No último dia de abril, António Costa colocava um ponto final no suspense e dividia as 'águas' no futebol português: a Primeira Liga iria regressar para se jogar as dez jornadas que restam para terminar a época, assim como a final da Taça de Portugal, mas a Segunda Liga estava 'acabada'.
Uma decisão que ficava dependente do protocolo de saúde apresentado pela Liga de Clubes à Direção-geral da Saúde, entretanto já aprovado. Os jogos serão a porta fechada mas nem todos os clubes terão a possibilidade de jogar em casa. Alguns estádios não reúnem as condições sanitárias exigidas pela DGS, pelo que foi preciso escolher um conjunto de oito recintos para receber os 91 jogos que faltam para terminar esta época de futebol.
Mas o regresso do futebol não foi permitido na Segunda Liga. O Governo, após "ouvir a Liga e a FPF", decidiu que "só para a Liga havia condições para se fazer esta reabertura para concluir a época, e sempre em condições limitadas". Aquando da interrupção da prova, o Casa Pia ocupava o 18.º e último lugar, com 11 pontos, após 24 jornadas, e o Cova da Piedade o 17.º e penúltimo, com 17. O Vilafranquense era a primeira equipa a salvo da despromoção, com 24.
Clubes do Campeonato de Portugal questionam FPF e LPFP
No dia seguinte ao anúncio do regresso do futebol, a Liga de Clubes reuniu-se com os líderes dos emblemas que disputam os campeonato profissionais de futebol e ficou determinado que Nacional e Farense, os dois primeiros classificados da Segunda Liga, iriam ser promovidos. Casa Pia e Cova da Piedade, emblemas que se encontravam nos últimos dois lugares da Segunda Liga.
Ao mesmo tempo, a Federação Portuguesa de Futebol tomou a decisão de não haver mais jogos no Campeonato de Portugal. A FPF decidiu que Arouca e Vizela, dois dos quatro líderes das Séries A, B, C e D do Campeonato de Portugal, seriam promovidos aos campeonatos profissionais por serem, entre os líderes, aqueles com mais pontos.
Estas decisões deram lugar a várias reações em cadeia, com vários clubes a criticarem a forma como a Liga de Clubes e a FPF conduziram o processo. Os emblemas da Segunda liga que ainda tinham hipóteses de conseguir a promoção criticaram a decisão. O Académico de Viseu (8.º) fala em "discriminação" por parte da FPF, o Estoril (4.º) criticou o "tratamento desigual" dada às duas ligas profissionais de futebol em Portugal.
A crítica mais forte chegou do Cova da Piedade, um dos dois emblemas a ser despromovido, face a decisão de não se jogar mais na Segunda Liga. O emblema da Margem Sul do Tejo diz que vai impugnar a descida ao Campeonato de Portugal aprovada pela direção da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP).
Do Campeonato de Portugal chegaram também ameaças de impugnação da decisão por parte dos emblemas a quem foi retirado a hipótese de subirem à Segunda Liga. Os outros seis clubes que estavam em posição de play-off de promoção, Fafe, Lourosa, Benfica e Castelo Branco, Praiense, Olhanense e Real Massamá, reuniram-se para tomar medidas. "Esta é uma decisão administrativa que tem de ser impugnada, não tem lógica nenhuma, não falaram com clubes e associações. São decisões para fazer jeitinhos, mas não as vamos tolerar. Não brincamos ao futebol! Era mais juntos um sorteio por bolas do que isto... Estamos unidos e vão levar connosco até ao fim", sublinhou Marco Monteiro, presidente do Praiense.
A situação piorou, após estes emblemas marcarem uma reunião com o presidente da Federação Portuguesa de Futebol, Fernando Gomes, e de o mesmo ter enviado diretor-técnico nacional, José Couceiro, o diretor de competições da FPF, Carlos Lucas, e o diretor-geral adjunto do organismo, Luís Sobral, em representação da FPF. Os primeiros classificados das séries C e D, Praiense e Olhanense, respetivamente, e os segundos classificados de todas as quatro ‘poules’, casos de Fafe, Lusitânia de Lourosa, Benfica e Castelo Branco e Real Massamá pretendiam manifestar junto ao líder federativo o seu descontentamento com o fim precoce do campeonato que impossibilitou a realização dos ‘play-offs’. Acabaram por abandonar a reunião quando deram conta de que Fernando Gomes não iria estar presente.
FPF e Liga ajudam clubes
Para compensar os clubes lesados, a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Federação Portuguesa de Futebol criaram dois fundos de apoio, com o objetivo de ajudar os clubes a superar os problemas financeiros provocados com a decisão de acabar, precocemente, a II Liga. Os apoios destinam-se aos 14 clubes da Segunda Liga, excepto os promovidos Nacional e Farense (abdicaram das verbas de subida), e as equipas B de FC Porto e Benfica.
A FPF disponibiliza um milhão de euros, num montante máximo de 62.500 euros para cada clube, a ser distribuído em duas parcelas de 50 por cento cada. A essa verba acresce o montante que Nacional e Farense iriam receber pela promoção (os dois clubes abdicaram da mesma em favor dos outros 14 emblemas), o que dá mais 4.464 euros a cada clube da Liga 2. Com a verba da Liga de clubes, os 14 emblemas do segundo escalão terão 2,52 milhões de euros ao seu dispor, pelo que cada um vai receber 180 mil euros.
Fica por decidir possíveis apoios aos emblemas do Campeonato de Portugal que estavam em posição de disputar os play-off ou que ainda podiam alcançar essas posições mas que acabaram por ficar sem poder decidir um dos objetivos da época. Também os clubes dos campeonatos distritais que investiram para chegar ao Campeonato de Portugal e estavam em posição de lutar pela subida deverão ser compensados financeiramente com a não subida de divisão. Para já fica decidido que os líderes das séries na altura da interrupção das provas irão subir de divisão.
Oportunidade para reformular o Campeonato de Portugal
Com a decisão terminar prematuramente o campeonato de Portugal e a Segunda Liga, a Federação Portuguesa de Futebol aproveitou toda esta situação provocada pela pandemia de COVID-19 para reformular o terceiro escalão do futebol português, numa restruturação que passa pela criação de uma III Liga a partir de 2021/22.
Esta prova não vem acabar com o Campeonato de Portugal, mas irá passar a ser a competição do terceiro escalão, com o CP a descer um nível ao longo dos próximos anos. Na próxima época, de 2020/2021, o Campeonato de Portugal será disputado por 96 equipas o que incluem as 20 equipas que sobem das competições regionais, as duas que caíram da II Liga (Cova da Piedade e Casa Pia) e as quatro novas equipas B.
O objetivo passa, contudo, por reduzir o número de equipas para 76 entre Campeonato de Portugal e III Liga. Em 2020/2021, o Campeonato de Portugal terá duas séries. A primeira com oito séries, de doze equipas cada. As primeiras classificadas de cada grupo jogam entre si pelo acesso à II Liga, enquanto que os emblemas do 2.º ao 5.º lugar jogam por um lugar na nova competição da FPF.
Na fase seguinte, para acesso a II e III Liga, as equipas jogam entre si, numa liguilha, com os oito primeiros classificados a serem dividos em dois grupos no acesso à II Liga - aqui sobem à LigaPro o primeiro classificado de cada grupo.
No acesso à nova III Liga, ou seja, na decisão dos clubes que irão inaugurar a competição, as 32 equipas que ficaram classificadas entre o 2.º e o 5.º lugar nas series da Primeira Fase voltam a jogar entre si, divididas novamente em oito séries, mas desta vez de quatro equipas cada. Os dois primeiros classificados de cada grupo passam para a III Liga, os restante permanecem no Campeonato de Portugal.
Assim a III Liga começará com 24 equipas em 2021/2022, enquanto que o Campeonato de Portugal fica reduzido a 60 equipas, um número que se reduz a 56 na época 2022/2023. Já a III Liga também verá o número de participantes reduzido para 20, em 2023/2024.
É hora de parar para pensar o futebol português
Num momento em que Portugal ainda está em fase de adaptação ao levantamento de alguns medidas de confinamento, algumas figuras do desporto nacional entendem que o futebol não devia regressar nas condições já conhecidas. O experiente técnico Vítor Oliveira, que orienta o Gil Vicente, lembrou as dificuldades financeiras sentidas pelos clubes desde a suspensão das competições, no início de março, para pedir uma reflexão no futebol português.
"A verdade desportiva não tem qualquer influência, mas unicamente o aspeto financeiro e não vemos ninguém a querer resolvê-lo. [...] O futebol parou e, um mês depois, não havia dinheiro para pagar os ordenados. Numa indústria que movimenta tantos milhões parece algo inexplicável que o dinheiro tenha desaparecido completamente de um momento para o outro. Temos de criar condições para que os clubes se possam sustentar e ter credibilidade a todos os níveis, em prol de um futebol mais equilibrado, seguro e que dê confiança às pessoas", observou o experiente técnico de 66 anos.
José Neto, docente universitário de Paços de Ferreira, Mestre em Psicologia do Desporto, doutorado em Ciências do Desporto/Futebol e formador de treinadores, também não concorda com este regresso prematuro do futebol. Este docente universitário questiona se terão sido "criadas condições suficientemente capazes para dizer que a verdade da competição vai existir".
"Há uma ordem económica que se está a sobrepor a uma ordem competitiva e aos princípios que devem existir na vida em desporto: igualdade de critérios, liberdade e responsabilidade eclética", disse José Neto, em declarações à agência Lusa.
"O campeonato está ferido de uma certa legalidade, porque para questões novas, como é o caso, novas questões têm de ser resolvidas. E quem tem de decidir são os clubes todos, os representantes dos jogadores, que são o mais importante e nem estiveram representados na reunião a três com o primeiro-ministro, mas também dos adeptos", explicou.
José Neto aponta "desfasamentos enormes" entre as novas condicionantes competitivas e as dinâmicas competitivas que o futebol exige.
"Se obrigarem a treinar em 20 metros de distância, quero ver, depois, como vão jogar. Não é possível! Quem não joga como treina, não joga, apenas pratica. Jogar implica outras condicionantes e a reorganização do tempo e espaço são muito importantes no treino de futebol. E treinar à distância não é treinar, apenas preparar", sublinhou o docente, antes de abordar a questão dos jogos à porta fechada.
"Com o silêncio do estádio, o jogador entra muitas vezes mais relaxado, sente menos pressão na discussão do lance, por vezes poderá diminuir níveis de concentração e este vazio enorme poderá gerar um certo facilitismo. Além disso, um jogo sem público é um cartão vermelho ao futebol", concluiu.
Com cartão vermelho ou não, a verdade é que a Primeira Liga de futebol voltará no dia 04 de junho, com os jogos a serem disputados à porta fechada. Outra novidade prende-se com os estádios: apenas oito recintos foram classificados como sendo de nível 1, o nível exigido pela Direção-geral da Saúde para se jogar. Ou seja, mais de metade dos clubes da Primeira Liga irão fazer os jogos caseiros fora de portas. Sem público nas bancadas, pouca diferença faz.
Comentários