clube ou um dirigente".
Já Jorge Silvério teme que a descrença no setor venha a refletir-se negativamente na captação de futuros árbitros. "Se este ambiente de crispação continuar, em que o árbitro é culpado por tudo o que de mau acontece no futebol, torna-se muito difícil para um jovem que queira seguir a profissão apostar nesta carreira. A não ser que seja 'masoquista'".
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