No desporto nem tudo gira à volta da bola e há sempre espaço para dar voz aos sonhos, numa altura em que a pandemia nos coloca (ainda) a vida em pausa.
Começamos por falar precisamente nisso, num sonho. Voltamos ao passado e o destino é África, mais precisamente Moçambique à boleia de Miguel Serrano. Foi no país lusófono durante a infância que se deparou pela primeira vez com os carros à vela. "Fiquei com o olhos em bico", recorda. "Conheço os carros à vela há muitos anos, desde garoto e sempre tive o gosto por este tipo de carros", recorda. Foi no regresso a Portugal que juntamente com amigos colocou mãos à obra e construiu o primeiro veículo. Anos mais tarde e com a ideia arrumada na gaveta, o geólogo de formação, acabou por abraçar por contingência da vida a área das tecnologias e dos sistemas de informação geográficos, trabalhando com sistemas de localização e posicionamento. Mas a mudança para a área comercial precipitou um volte-face e o ressuscitar de uma velha paixão.
"Estava numa vertente que não se enquadrava com os meus gostos profissionais e daí ter-me virado para alguma coisa que eu gostava mesmo de fazer e tinha esta ideia há alguns anos na cabeça e resolvi avançar", lembra.
Foi então que resolver fundar a marca a Windroller e assim divulgar uma atividade que "é pouco conhecida em Portugal", mas que aos poucos está a ganhar adeptos.
Os carro movidos a vento começaram a ser construídos há dois anos em Aveiro, onde o empreendedor se estabeleceu. O gosto pelo design e pela "vontade de construir coisas", falaram mais alto e em pouco tempo, começaram a surgir os primeiros modelos.
"Na juventude desencaminhei no bom sentido alguns amigos para construir um carro. Desenrascamos qualquer coisa parecida com um carro à vela, já dava para andar e para nos divertirmos. O assunto ficou durante vários anos arrumado a um canto, até que decidi avançar a sério. Fazia-me confusão em Portugal não existir esta atividade desportiva, que eu acho extremamente interessante e aliciante. Estabeleci alguns contactos e temos vindo a trabalhar no seu desenvolvimento", relata.
Depois de vários meses de trabalho e de três protótipos chegou ao modelo final, que foi lançado no verão de 2019. "Tive que fazer cálculos para verificar as forças aplicadas e tudo mais para ter um carro leve, mas ao mesmo tempo resistente e que tivesse bom desempenho no andamento, e em condições de vento forte. Só ao terceiro protótipo considerei que o modelo estava suficientemente validado para produção e agora já tenho um segundo modelo também. O conceito é diferente, é de um carro que se desmonta completamente e que cabe num pequeno carro ligeiro", descreve.
Em Portugal, os locais para a prática resumem-se às praias, aos campos e a aeródromos "com autorização para tal." Existe ainda uma pista, a única do país, que foi criada pelo Núcleo de Espeleologia de Leiria que aproveitou um velho campo pelado na freguesia em São Bento em Porto de Mós para a prática. Um mar em areia para os velejadores do asfalto.
Mas no fundo, a prática depende apenas de dois fatores: Vento e espaço. "Em países como os Estados Unidos, Austrália ou Argentina pratica-se em lagos salgados mas há também espaços próprios", explica.
Uma brincadeira que pode ser muito séria
Foi no final dos anos 40, início dos anos 50, que esta atividade deixou a componente "meramente lúdica para passar a ter uma componente desportiva", descreve. É um desporto muito divulgado na América do Norte, América do Sul e na Europa, em particular em França. Os carros, esses, estão divididos em várias categorias. "Depende da dimensão, da performance e tipo de construção. Há umas seis ou sete classes. Os carros que são feitos em materiais topo de gama podem custar dezenas de milhares de euros e podem atingir os 200 km/h", explica. Depende também da habilidade de quem o maneja, mas no caso dos meus, os mini-karts, atingem os 20, 30 km/h, mas mesmo com essas velocidades parece que estamos a ser levados pelo vento”, continua.
"Há carros à vela que podem atingir os 200 km/h"
Lá fora, os carros à vela são encarados como algo mais sério, e já se organizaram várias competições internacionais, sendo que o próximo campeonato mundial terá lugar na Argentina em 2022, com várias classes em competição.
A atividade ideal para o pós-pandemia?
Sem o impacto mediático do seu primo 'kite-surf', a atividade vive muito dos encontros entre praticantes. São os ‘meetings’ que servem para despertar o interesse das pessoas, "que felizmente têm aparecido", atesta Miguel Serrano. "Temos mais pessoas que querem praticar a atividade, já temos feito encontros em Troia, em Peniche, em Porto de Mós. Depois as pessoas acabam por comprar os carros e têm-se envolvido nestas atividades."
Depois chegou a pandemia, esse inimigo que começou por ser invisível, mas que levou também a que parte da atividade desportiva fosse suspensa. Porém, mesmo com este contexto, os carros à vela não tem parado de suscitar interesse, até porque nem os condicionalismos impostos pela novas limitações podem ou têm impedido a prática.
“Curiosamente uma vez que este é um desporto individual, algumas pessoas têm-me vindo a contactar, a quererem saber mais informações. Não existe nenhuma condicionante, porque cada um anda no seu carro. Mas é diferente, eu antes da pandemia fazia demonstrações com frequência, e com a situação foram relativamente suspensas, mas conto retomar no futuro", assegura.
"Carros à vela? Isto é como os livros do tintim é dos 8 aos 88 anos"
"Isto é como os livros do Tintim, é dos 8 aos 88", revela-nos entre sorrisos o empreendedor de Aveiro sobre a pergunta: - Quem pode praticar este desporto, será só para entendidos de vela? É para todos pelos vistos, ou quase, mas requer uma certa agilidade.
"A maior parte das pessoas experimenta e ao fim de meia hora já estão a andar"
“É para novos e também para os mais velhos. O carro é adaptável em termos de dimensão, para pessoas de estatura maior ou mais pequena. Crianças na casa dos oito, 10 anos já conseguem andar, porque a força do carro pode ser condicionada pelo tamanho da vela. Para ser manobrado, requer alguma agilidade", explica. "Exige preparação física, mas não é exigente. Há praticantes na casa do setenta anos e há um senhor que anda na casa do oitenta e continua a praticar. Requer uma certa aprendizagem para quem não tem conhecimento de vela, mas a maior parte das pessoas experimentam e ao fim de meia hora já estão a andar”, assegura.
Um carro movido a vento – há melhor amigo do ambiente?
Ao contrário dos veículos movidos por combustível fóssil, os carros à vela são uma atividade sustentável e com zero impacto para o meio ambiente, características sedutoras numa altura em que tanto se fala em energias limpas.
"Está perfeitamente enquadrado com a perspetiva ecológica e tem esse aspeto importante pelo facto de não ter nenhum impacto negativo no meio ambiente, até no processo de fabricação dos veículos, elucida. E nem o investimento necessário para a compra de um carro - na ordem dos 1500 euros - poderá afastar potenciais interessados.
"O meu carro tem algum custo, mas face a um veiculo equivalente as diferenças não são muito grandes, - uma bicicleta também pode custar milhares de euros - é uma atividade diferente, para amantes de vela e de atividades ao ar livre, para um grupo mais restrito. Há uns que preferem o Kite surf, vai depender do gosto de cada um. É como os ciclistas, uns preferem estrada e outros BTT", relembra.
"É uma atividade diferente, para amantes de vela e de atividades ao ar livre, vai depender do gosto de cada um. É como os ciclistas, uns prefere estrada e outros BTT."
Apesar da “ansiedade e vontade" para que as atividades regressem em força, Miguel Serrano espera que os ventos possa soprar a favor nos próximos tempos.
"Estou otimista, estamos a falar de atividade ecológica e em que se pode usufruir em pleno da natureza. Já tive a sensação agradável de estar em outros locais, longe de Aveiro, onde estamos sediados e as pessoas passam pelo carro e dizem: 'Lembro-me de ter visto isto na internet’. As pessoas começam a ter uma boa perceção e isso é um bom indicador", termina.
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