Quando era pequeno, escondia-me para ninguém me ver e hoje quero que todo mundo me veja e ouça o que tenho para contar. Qual a cor mais marcante que existe? O amarelo fluorescente. Orgulhoso da pessoa que me tornei, mas acima de tudo orgulhoso da minha equipa, que tornou possível este marco histórico.
Esta foi a mensagem de Álex Roca, o primeiro atleta com 76 % de incapacidade, após terminar uma maratona de mais de 40 quilómetros, em Barcelona, no final de março.
O limite és tu que o colocas. Este é a frase que acompanha o atleta espanhol de 32 anos na vida, seja em campanhas da Nike, como embaixador da Fundação FC Barcelona ou no título do seu livro. O limite não é apenas físico, parte dele passa pela superação mental, que no caso de Álex começou pouco depois de conhecer o mundo.
Os médicos deram-lhe pouco tempo de vida, quando a vida havia começado. Nasceu com paralisia cerebral, deficiência motora e um prognóstico muito reservado quanto ao desenvolvimento. Há pouco de científico para o que viria a seguir. A equipa médica que o acompanhou desde pequeno questionou-se ao ver a primeira pessoa do mundo com 76% de incapacidade a completar uma maratona. Foram precisas 5h50m51s para completar os 42,195 quilómetros da Maratona de Barcelona.
Recordo quando fui à escola pela primeira vez e dei conta de que era diferente dos outros meninos e meninas, tinha uma grande incapacidade, eles conseguiam falar e eu não. Foi algo muito impactante. Percebi também que se riam de mim nas ruas. Lembro-me também de ficar fechado num carro ou de que não poder sair de casa. Também me recordo quando a psicóloga disse que essas pessoas deviam ser tratadas com educação e ignorância. Comprei um saco de boxe para largar toda a raiva que sentia.
Estas foram as palavras de Álex Roca ao SAPO Desporto. Palavras oralizadas pela esposa Mari Carme que traduziu-nos os gestos desenhados pela mão direita do marido. Deste lado tivemos apenas de traduzir do castelhano para o português.
Em 24 de janeiro de 2017, Mari Carme estava na primeira fila de uma das palestras motivacionais liderada por Álex Roca. Nessa mesma noite, depois de ter partilhado com a mãe o que havia presenciado, Mari Carme e Álex trocaram mensagens no WhatsApp e, cinco anos depois, estavam a trocar juras de amor numa igreja, perto do Parc Natural del Montseny, em Girona.
Ela é a minha voz, a minha sorte, o meu dia-a-dia e a pessoa que confia mais em mim. Juntos, lutamos para que muitos sonhos se cumpram. O que fazemos é planear todos os desafios da corrida e lutar para consciencializar uma sociedade atual estigmatizada.
I | Viver
O destino de Álex Roca Campillo ficou traçado quando, aos seis meses de vida, uma encefalite viral herpética (herpes cerebral) provocou-lhe uma lesão no cérebro que afeta a mobilidade, limitando a atividade.
A paralisia cerebral afetou todo o seu lado esquerdo do corpo, assim como o desenvolvimento da fala. Na altura, os médicos preparam os pais para dois cenários: ou morreria cedo ou ficaria gradualmente em estado vegetativo.
Nem sempre o acreditar é suficiente para viver, por vezes a sorte faz o seu trabalho. Pouco depois de nascer, em 1991, um medicamento que poderia ajudar a impedir a progressão da doença foi lançado no mercado e os médicos conseguiram travar a evolução da herpes cerebral, o que lhe salvou a vida.
Teve de ser operado duas vezes aos tendões, devido a uma curvatura acentuada nos pés, e realizar muitas horas de fisioterapia para que o braço esquerdo desprendesse totalmente do seu corpo.
A lesão não afetou a parte intelectual. Aprendeu língua gestual no Hospital Sant Joan de Déu, em Barcelona, para ajudar a expressar-se. O avó ensinou-o a andar e depois veio a corrida.
É um desporto onde consegues ligar o corpo à mente. No meu caso foi tudo gradual, chegou como um desafio. Comecei por correr cinco quilómetros, depois 10, até que em 2019 corri a primeira meia-maratona e desde então não consegui parar. Já totalizo seis meias-maratona e 15 de treino. No passado 19 de março fui a primeira pessoa do mundo, com 76% de incapacidade física e paralisia cerebral, a completar uma maratona.
Um dia, quando tinha 19 anos, estava no parque com os meus amigos e chegou um momento em que pensei: O que é que faço aqui todas as tardes? Tenho de aproveitar a minha vida, fazer alguma coisa grande. Via o meu irmão competir em triatlos e no princípio pensei que não podia fazer o mesmo, porque não sabia nadar e também não conseguia andar sozinho de bicicleta. Até que um dia decidi comprar um fato de mergulho, uma máscara para não engolir água e uma bicicleta de três rodas. A partir daí aprendi que ninguém me pode dizer que não consigo fazer o que quer que seja. Eu é que sei se consigo ou não, e pelo menos vou sempre tentar.
Álex Roca explica no livro sobre a sua vida El límite te lo pones tú [O limite és tu que o colocas, em tradução livre, sem edição em português, mas disponível para venda em Portugal], que não gosta da palavra incapacidade, conta ele num dos capítulos do livro.
Gosto muito de dar palestras para mostrar à sociedade que és tu que traças os teus limites, ao mesmo tempo que tento consciencializar e aproximar a sociedade desta incapacidade. Não gosto desta palavra, gosto de pensar que somos pessoas com capacidades diferentes e que devemos ser tratados como os outros.
Álex Roca tem uma formação em Gestão de Empresas, licenciou-se em Integração Social, trabalha como contabilista, dá palestras motivacionais e conduz um carro automático. Pode parecer uma vida normal, mas teve de enfrentar muita discriminação nesses mesmos locais de formação. Até em hotéis quando viaja com a sua esposa, muitos pensam que são irmãos e atribuem-lhes quartos com camas separadas.
II | Superar
Depois de fintar a morte e superar tantos obstáculos, Álex Roca tem um conselho e deu-lo nas suas redes sociais.
O limite és tu que o impões e, se quiseres cumprir um objectivo, com atitude, força de vontade, consistência e resiliência, podes conseguir tudo a que te proponhas, não importa as dificuldades que tiveres. E se não o conseguires, terás dado tudo e deverás sentir-te recompensado.
Álex Roca conta já com um bom álbum de recordações para mostrar aos filhos, quando os tiver porque vontade existe. Enquanto não chegam, os que o seguem nas redes sociais podem apreciar alguns desses momentos de superação, como os que estão na galeria abaixo.
III | Acreditar
A ex-nadadora paralímpica Maria João Morgado, que marcou presença nos Jogos Paralímpicos de Sydney (2000) e Atenas (2004), elogiou o feito de Álex Roca, mas alertou para a necessidade de contextualizar, antes de se assumir que o espanhol conseguiu “um feito inédito”.
“Não se pode desvalorizar o feito de uma pessoa com paralisia cerebral ter conseguido correr uma maratona, mas é essencial perceber as características físicas”, disse Maria João Morgado à agência Lusa, lembrando que as tabelas de incapacidade não são uniformes na Europa.
“Elogio a pessoa com os pés na terra, mas é abusivo dizer que é o primeiro. Será, provavelmente, o primeiro com aquelas características”, afirma, deixando um lamento: “É muito mais bombástico escrever isto de ser o primeiro, do que fazer um texto contextualizado e explicar que as pessoas são diferentes e têm capacidades diferentes”.
Maria João Morgado, que tem paralisia cerebral e uma incapacidade de 80%, duvida muito que Álex Roca seja o primeiro a conseguir terminar uma maratona com um grau de incapacidade de 76%.
“Além das pessoas que fazem a maratona em cadeira de rodas, há, quase de certeza, atletas nas competições adaptadas com um grau de incapacidade idêntico que já o fizeram”, refere Maria João Morgado, admitindo que a sua opinião pode fazer com que algumas pessoas a olhem como “bruta e insensível”.
“É muito complicado não passar por bruta e insensível. Muitas vezes sinto que só somos vistos de duas formas: ou somos super-heróis, porque conseguimos algo que os outros acham fantástico, ou somos desgraçadinhos, porque precisamos de ajuda”, afirma, assumindo-se “cansada da dicotomia de pessoas com deficiência versus pessoas sem deficiência”.
Maria João Morgado assume que ela e o marido, também deficiente, tentam “desconstruir de forma natural muitos mitos” que existem sobre incapacidades, tendo “um emprego e uma vida normal”.
“Eu quero ser como o comum dos mortais. Não vivo só na redoma da deficiência, sou muito mais do que a minha deficiência”, assume.
Ao SAPO Desporto, Álex Roca defendeu-se.
Sou a primeira pessoa, com estas características, a completar uma maratona. Como o posso provar? Que venha alguém e que mo diga o contrário. Eu não conheço ninguém. Acho que se assim não fosse o saberíamos, não? Por isso é que este feito impactou o mundo. Conheço uma pessoa com uma paralisia cerebral, dos Estados Unidos da América, que completou uma maratona, mas não tem um 76% de incapacidade física.
Já o atleta Miguel Pinto, que, juntamente com o irmão Pedro que tem paralisia cerebral, forma os ‘Iron Brothers’, classifica um “esforço titânico” o feito de Álex Roca.
“O que o Álex Roca fez foi incrível, porque a dificuldade que isto teve para ele é imensa. Foi um esforço titânico para ele, e exigiu um trabalho prévio gigantesco”, afirmou Miguel Pinto, também à agência Lusa.
Habituado a fazer provas de triatlo juntamente com o irmão Pedro, que tem paralisia cerebral, Miguel Pinto destaca as dificuldades que Álex Roca teve para completar a maratona de Barcelona.
“Enquanto para quem não tem deficiência há apenas desgaste muscular, para ele, pelas posturas que desenvolveu ao longo de anos, há um desconforto físico grande muito aliado ao muscular”, referiu.
O atleta português lamentou que ainda haja “vergonha da deficiência e que muitas vezes os pais ainda tenham a tendência de esconder os filhos”.
“É isso que é preciso mudar, de uma forma positiva”, afirmou, destacando a importância de feitos como o do espanhol para essa alteração de paradigma.
O que dizer aos pais de uma criança com deficiência e que pretenda iniciar-se num desporto mais exigente?
Para irem passo a passo, que se apoiem, procurem ajuda, que sonhem e que evitem o condescendimento. Realmente a vida é só uma mas isso sim, protegendo, escutando as opiniões médicas e analisando o que podem fazer cada um e que não tem de fazer desporto para ser feliz.
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