"Das memórias que tinha de São Tomé lembrava-me sempre de rapazes a brincarem na rua, rapazes a surfar, mas não tinha efetivamente memórias de raparigas". Esta frase é de Francisca Sequeira, fundadora da SOMA (Surfistas Orgulhosas na Mulher d'África), uma organização não governamental que tem como intuito, através da terapia do surf, projetar o papel da mulher.
No meio da azáfama das tarefas domésticas em casa que têm que cumprir, num país em que apenas 34% das mulheres chega ao ensino secundário e em que a gravidez precoce é comum, o papel reservado à mulher são-tomense pode ser muito mais do que o de mãe, esposa e dona de casa perfeita. A mulher pode ser o que ela quiser, até surfista.
A SOMA em conjunto com a Betclic e a Shutterstock, pôs mãos à obra e daí nasceu o documentário 'Surfing Through The Odds', que resultou na produção de vídeo e imagens das surfistas, depois de se ter percebido que não haviam efetivamente imagens de mulheres negras a surfar em nenhum banco de imagens online.
Foi através de uma viagem ao país, que serviu para desenvolvimento e reencontro pessoal, que a antiga assistente de bordo voltou a praticar surf e se deparou com essa realidade.
"Percebi que não havia nenhum projeto de surf terapia em São Tomé dedicado à igualdade de género e ao empoderamento feminino. Reuni algumas pranchas e com base em dinâmicas que existiam na ISTO (Internacional Surf Therapy Organization) decidi aplicar as mesmas dinâmicas e ensinar algumas raparigas a surfar. Começou de forma orgânica e foi crescendo à medida que as necessidades foram surgindo e que a realidade se tornou mais dura e mais real", relata Francisca.
Com quase três anos de existência - A SOMA nasceu em 2020 e envolve neste momento cerca de 90 raparigas, divididas por vários programas. O Clube Soma vai passar a ser uma realidade, um espaço onde as raparigas vão poder frequentar de segunda a sexta-feira, estudar, requisitar pranchas e ter acesso a computadores.
Quando se quer inovar, ou construir algo de novo há sempre algumas pedras no caminho e alguns tiveram que ser desbravados.
"Eu acho que a maior dificuldade foi logo a sustentabilidade financeira, como o transporte das raparigas para a praia, os lanches delas, esse foi um dos maiores desafios, tanto que associação não tem fins lucrativos. Estivemos um ano para aprofundar o conhecimento sobre a cultura, as tradições não só das raparigas mas das respetivas famílias e é aí que começaram a surgir os maiores desafios, que passam pelo facto das raparigas não terem tanto tempo livre como os rapazes para lazer ou para estudar e para desenvolverem a sua personalidade", recorda.
Mas o projeto vai muito para além do objetivo de simplesmente aumentar o número de raparigas que apanham ondas na praia de Santana, onde foi iniciado. "O surf é apenas um rastilho para trabalharmos outras questões que são ainda mais importantes. Queremos combater a desigualdade de género e conseguir que estas mulheres se tornem mais independentes, não só financeiramente, mas de pensamento, para se tornarem líderes na comunidade. E isto não se faz só através do surf", frisa.
Foi através da análise no terreno que foi possível perceber que as raparigas eram muitas vezes incapazes de demonstrar as suas emoções, e que desistiam à primeira dificuldade. "Não sabiam dizer, por exemplo, como é que se sentiam quando estão no mar. Também não eram questionadas sobre isso, pelos pais ou pelos professores, que não estavam interessados em querer saber a opinião destas raparigas. Com o tempo, notamos um aumento de confiança das raparigas, e na sua resiliência. Estas raparigas facilmente desmotivavam quando eram confrontadas perante uma dificuldade. À primeira desistiam. E no surf é assim, 'ok não conseguem apanhar uma onda, vão tentar na próxima'. É trabalhar nessa persistência. Agora elas conseguem agarrar nessa persistência e aplicar em outras áreas da vida", afiança.
"Com o tempo, notamos um aumento de confiança das raparigas, elas à primeira dificuldade desistiam"
Ao cabo de três anos essas mudanças já podem ser sentidas, embora sejam difíceis de quantificar. Para muitas, os abusos de que as mulheres são alvo, tanto a nível físico como psicológico, eram aceitáveis, uma realidade que está a transformar-se.
"Hoje as raparigas que nos acompanham há três anos já falam sem vergonha, sem olhar para baixo, têm mais confiança. E para isso é preciso compreender muito a realidade local, e perceber que estas mulheres existiam para servir as tarefas de casa e casar, e com esta intervenção nota-se que há uma transformação no que elas entendem que é o papel da mulher na sociedade . Muitas delas achavam que a violência contra a mulher, quando houvesse um motivo, era justificada. Hoje já não é assim", confirma Francisca.
"Há uma transformação no que elas entendem que é o papel da mulher na sociedade . Muitas delas achavam que a violência contra a mulher, quando houvesse um motivo, era justificada"
E até o conceito do que é ser mulher tem mudado na cabeça destas raparigas: "Muitas delas recusavam dividir tarefas com os rapazes porque isso dava uma imagem de que elas não eram mulheres boas para casar, e hoje sentem-se mais confiantes para partilhar essas tarefas e ainda o exigem no seio familiar", conta.
Face a um abandono escolar gritante, e com 67% da população abaixo do nível de pobreza, o sucesso escolar é por isso o próximo 'upgrade' na intervenção da SOMA. "Queremos investir os nossos recursos numa educação de qualidade e veremos o resultado, medindo o impacto não só na assiduidade destas raparigas na escola mas também no aproveitamento. E fazemos por isso reuniões com os professores, e os pais já nos estão a pedir para irmos às reuniões na escola para sermos nós a fazermos o acompanhamento. Mas nós não queremos substituir os pais, vamos com os pais. É importante a rapariga sentir que os pais têm as suas obrigações", ressalva.
Maura é um dos rostos do projeto. Uma menina tímida, de poucas palavras, mas que o surf fez florescer. Foi a primeira rapariga a representar São Tomé numa competição internacional, na Libéria. Livre de todas as amarras do país onde tinha crescido, e rodeada de rapazes que não falavam a sua língua, entrou num mar que não conhecia. De sorriso no rosto, apanhou ondas indiferente ao que a rodeava. "Ela não o teria feito em São Tomé, com os rapazes da sua ilha. Assim que se viu livre dessa expetativa social revelou-se", recorda a presidente da associação.
As famílias têm visto com bons olhos o progresso destas meninas. Contudo, sente-se ainda "uma difícil aceitação" na divisão de tarefas e de rotinas que a adesão ao projeto implica. "Não há essa flexibilidade, apesar de estarmos a conseguir mostrar os direitos que elas têm e o porquê de lutar por eles torna-se difícil aplicar isso no dia a dia. Por isso, no início de 2024 vamos desenvolver um projeto para a parentalidade positiva. Um projeto de pais e mães que implica que estes cooperem no desenvolvimento, para as filhas obterem todas as regalias".
No fundo todos os sonhos são possíveis, e todas elas podem aspirar a uma vida melhor, assegurando-se que são educadas em condições de higiene, segurança e sem violência física. Que tudo o que há de negativo "pode ser reduzido ao máximo e que estas crianças possam viver num ambiente mais positivo", afiança.
Mas nem só de raparigas se faz este projeto. Luisinho já era surfista e professor da modalidade em Santana e foi convidado a juntar-se ao projeto. Em 2020 confessa que ficou surpreendido quando viu algumas mulheres a pegarem em pranchas para surfar. "A nossa reação foi muito boa, ficámos todos muito contentes", relata.
Recorda ainda o medo que algumas das raparigas tinham quando foram a primeira vez para o mar com as pranchas: "Ao início tinham bastante medo mas nós, os instrutores, estávamos lá a motivar e elas aprenderam a relaxar no mar."
Não tem a menor dúvida do impacto que o surf pode ter na vida delas: "Elas perceberam que são capazes de fazer tudo o que querem, não são só os rapazes. Não há limites, elas podem fazer diferente."
"Elas perceberam que são capazes de fazer tudo o que querem, não são só os rapazes. Não há limites, elas podem fazer diferente."
O rastilho da ação da Soma também foi seguido por alguns dos instrutores locais, que abriram os olhos para essa realidade. Kedsom, 27 anos, pai de duas meninas, uma de dois anos e outra de sete, é instrutor de surf da Praia de Melão, e também quer contribuir para a mudança de mentalidades em São Tomé.
"Algumas pessoas aqui ainda pensam que as mulheres só servem para lavar a loiça e organizar as coisas em casa. Mas não é assim. Há muitas meninas que querem surfar e isso promove o seu bem estar emocional. Alivia o stress e sinto que elas estão muito mais focadas no surf e nos estudos. Fico sempre surpreendido quando as vejo ao fim de dois meses a colocarem-se em cima da prancha e a cortar as ondas", conta-nos.
"Algumas pessoas aqui ainda pensam que as mulheres só servem para lavar a loiça e organizar as coisas em casa. Mas não é assim."
Kedsom cobra as aulas aos turistas, mas empresta as pranchas e dá aulas a quem não teria condições para o fazer de outra forma. Dessa forma não vira as contas à comunidade. Entre sorrisos, conta-nos um episódio que ficou na sua memória "Um surfista um dia virou-se para mim e disse-me que tinha que parar de estudar porque não tinha condições para continuar a estudar. Conversei com o pai dele e ele disse-me que queria muito estudar. Ajudei apoios e ele conseguiu retomar os estudos."
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