O adiamento por um ano de Tóquio2020 em nada belisca a concretização do sonho olímpico do refugiado afegão Farid Walizadeh, o pugilista que renasceu em Portugal após uma vida a ultrapassar inúmeros e exigentes obstáculos.

“É o meu maior sonho. Sempre quis marcar o meu nome na história. [Ser] alguém motivador para todas as pessoas, inspirar. Dar força e mostrar que, se eu consigo, também tu consegues. Nada é impossível e até provar isso para mim próprio”, diz o atleta, acolhido em Portugal desde 28 de dezembro de 2012.

Em declarações à Lusa, o atleta, que em 02 de maio completa 23 anos, decidia o apuramento olímpico na categoria de -57 kg em março em Londres, porém a COVID-19 trocou as voltas às suas aspirações e agora aguarda pela redefinição do modelo que levará oito pugilistas ao Japão, numa equipa internacional de refugiados que fez a sua estreia no Rio2016, modelo que o Comité Olímpico Internacional (COI) deseja manter.

“Vou fazer o meu melhor para ir. Neste momento, estamos fechados, treino pouco. Faço corrida e salto à corda. Não temos treino de boxe. O ginásio está fechado, o Jamor também. Treino com a cadeira, mesa, com o que calhar…”, conta o desportista que já foi campeão nacional em Portugal e não tentou os Jogos do Brasil por estar a recuperar de uma operação.

O pugilismo, que pratica no clube Paulo Seco, nasceu da necessidade: por volta dos oito anos, esteve preso numa cadeia turca, na qual era agredido diariamente por jovens mais velhos, pelo que não teve alternativa que não aprender a defender-se.

Foi detido por “acreditar” em quem lhe prometeu a Europa e lhe entregou dois quilos de droga para transportar – “pensei que era açúcar” -, tendo sido apanhado numa das “três ou quatro vezes” nas quais tentou cruzar de barco para a Grécia, aventuras que acabaram com a embarcação a virar ou a polícia a deter o grupo.

“Não confiar em ninguém. É isso que aprendi [na prisão]”, conta, uma visão agora algo reajustada: “Depende das pessoas e das atitudes. Não confio muito em palavras, mas em atitudes”.

Esta fase negra da sua vida aconteceu meses depois de, após a sua mãe adotiva morrer de tuberculose, ter sido vendido por um ‘tio’ a uma rede de tráfico humano, que empreendeu “dura” jornada a pé até às portas da Europa, através do Paquistão, Irão e Turquia, numa rota em que várias ocorrências foram dizimando o grupo.

Ameaçada pela guerra, a mãe, perseguida, e os filhos mais velhos tinham fugido para o Paquistão, quando Farid tinha somente um ano de idade, pelo que o bebé ficou ao cuidado de amigos, já que não resistiria à dureza da jornada através das montanhas do Afeganistão.

As piores recordações da vida “são muitas” e a melhor, além de sobreviver a cada dia na montanha, tem data fixa, 26 de setembro de 2018, dia em que conseguiu reunir a família biológica em Portugal, nomeadamente a mãe, três irmãs e dois irmãos: “Já relaxou parte da minha cabeça”.

“Eles estão muito bem. Muito felizes. Há paz, não há perigo de vida. Conseguem estudar sem ter medo todos os dias da morte. Em qualquer dia pode cair uma bomba. Um homem forte pode matar por dinheiro, por um terreno ou casa. Mulheres não têm direitos, porque não rezaram… Aqui são muito felizes, com paz e saúde. E já têm um futuro à frente”, regozijou-se, numa altura em que continua o processo de conhecimento mútuo face aos anos de afastamento.

Farid assume que o desporto lhe deu um futuro: “Salvou mesmo. Em criança, na Turquia, vi todo o tipo de gente. Podia ser ladrão, traficante de droga ou humano. O desporto salvou-me das pessoas erradas, más. Salvou-me de muito, até para passar os traumas e stresses do passado”.

Desistir é palavra que desconhece – “a salvação mental é sempre ‘vou tentar outra vez’, cair e levantar, amanhã há outra vez luz” – e essa é a força que pretende transmitir a quem conhece a sua história.

“Eu inspiro as pessoas e elas também me dão forças. Inspiram-me no sentido de que ‘posso fazer’. Parece uma troca de forças”, concluiu o atleta que o COP enviou para o projeto de Solidariedade olímpica juntamente com o velocista congolês Dorian Keletela.

Além do desporto, o jovem afegão é estudante do primeiro ano de arquitetura na universidade: “Sempre gostei de desenhar e criar coisas novas. E, como vi muita destruição durante guerra, até com crianças, ficou sempre o trauma e pensei ‘um dia quero criar, construir em vez de destruir’”.

Um dia gostava de visitar o país natal, do qual já esqueceu o “ler e escrever”, e, a todos os refugiados em Portugal, aconselha a prática de desporto, “pela saúde física e mental, e para melhor integração da sociedade” que já não pensa abandonar.

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