Afinal, o que aconteceu a 08 de setembro, em Flushing Meadows, Nova Iorque?
A japonesa Naomi Osaka conquistou no sábado o primeiro título do Grand Slam, ao vencer a norte-americana e hexacampeã Serena Williams na final do US Open em ténis, último ‘major' da temporada.
Aos 20 anos, a número 19 no ‘ranking' mundial entrou no Arthur Ashe Stadium nervosa, como admitiu na curta entrevista prévia à final, mas determinada a fazer frente ao seu ídolo Serena Williams, a quem acabou por vencer, em dois ‘sets’ por 6-2 e 6-4, para conquistar o troféu.
Num encontro polémico, e dominado desde início pela jovem nipónica, as atenções estiveram, contundo, centradas no árbitro português Carlos Ramos e na norte-americana, que recebeu três advertências. A primeira por ‘coaching', seguida de abuso de raqueta (que deu origem a um ponto de penalidade) e ainda abuso de linguagem, que resultou num jogo de penalidade.
Serena Williams, 26.ª do mundo, não foi capaz de aceitar a primeira advertência, por ter recebido indicações do treinador Patrick Mouratoglou, e reagiu, logo após o segundo ‘warning', defendendo não ser ‘batoteira’, ao mesmo tempo que acusou o árbitro de estar a roubar-lhe um ponto.
"Estás a ofender o meu caráter e deves-me um pedido de desculpas. És um mentiroso. Nunca mais vais arbitrar um encontro meu na vida. Pede-me desculpa. Tu roubaste-me um ponto e és um ladrão também", disparou, recebendo de Carlos Ramos o castigo de um jogo de penalidade, passando Osaka a liderar o segundo ‘set’ por 5-3.
Apesar da controvérsia e breve interrupção do encontro, ainda com a chamada do supervisor ao ‘court’, a jogadora nipónica não perdeu a concentração e fechou a vitória sem grandes celebrações, não evitando as lágrimas uma vez nos braços de Serena Williams que, apesar de perturbada, não hesitou em confortar a nova campeã do US Open.
Enquanto Serena Williams disputou a 31.ª final de um ‘major’ e nona em Flushing Meadows, onde ganhou seis vezes e perdeu três, Naomi Osaka tornou-se na primeira japonesa a marcar presença no derradeiro encontro de um torneio do Grand Slam e primeira a conquistar um ‘major' na Era Open (desde 1968).
Graças ao triunfo, Osaka, que só tinha vencido o torneio de de Indian Wells, angariou cerca de três milhões de euros, mais do que havia somado em toda a curta carreira, e vai tornar-se número sete da hierarquia WTA.
Advertências, orientação de treinadores desde a bancada, perda de pontos e jogos. Entenda as regras
Os jogadores podem receber instruções dos treinadores entre sets, mas nunca durante as partidas, ao contrário do que se passa em modalidades como, por exemplo, o futebol.
Serena Williams recebeu o primeiro aviso quando Patrick Mouratoglou, treinador da tenista norte-americana, foi apanhado a dar orientações à sua pupila. O árbitro deu a primeira advertência, um aviso aos atletas para não voltarem a quebrar as regras. Após a final, Mouratoglou admitiu ter dado indicações à sua jogadora, algo claro para quem estava a ver nas câmaras.
Caso haja nova violação do código, descrito no regulamento, o árbitro retira um ponto (da contagem 15, 30 ou 45). A partir daí, o juiz passa a penalizar jogos (é necessário vencer seis para conquistar um set) por cada ato de má conduta de forma consecutiva.
"O Árbitro de Cadeira é o primeiro responsável pela aplicação do Código de Conduta durante um encontro. As Violações de Código deverão ser aplicadas imediatamente assim que o Jogador viola o Código. Uma Violação de Código deverá ser aplicada por cada violação. Após o encontro o Árbitro de Cadeira terá ainda que reforçar o Código reportando todos os factos ao Juiz Árbitro", pode ler-se no Regulamento de Arbitragem da Federação Portuguesa de Ténis.
O SAPO Desporto entrou em contato com o Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de ténis, nomeadamente com o seu presidente Paulo Cardoso, para entender melhor o caso. Veja a entrevista abaixo
Algo de errado se passaria se Carlos Ramos tivesse problemas por fazer bem o seu trabalho.
SAPO Desporto - Qual a sua opinião sobre a polémica final feminina do US Open. Há motivos para debates ou a forma como Carlos Ramos conduziu o jogo foi a melhor?
Paulo Cardoso - Todos os assuntos podem ser objecto de debate e, por exemplo, a regra que não permite o “coaching” (instruções aos jogadores) não é exceção. À luz das regras e procedimentos de arbitragem em vigor, na minha opinião, o Carlos Ramos conduziu muito bem o jogo.
SD - Já falou com Carlos Ramos?
PC - Sim, na semana passada conversei com ele. Naturalmente falamos sobre o sucedido e sobre as diversas reacções. Foi mais ele a contar-me como ele viveu o momento e uma troca de impressões.
SD - Tem conhecimento de algum tipo de 'pressão' sobre árbitros por parte dos tenistas em torneios portugueses?
PC - Não, não tenho conhecimento. Naturalmente que no decurso dos encontros existem momentos de discussão sobre as decisões dos árbitros, faz parte do jogo.
SD - Ao contrário de desportos como o futebol, o ténis destaca-se por ter uma arbitragem que não dá azo a muitas dúvidas. Quando são valores humanos fica mais difícil fazer uma avaliação?
PC - Bem, aqui discordamos. O olho de falcão só está disponível nos courts principais, dos principais torneios que não sejam disputados em terra batida. Em Portugal, creio que nunca tivemos nenhum torneio com olho de falcão, ou Hawk Eye como é internacionalmente conhecido. Logo, existem muitas vezes dúvidas se a bola foi dentro ou fora. Saliento que é uma bola pequena que “anda” muitas vezes a mais de 200 kms/h e nos torneios profissionais, com prize moneys mais baixos, nem sequer existem os juízes de linha. Resumindo, há muitas vezes dúvidas e muitas discussões. No nível mais elevado não existem tanto estas questões, a dificuldade da arbitragem está mais centrada na “gestão” do comportamento dos jogadores, na condução ao encontro de acordo com as regras, de forma justa para ambos os jogadores.
SD - Tem conhecimento de casos de sexismo no ténis português? Já algum árbitro foi acusado?
PC - Não, não tenho conhecimento de discriminação no ténis. Todos assistimos a um comportamento errado de uma jogadora que, naturalmente, foi penalizada. Depois muita gente falou de outras coisas…
SD - Qual a sua opinião sincera sobre o que se passava na cabeça de Serena Williams durante a final?
PC - Sinceramente não sei, não tenho opinião e se a tivesse também não a comunicaria.
SD - Carlos Ramos tem motivos para se preocupar com o seu futuro e o seu estatuto dentro da arbitragem?
PC - O Carlos Ramos é dos melhores árbitros de ténis do Mundo. Algo de errado se passaria se tivesse problemas por fazer bem o seu trabalho.
A Associação de Ténis Feminino pede igual tratamento para homens e mulheres no ténis
A Associação de Ténis Feminino (WTA) pediu igual tratamento para todos os competidores e treinadores dos circuitos de ambos os sexos, após o incidente na final do Open dos Estados Unidos.
“A WTA acredita que não deve haver diferença nos padrões de tolerância proporcionados às emoções expressas por homens e mulheres e estamos comprometidos em trabalhar com o desporto para garantir que não haja discriminação. Não acreditamos que isso tenha sido feito sábado à noite”, disse Steve Simon, diretor-geral do organismo. A Pro Tour feminina solidarizou-se também.
O campeão masculino, o sérvio Novak Djokovic, igualmente castigado no passado pelo juiz luso, entende que o castigo não deveria ter sido tão duro.
“Podia ter sido diferente, mas não mudou o rumo da partida”. Na minha opinião talvez tenha sido desnecessário. Todos temos as nossas emoções, principalmente quanto lutamos por um título do Grand Slam”, disse.
Ainda assim, o terceiro jogador do ranking discorda que haja tratamento diferente dos árbitros para homens e mulheres.
“Não vejo as coisas da mesma forma do senhor (Steve) Simon. Realmente não. Acho que homens e mulheres são tratados desta ou daquela forma dependendo da situação. É difícil generalizar as coisas, realmente. Acho que não é necessário haver este debate”, concluiu.
Em 2009, Serena foi eliminada por agressões verbais a uma juíza de linha
Em setembro de 2009, Serena Williams, então número dois do ranking mundial, terminou da pior forma a sua participação no US Open desse ano. A tenista ameaçou uma juíza de linha, foi desqualificada, dando a vitória por 2 sets a 0 (6-4 e 7-5) e a vaga na final para a belga Kim Clijsters.
Atrás no marcador após perder o primeiro set e com 6-5 no segundo, a juíza de linha assinalou pé na linha no seu segundo serviço, que representava dupla falta e dois match points para a belga. Nesse momento, Serena, apontando a raquete para a juíza, ameaçou-a: “Vou-te enfiar este bola pela garganta abaixo”, terá dito Williams.
Os tenistas homens são mais vezes punidos disciplinarmente do que as mulheres
A presidente da Associação de Ténis dos Estados Unidos da América foi uma das personalidades que mostrou o seu apoio a Serena Williams, referindo que existem tratamentos diferentes por parte dos árbitros quando se trata se avaliar o trabalho de tenistas homens e mulheres, tendo referido aos microfones da ESPN que "não há igualdade".
Contudo, na semana passada, Carlos Ramos e Katrina Adams encontraram-se por acaso na cidade croata de Zadar e, de acordo com a imprensa, a presidente pediu desculpas a Carlos Ramos pelas declarações.
Isto porque entre as declarações de Adams e Ramos foi divulgado uma estatística sobre advertências, e esta demonstrava que os homens são muito mais castigados do que as mulheres. Nos últimos 20 anos de torneios de 'Grand Slam,' os atletas masculinos receberam três vezes mais violações do código de conduta quando comparados com atletas femininas (1534 contra 526).
O boletim explica ainda que só no US Open, palco da discórdia entre Serena e Ramos, onde tudo aconteceu, os homens foram punidos com 86 violações do código de conduta, enquanto as mulheres foram penalizadas apenas 22 vezes.
Em Zadar, enquanto decorria a Taça Davis, o antigo número um mundial Jim Courier diz não ter dúvidas "de que Carlos apenas aplicou as regras". Assim como Steve Johnson, atual número 30
"Carlos Ramos reforçou as regras que foram aplicadas em mim ao longo dos anos. Eu nunca fui chamado para coaching, mas o abuso de raquete, o abuso verbal, que é apenas parte do esporte. Eu acho que muito disso talvez tenha sido super amplificado porque foi a final do US Open", disse o norte-americano.
O presidente da arbitragem da ITF, Enric Molina, também não tem dúvidas: "O trabalho de Carlos era imaculado, sob circunstâncias muito difíceis, foi uma triste resposta dos órgãos governamentais não apoiar o excelente trabalho do árbitro".
Serena não é a única: As desavenças do árbitro Carlos Ramos com outros jogadores homens, e também mulheres.
John McEnroe, o pior pesadelo para um árbitro, saiu em defesa de Serena
John McEnroe, antigo tenista que também ficou conhecido pelo seu temperamento e mau-feitio, solidarizou-se com a norte-americana.
"Eu disse muito pior do que Serena. Ela tem razão sobre a diferença de tratamento dado a homens e a mulheres. Não há dúvidas sobre isso"
O antigo número um do mundo, que se tornou também famoso pelos seus jogos épicos contra Björn Borg, Jimmy Connors e Ivan Lendl, já teve desavenças com Serena Williams no passado.
Se agora dá razão a Serena, que reclama igualdade de tratamento entre homens e mulheres no circuito mundial de ténis, a verdade é que no passado McEnroe tinha uma opinião contrária. Em junho de 2017, o norte-americano 'carregou' sobre Serena Williams, sublinhando que se ela competisse no circuito masculino "lutaria para ficar no top 700".
"Considero a Serena uma incrível atleta e sinto que no desporto sempre tudo é possível e a verdade é que, de um certo ponto de vista, podemos dizer que o ténis feminino tem mais qualidade, mas se ela competisse no circuito masculino penso que ela poderia lutar apenas por um lugar entre os 700 melhores do mundo. O que ela fez no ténis é absolutamente fantástico mas o circuito masculino é uma história completamente diferente", disse McEnroe à rádio NPR.
Na altura, Dmitry Tursunov, então 701.º melhor jogador do Mundo, chegou mesmo a dizer que se sentia capaz de vencer Serena Williams.
A norte-americana, que na altura estava grávida da sua filha Alexis Olympia Ohanian Jr, respondeu da seguinte forma, numa publicação na rede social Twitter.
"Caro John McEnroe, respeite-me e à minha privacidade enquanto estou a tentar ter um bebé. Bom dia, senhor", escreveu.
"Não compreendo nem aprovo a atitude da Serena", Maria João Koehler
Conversamos ainda com Maria João Koehler, atual 596ª classificada do ranking WTA mas que chegou a estar, em 2013, às portas do Top-100, sobre este caso, um dos mais polémicos dos ténis na última década.
SAPO Desporto - Como tenista, compreende a atitude de Serena Williams durante a final feminina do US Open 2018?
Maria João Koehler - Não compreendo nem aprovo a atitude da Serena. É uma super campeã e, como tal deveria dar o exemplo. É fácil ser-se humilde quando tudo corre bem. É, precisamente, nos momentos difíceis que a humildade deve estar presente.
SD - Acha que as emoções de uma final foram mais fortes do que o discernimento necessário em momentos como este?
MJK - Sem dúvida que o facto de estar a jogar uma final de um Grand Slam pesou na equação. Há mais nervosismo à mistura. Mas como referi em cima, a humildade e o discernimento devem estar presentes em todos os momentos. Por isso, não acho que o facto de estar a jogar a final do Us Open possa ser dado como desculpa.
SD - E qual a sua opinião sobre a conduta do árbitro Carlos Ramos, tomou as medidas certas ou foi duro nas decisões de penalização?
MJK - Acho que o Carlos Ramos foi muito profissional e não se deixou intimidar pelo facto de se tratar de uma jogadora com o currículo e peso da Serena. Isto mostra que tem carácter e que cumpre o seu dever acima de tudo. E é por estas e outras qualidades que é um dos melhores árbitros do mundo.
Acho que esta situação gerou muita polémica não por acharem que a Serena tinha razão mas sim por haver outros episódios em que outros árbitros não agem da mesma maneira. Mas mais uma vez, o Carlos Ramos agiu da maneira correcta e como profissional que é. Se os outros árbitros nao têm ou não teriam a mesma atitude é um problema deles e nunca do Carlos. Ele seguiu as normas e todos os atletas sabem quais são.
SD - Como mulher, sente que as tenistas são vistas de forma diferente?
MJK - Acho que é um assunto que tem evoluído muito nos últimos anos. É discutível. Podemos falar de discordâncias em relação a prize-Moneys e opiniões de jogadores masculinos que acham que não devíamos receber os mesmos valores. Mas é um facto que isso já não acontece. Se somos vistas de maneira diferente, não sei. Mas somos tratadas de forma igual.
SD - Já foi vitima de algum tipo de sexismo no ténis?
MJK - Nunca.
Naomi Osaka foi maior do que a polémica e deveria ter saído de Flushing Meadows com um grande sorriso
Mas não. Era visível o desalento da jovem tenista japonesa quando percebeu que tinha conquistado, pela primeira vez, um Grand Slam.
A tenista japonesa esteve, dias depois, à conversa com Ellen DeGeneres no seu 'talk-show' vespertino, um dos programas com mais sucesso da televisão norte-americana, e partilhou o que Serena Williams lhe disse ao ouvido.
“Ela disse que estava orgulhosa de mim e que queria que eu soubesse que não me estavam a vaiar a mim.” Durante a entrega do prémio, Osaka pediu, ao microfone, desculpas aos adeptos presentes por ter vencido, enquanto enxugava as lágrimas que lhe corriam pela face.
“Na altura da entrega dos prémios, achava que os assobios eram dirigidos a mim. Não conseguia perceber o que se estava a passar. Foi um bocado stressante”, confessou a jovem atleta de 20 anos, que ainda não percebia bem o que se estava a passar, nem mesmo quando lhe foi entregue o troféu de uma das quatro maiores competições de ténis do mundo.
“Não conseguia ouvir e estava a olhar para outro lado. Ouvi muitas gente na bancada a fazer barulho, por isso queria muito ver o que se passava mas não o fiz”, contou a tenista de 20 anos, que só soube da polémica entre a adversária e o árbitro português quando saiu de court, um lugar onde deveria ter saído envolvida pela glória.
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