“Toda a gente acha que as mulheres deveriam ficar entusiasmadas quando recebemos migalhas. E eu quero que as mulheres tenham direito ao bolo, à cobertura e à cereja no topo também.”

A frase é de Bille Jean-King, uma das maiores tenistas norte-americanas e uma das protagonistas do jogo que ficou conhecido pela “Batalha dos Sexos”. Este jogo ocorreu a 20 de setembro de 1973 e opôs Billie Jean-King, na altura um dos maiores nomes do ténis feminino, e Bobby Riggs, antigo número 1 mundial e jogador já retirado das competições profissionais.

Ao contrário de muitos outros eventos desportivos, este jogo ultrapassou em larga escala a esfera do desporto. Em jogo estava estavam ideais, filosofias e visões da sociedade diametralmente opostas.

De um lado Billie Jean-King, de 29 anos, figura central do ténis mundial, uma das fundadoras da WTA (Women´s Tennis Association), defensora acérrima da igualdade de género propulsora do movimento de defesa da igualdade salarial entre homens e mulheres no ténis.

Do outro Bobby Riggs, 55 anos, tenista que brilhou nos finais da década de 1930, e que venceu torneios como Wimbledon ou o Open dos Estados Unidos. Já reformado do ténis profissional, Riggs era conhecido como um apostador compulsivo, tendo tornando-se um símbolo de uma América de forte índole machista e chauvinista.

“As mulheres devem estar, primeiro no quarto, depois na cozinha e a apoiar o homem, apoiar o rei” (Bobby Riggs)

A mulher na sociedade norte-americana dos anos 70

A “Batalha dos Sexos” surge num momento de grande agitação social nos Estados Unidos. Nascido nos finais dos anos 60, o Movimento de Libertação Feminina começa a fazer-se ouvir de forma cada vez mais clara e incisiva na sua luta pela igualdade de género e garantia de direitos fundamentais para as mulheres.

Um dos primeiros momentos de maior impacto mediático deu-se precisamente num evento desportivo. A 19 de abril de 1967, Kathrine Switzer tornou-se a primeira atleta feminina a registar-se oficialmente na Maratona de Boston. Contudo a norte-americana foi alvo de tentativas de desclassificação por parte de Jock Semple, um dos juízes da prova, quando este lhe tentou remover o dorsal.

"Um homem enorme, com dentes à mostra, estava pronto para atacar, e antes que eu pudesse reagir, ele agarrou o meu ombro e puxou-me para trás, gritando: "Sai da minha corrida e me dá esses números!" A seguir ele tentou arrancar o meu dorsal, dei um salto para trás e escapei. Fiquei tão surpresa e assustada que acabei por molhar um pouco as calças e virei-me para fugir. Mas agora o homem estava a segurar a parte de trás da minha camisola e a tentar arrancar o dorsal das minhas costas.

Então um flash de laranja passou a voar e acertou no Jock com uma placagem. Era o Big Tom, o meu namorado. Um impacto e Jock estava no ar. Parou à beira da estrada como um monte de roupas amarrotadas. Nós matámos este tipo.  Meu Deus, vamos todos para a prisão. Então vi a cara do Arnie - também cheio de medo; os seus olhos estavam arregalados e gritou: "Corre como o vento!"", descreve Kathrine Switzer.

Apesar de Switzer ter conseguido terminar a prova, muito graças aos esforços do  namorado que imobilizou Semple, o episódio levou a União de Atletas Amadores a banir a participação de mulheres em provas masculinas, sanção que acabaria por ser levantada em 1972.

Chegando aos anos 70, o impacto do movimento é inegável e em breve começa a ter as suas consequências, não só a nível social, como também no sistema legal dos Estados Unidos. A 23 de junho de 1972 é promulgado o chamado ‘Título IX’, lei federal que proíbe a discriminação com base no sexo de qualquer cidadão que queria participar ou ter acesso a qualquer programa ou atividade financiada pelo governo federal.

"Nenhuma pessoa nos Estados Unidos deve, com base no sexo, ser excluída da participação, ter os seus benefícios negados ou ser submetida a discriminação sob qualquer programa educacional ou atividade que receba assistência financeira federal." (‘Título IX’)

Imediatamente depois surge nova vitória para o Movimento de Libertação Feminina quando, a 23 de janeiro o Supremo Tribunal dos Estados Unidos decide que a mulher passa a ter liberdade para decidir por si mesma a continuidade ou não de uma gravidez, caso que ficou mundialmente conhecido como "Roe v Wade", e que constituiu um passo de gigante na luta pela igualdade de género na América.

O nascimento da WTA

Apesar dos muitos e importantes avanços sociais no que à igualdade de género diz respeito, muitos setores da sociedade, como o desporto, continuavam a reger-se por trâmites altamente penalizadores para as mulheres. No caso particular do ténis, a discrepância de tratamento era principalmente notória no que aos prémios de jogo diz respeito.

Desde o nascimento da era 'Open' em 1968, onde tenistas amadores podiam competir com profissionais, a diferença de remuneração era por demais evidente. Nesse mesmo ano, Billie Jean-King e Rod Laver venceram o torneio de Wimbledon nas categorias feminina e masculina. Contudo, a norte-americana recebeu um prémio de 750 libras, enquanto Laver foi premiado com 2000.

Nos anos 70 a diferença foi aumentado de sobremaneira, passando de uma relação de 2,5:1 para 12:1, com vantagem para os homens. O ponto de rotura surgiu em 1970 antes do Open dos Estados Unidos quando Jack Kramer, promotor do torneio, anunciou uma relação de 12:1 de diferença em relação aos valores a receber pelos vencedores feminino e masculino.

"As mulheres estavam a ser financeiramente prejudicadas porque não tínhamos controlo num desporto dominado por homens. Os homens eram os proprietários, gestores e promotores dos torneios e, como muitos deles eram antigos jogadores, a sua preferência recaía sobre os jogadores masculinos, que argumentavam veementemente que a maior parte do dinheiro devia ser deles", pode ler-se no livro "We Have Come a Long Way", escrito por Billie Jean-King e Cynthia Starr.

Esta atitude de Kramer levou nove tenistas a oporem-se à participação no torneio. Em vez disso, as mesmas contactaram Gladys Heldman, editora da 'World Tennis Magazine', anunciando que iriam boicotar o Open dos Estados Unidos e criar o seu próprio torneio em Houston. Graças à sua amizade com o CEO da tabaqueira Phillip Morris, Heldman conseguiu a viabilidade do evento, cujo sucesso levou à criação de um circuito de torneios graças ao patrocínio de 250 mil dólares por parte da tabaqueira; nascia assim o 'Virginia Slims Circuit', composto por 19 torneios, todos disputados nos Estados Unidos, com um 'prize money' total de 309,100 mil dólares.

A Batalha dos Sexos
As 'Original 9': Peaches Bartkowicz, Rosie Casals, Julie Heldman, Billie Jean King, Kristy Pigeon, Nancy Richey, Valerie Ziegenfuss, Judy Tegart Dalton e Kerry Melville Reid

A 'Women's Tennis Association' (WTA) nasceria oficialmente em 1973 numa reunião organizada por Billie Jean-King no Hotel Gloucester em Londres, uma semana antes do torneio de Wimbledon. Desde então a organização tem vindo a crescer de maneira significativa. Hoje o circuito mundial de ténis feminino é constituído por 50 a 60 torneios anualmente espalhados pelo mundo; relativamente aos prémios de jogo, em 2021 foram distribuídos cerca 180 milhões de dólares pelas várias competições.

Billie Jean-King vs Bobby Riggs

É neste contexto que nasce o jogo que ficou conhecido como "A Batalha dos Sexos". Numa altura em que o movimento feminista é cada vez mais influente na sociedade, Billie Jean-King e as restantes tenistas estão determinadas em fazer crescer o seu recém-criado circuito de torneios.

Contudo, e para além da dedicação total ao seu novo projeto, Billie Jean-King começa também a descobrir-se fora dos courts. Em 1972, durante o circuito, a tenista conhece Marylin Barnett, uma cabeleireira que pouco ou nada sabia de ténis, e as duas acabam por se envolver amorosamente.

Tal acontecimento acaba por influenciar negativamente o desempenho de Billie Jean, receosa que a relação chegasse ao público. A tenista acaba por ser derrotada na final do torneio em Newport diante de Margaret Court, tenista australiana e grande rival de Billie Jean-King.

Enquanto crescia o movimento por igualdade de pagamento no ténis, Bobby Riggs, tenista já reformado, surgia como um dos seus principais opositores. Para provar e justificar o seu ponto de vista relativamente à superioridade masculina, Riggs convidou Margaret Court para uma partida, isto já depois de Billie Jean lhe ter rejeitado o convite. Riggs e Court encontrar-se-iam no dia 13 de Maio de 1973, num jogo que ficou conhecido como o 'Massacre do Dia da Mãe', e onde o norte-americano dominou por completo a partida, vencendo com os parciais de 6-2 e 6-1.

A vitória clara deu a Riggs o pretexto que precisava para continuar a lutar contra o movimento de igualdade salarial no ténis. "Eu acho que ficou claro. Tenho 55 anos, estou caminho da cova e a diferença foi como da noite para o dia. E ela é a melhor tenista de todos os tempos!", disse Bobby Riggs após o jogo.

A vitória de Riggs foi de tal forma extrapolada, que o antigo tenista foi capa da prestigiada publicação 'Sports Illustrated' na edição seguinte.

Bobby Riggs, capa da Sports Illustrated
"Nunca apostem contra este homem", diz a capa créditos: Sports Illustrated

Perante a derrota de Court, e vendo o seu movimento perder fulgor, Bille Jean-King acabou por aceitar o desafio de Bobby Riggs para o jogo que ficaria conhecido por "A Batalha dos Sexos", com um prémio total para o vencedor de 100 mil dólares.

"O Bobby estava a perseguir-me há alguns anos, mas ele era um dos meus heróis, por isso tinha muita estima por ele. Mas eu estava ocupada a trabalhar no circuito feminino e já estava sobrecarregada e sem dormir, por isso continuei a recusar. Assim, ele começou a convidar outras jogadoras, e Margaret Court aceitou. Ela disse-me que planeava jogar e ganhar muito dinheiro com isso. Eu disse: "Entendo, Margaret. Mas tu tens que vencer, pelo circuito, pelas mulheres." E eu disse ao meu marido Larry: "Se ela perder, vou ter que jogar contra ele." E ela foi completamente derrotada.", recordou Bille Jean-King em entrevista.

Apesar de ter um calendário extremamente preenchido, Billie Jean-King conseguiu conciliar o circuito profissional com o jogo diante de Bobby Riggs. A tenista americana revelou como se preparou para o jogo e admitiu que este lhe trazia uma pressão acrescida.

"Na mesma semana em que joguei contra o Bobby, tivemos também um torneio do Circuito 'Virginia Slims' em Houston. Perguntei à Gladys: "Tu não vai me dispensar desse jogo?" E ela respondeu: "Não". Então joguei os dois, o que foi difícil. Desde o momento em que soube que ia jogar contra o Bobby, eu visualizei o que ia fazer: pensei em jogar bem, correr atrás de todas as bolas, não me importar se o court estivesse horrível, em suma: adaptar-me. Gosto de dizer que a pressão é um privilégio, e senti exatamente isso", afirmou Billie-Jean.

Depois do que sucedera no jogo com Margaret Court, a tenista norte-americana sabia que o que estava em jogo, ao aceitar o desafio, ultrapassava em larga escala a esfera do ténis e do próprio desporto. Estava consciente das consequências que dali poderiam advir.

"Eu gosto de momentos importantes, de estar no palco do tênis, e sabia que a vitória nos poderia impulsionar muito - e não apenas no ténis. O 'Título IX' havia sido aprovado no ano anterior, em 23 de junho de 1972. Juntamente com o direito de voto das mulheres e a Lei dos Direitos Civis, foi uma das legislações mais importantes do século XX, pois acabou com as quotas nas salas de aula. Universidades não podiam mais ter apenas 5% de mulheres num programa de doutoramento, por exemplo. E pela primeira vez, as mulheres podiam obter bolsas de estudo atléticas. A partida contra Riggs foi um momento para ajudar a justificar essa decisão", acrescentou.

A 20 de setembro de 1973, no Astrodome em Houston, 30,472 pessoas no estádio e cerca de 90 milhões pela televisão, assistiram ao embate entre Billie Jean-King e Bobby Riggs.  Em pouco mais de duas horas, a tenista bateu o auto-apelidado 'Porco chauvinista' com os parciais de 6–4, 6–3, 6–3.

A Batalha dos Sexos

Casos contemporâneos

Apesar de todos os esforços feitos desde há décadas, a verdade é que a discrepância salarial entre homens e mulheres é prática comum no desporto dos dias de hoje. Com efeito, e apesar de todos os esforços de Billie Jean-King e das 'Original 9', ainda existem diferenças bem vincadas nos prémios recebidos por homens e mulheres no ténis profissional.

De tal forma que no passado mês de abril a tenista polaca Iga Swiatek, na altura a número um do ranking WTA, veio a público mostrar o seu descontentamento perante a diferença nos valores recebidos por ela e por Carlos Alcaraz após ambos terem vencido torneios de relevância equivalente (WTA 500 e ATP 500). Após vencer o torneio de Estugarda,recebeu um prémio no valor de 100 mil euros; enquanto isso, Carlos Alcaraz recebeu um cheque no valor de 475 mil euros após ter conquistado o torneio ATP 500 de Barcelona.

Fotos da Semana (de 1 a 8 de abril)
A alegria de Iga Swiatek. (Photo by CHANDAN KHANNA / AFP) créditos: AFP or licensors

"A situação do ténis é melhor do que na maioria dos outros desportos, mas ainda há coisas que afetam a igualdade dos prémios dos torneios WTA em comparação com os da ATP. Os Grand Slams já estão no mesmo nível, isso é bom, mas seria bom que a WTA focasse nessa questão. Mas não quero falar mais porque é algo que envolve muito negócio e às vezes também política. Só posso dizer que seria bom se o nosso desporto fosse regido pela igualdade, especialmente porque fazemos mais ou menos o mesmo trabalho", afirmou a polaca.

Para além do ténis, também o futebol feminino tem sido dos desportos que mais tem lutado pela igualdade salarial entre homens e mulheres, mormente ao nível das seleções nacionais. A principal percursora desta batalha tem sido a seleção nacional dos Estados Unidos, uma das equipas nacionais mais conceituadas do mundo.

No final de 2020, a equipa feminina chegou a acordo com a federação para melhorar as condições de trabalho (viagens, hospedagem, organização) da equipa. Em maio do ano passado a federação norte-americana chegou finalmente a acordo com as associações de jogadores das seleções masculina e feminina para que passasse a haver igualdade salarial entre ambas. Anteriormente aos Estados Unidos, também seleções como a da Austrália (2019), do Brasil (2020), ou da República da Irlanda (2021), e Países Baixos já tinham alcançado o mesmo acordo.

Vida mais difícil teve a seleção feminina do Canadá. Perante a diferença ao nível dos prémios de jogo, a equipa canadiana chegou mesmo a fazer greve aos jogos internacionais, movimento que acabou por durar pouco tempo após, segundo as jogadoras, estas terem sido ameaçadas com ações judiciais. Todavia a equipa feminina acabaria por alcançar o seu objetivo de igualdade salarial em março deste ano.

Apesar dos avanços evidenciados, as equipas nacionais de futebol feminino não se ficaram por aqui. Recentemente a FIFA recebeu uma carta assinada por 150 jogadoras de várias seleções nacionais a reivindicar pagamentos idênticos ao do futebol feminino no próximo Campeonato do Mundo, a decorrer na Austrália e Nova Zelândia.

O caso português

De acordo com dados recolhidos em 2022, a diferença salarial entre homens e mulheres em Portugal tem vindo a descer. Contudo, e no âmbito geral, um homem ganha em média mais 10% que uma mulher, valor que aumenta de sobremaneira se olharmos apenas para o desporto.

Com efeito, e de acordo com os dados recolhidos pelo Gabinete de Estratégia e Planeamento (GEP), um gabinete do Ministério da Segurança Social, a discrepância salarial entre desportistas masculinos e femininos é de 17 porcento, um dos setores com uma diferença mais acentuada.

Diferenças salariais entre homens e mulheres em Portugal
créditos: Imagem: expresso.pt

Portugal tem ainda um longo caminho a percorrer para chegar à paridade salarial. Todavia, recentemente têm sido feitos avanços nesse sentido. Em fevereiro do presente ano, o Sindicato de Jogadores de Futebol criou um Acordo Coletivo de Trabalho, onde, entre outras medidas, propõe a igualdade de salários relativamente à vertente masculina.