Novembro de 1991. O Benfica visita o Arsenal e o lendário (e agora já demolido) Highbury Park na segunda mão da segunda eliminatória da Taça dos Campeões Europeus 1991/92 (a última antes de ganhar a denominação de Liga dos Campeões e a primeira a contar com uma fase de grupos). Na primeira mão, um empate 1-1 no velhinho Estádio da Luz não abria grandes perspetivas. Mas as 'águias' acabariam por vencer por 3-1 em Londres, num jogo verdadeiramente mítico, conseguindo a sua primeira vitória de sempre em solo inglês e garantindo então presença nessa tal fase de grupos.

Na baliza de um Benfica orientado por Sven-Göran Eriksson estava Neno, hoje embaixador do V.Guimarães, que em dia de novo frente a frente das 'águias' com o Arsenal recordou ao SAPO Desporto esse embate de 1991 e perspetivou a partida de mais logo, que será jogada em Roma, mas com o Benfica como anfitrião.

A certeza da vitória e o estádio que quase veio abaixo com Eusébio

Sempre bem disposto, o antigo guarda-redes, que ao longo da sua carreira disputou 133 jogos pelo Benfica, começa por recordar algumas histórias curiosas dessa eliminatória.

"Lembro-me que empatámos aqui em casa 1-1 e obviamente que a nossa tarefa lá era um pouco difícil, porque o Arsenal tinha uma equipa espetacular: o David Seaman, guarda-redes da seleção inglesa, o Tony Adams...tinham o sueco Limpar, um gajo chamado Kevin Campbell que era muito perigoso, o Paul Merson. Era uma equipa fabulosa", sublinha.

Neno, ainda assim, diz que transbordava confiança para a partida da segunda mão, mesmo sabendo que o Benfica tinha de fazer o que nunca antes tinha feito: ganhar em Inglaterra.

"Eu era muito brincalhão, estava sempre a brincar e amava o futebol. E Sabendo que ia jogar, estava feliz. O Vítor Paneira veio falar comigo na manhã desse jogo, durante o passeio que demos no parque, e disse-me: 'Ó velho, estás muito sorridente. E eu lembro-me de lhe responder: 'Eh pá…sei que hoje vamos ganhar esta m…'."

E ganharam mesmo. Mas não foi fácil. Antes, porém, Neno faz questão de lembrar outro momento marcante desse jogo, ainda antes do apito inicial.

"O Eusébio pisou o relvado do estádio e o estádio parece que vinha abaixo."

"Antes do jogo o Eusébio pisou o relvado do estádio e o estádio parece que vinha abaixo. Nós ficámos pasmados. Sabíamos o que o Eusébio era cá, mas não tínhamos noção da dimensão do reconhecimento do Eusébio em Inglaterra. E acho que isso nos deu ainda mais força", sublinha.

As coisas até nem começaram bem. "Nós começámos mal o jogo, muito retraídos, o Kulkov estava a jogar a defesa direito e eles acabam por fazer o 1-0 num remate em que eu faço uma grande defesa e, do canto, resulta o golo do Arsenal. Eles fazem o 1-0 e nós encaixámo-nos. Isto porque o Erikson tinha começado com três centrais e nós não saíamos de lá de trás. Então ele mete o Paneira a defesa direito", relembra Neno.

"E a partir daí todos os jogadores foram fantásticos. A equipa começou a desenvolver-se, a criar perigo, apesar de eles continuarem com aqueles cruzamentos para a nossa área, que era o futebol deles na altura", conta o antigo guarda-redes internacional português.

Aplaudidos de pé pelos adeptos do Arsenal

O jogo, de tão memorável, está ainda bem presente na cabeça de Neno. "Depois o Isaías faz o 1-1, na primeira parte ainda, e a nossa equipa estava a crescer bastante. Acabou 1-1 e fomos para o prolongamento. Mas o ambiente no estádio era fantástico, porque o jogo estava a ser muito bonito. Nós atacávamos, eles atacavam, o Isaías fez um jogão, um foi um espetáculo tremendo. Vamos então a prolongamento e o Kulkov acaba por fazer o 2-1, com um grande golo e depois o Isaías mata o jogo", relembra.

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"Ganhámos 3-1 e lembro-me bem que, quando o jogo acaba, nós a comemorar o os ingleses cabisbaixos, e o estádio todo começa a aplaudir-nos, a bater palmas de pé não só aos jogadores deles, mas também aos jogadores do Benfica. O estádio todo em pé  bater palmas quando saímos. Foi memorável. Um reconhecimento que nunca tínhamos presenciado: adeptos da equipa adversária a aplaudirem-nos era anormal", confessa.

E, no regresso a Portugal, mais aplausos. "Depois milhares de adeptos à nossa espera no aeroporto, quando regressámos. O favoritismo estava do lado do Arsenal e, afinal de contas, era a a primeira vitória do Benfica em solo inglês. Tínhamos feito História", aponta Neno.

"Foi um dos tais jogos míticos que se recordam para sempre."

Em resumo, um jogo inesquecível para quem jogou e para quem assistiu, diz o antigo guarda-redes.

"Há momentos que ficaram guardados, porque foi um dos tais jogos míticos que se recordam para sempre. Foi um jogo vibrante. Qualquer pessoa que ame o desporto em si deve ter gostado desse jogo, sendo do Benfica, do Sporting, do Porto ou do Guimarães. Houve tudo, houve festa e o futebol é isso mesmo: É o que emana não só dos jogadores, mas do público, da envolvência, dos comentadores a vibrarem com os golos que íamos fazendo", salienta Neno.

Muitos elogios a Isaías e a um Erikson que é diferente de Jorge Jesus

Destaque nessa eliminatória foi, claro, Isaías, autor de três golos. Neno relembra com carinho o brasileiro e a sua forma de jogar.

"O Isaías, pouca gente lhe dava importância, mas ele tinha uma importância tremenda e só no fim é que as pessoas lhe começaram a dar aquele valor. Mas nós, colegas, entendíamos como ele era importante e como ele jogava. Sabíamos que ele ia rematar 6, 7 vezes, mas que um desses remates ia acabar por ir à baliza e entrar. Ele tentava sempre", recorda.

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"Na altura costumava ficar com ele – e o Yuran, o Kulkov e o Rui Costa – a defender remates deles no final dos treinos. Hoje isso já não se vê, hoje o futebol é muito por parcelas. Fazes 15 minutos aqui, depois outros 15 daquilo. Nós éramos mais pela nossa arte. O futebol perdeu um pouco dessa magia, mas claro que não perdeu o encanto", frisa o ex-guarda-redes.

"O Erikson era um gentleman. Como treinador, poucos jogadores poderão falar mal dele"

Preponderante foi, também, claro, o treinador, Sven-Göran Eriksson, um 'gentleman', nas palavras de Neno.

"O Erikson era um gentleman. Como treinador, poucos jogadores poderão falar mal dele. Nada de gritos, falava muito pausadamente e falava de uma forma a que nós compreendíamos bem o que ele queria dizer. E conseguiu mudar o futebol português. Às vezes esquecemo-nos muito disso. Trouxe muita coisa lá de fora, como os alongamentos, ou até beber água no meio dos treinos", assinala Neno.

O agora embaixador do V.Guimarães, clube onde terminou a carreira, recorda uma história lendária do treinador sueco. "Há até aquela história engraçada, quando ele chega e no início da época vê os jogadores todos de sapatilhas para irem correr para a mata do Estádio Nacional e ele vê, chama o Humberto Coelho, que era o capitão, e pergunta o que era aquilo, no italiano dele. O Humberto explicou que iam correr e o Erikson perguntou quem era o melhor corredor português. Carlos Lopes? Então correr é para o Carlos Lopes. Nós estamos aqui para jogar à bola. E meteu-nos a correr, mas com bola.

Um estilo que será bem diferente do do atual treinador do Benfica, Jorge Jesus, reconhece Neno.

"Não gosto de fazer comparações, mas do que conheço do Jorge Jesus, porque ele foi treinador do Vitória quando eu era aqui diretor, e ele era também diferente do que é agora, em termos de estilo o Erikson era muito mais tranquilo, muito mais na dele, a falar de uma forma mais pausada, tocando nos pontos essenciais. Era de falar pouco, era mais de trabalhar e tinha um grande adjunto que era o Toni. O Jesus tem a sua forma de ser e de estar e o Erikson tem a sua. São pessoas diferentes, não há pessoas iguais e não há uma que seja melhor do que outra. Cada um é como cada qual e o futebol também mudou, o futebol hoje também é outro", sublinha.

Neno confiante em novo sucesso do Benfica sobre o Arsenal

Olhando para a partida desta noite, Neno acredita numa vitória das 'aguias'. "Tenho sempre as expectativas muito altas e penso que o Benfica tem todas as condições para vencer o jogo esta noite. Os jogadores têm é que acreditar e têm é de trabalhar. Não vai ser um jogo fácil, mas essa história de não ser fácil já é um discurso retórico do futebolista. Nós todos dizemos e sabemos isso: não há jogos fáceis.

"Acredito que o Benfica tem todas as condições para passar o Arsenal"

Assim, Neno dá a receita: "É acreditar, ter confiança neles próprios e divertirem-se. Porque o futebol é diversão e acho que quando somos felizes com aquilo que fazemos as coisas saem naturalmente, por isso acredito que o Benfica tem todas as condições para passar o Arsenal".

Neno reconhece que o favoritismo talvez até esteja do lado dos londrinos, mas que isso até pode dar ainda mais força ao Benfica. "O Arsenal é capaz de ter uma certa ascendência, mas é aí que o Benfica poderá ganhar força: ganhar àqueles que que estão à nossa frente e que dizem que são melhores que nós. É daí que vem uma motivação que pode ser fundamental. É preciso acreditar sempre até ao último minuto, algo que os ingleses tinham e agora nós também já começamos a ter", frisa Neno.

A fechar, o guarda-redes lamenta apenas que o jogo seja jogado não só sem publico, mas até em 'campo neutro'.

"Influencia sempre. Nós, jogadores, no relvado, o apoio do público, o incentivo, sempre nas horas boas como nas más, é sempre uma força extra e hoje o jogador não tem isso. Sente-se num jardim sem flores. Ainda para mais jogando num estádio que não é seu. É tudo desconhecido", reconhece Neno.

"Mas são aspetos que se têm de ultrapassar, porque quando o árbitro apitar o pensamento só pode ser o de ganhar. Mas claro que se sente durante o jogo, que estamos num ambiente estranho, sem as referências habituais, que são muito importantes. O futebol está mais pobre por causa disso, mas é o momento que estamos a viver e os jogadores têm de se capacitar que é o momento que temos e não há alternativa", termina o ex-guarda-redes.