20 de Agosto de 2023, Sidney. A seleção espanhola tornava-se pela primeira vez na história campeã do mundo de futebol feminino. Na final, venceu por 1-0 a Inglaterra com um golo de Olga Carmona. Já na 2.ª parte, aos 70 minutos, a Espanha teve a oportunidade perfeita para dilatar a vantagem, mas a guarda-redes britânica Mary Earps travou o penálti de Jennifer Hermoso.

Leu com atenção? Deste parágrafo há dois nomes de jogadoras espanholas e um de uma jogadora inglesa. Contudo, muito provavelmente, só reconhecerá um deles. Porquê? Pelas piores razões.

Foi na cerimónia de entrega das medalhas, já no final da partida, que um episódio fora do comum desencadeou uma polémica que abalou não só a sociedade civil espanhola como todo o mundo, desportivo e não só.

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Jennifer Hermoso, provavelmente o único nome que reconheceu no primeiro parágrafo, foi beijada na boca pelo presidente da Real Federação Espanhola. A título de comparação, seria o mesmo que Fernando Gomes, presidente da FPF, beijar na boca uma jogadora da seleção portuguesa.

O momento foi captado pela câmaras de televisão que cobriam o fim da cerimónia durante a a entrega das medalhas às vencedoras, nunca é demais lembrar, novas campeãs do mundo. E uma vez na televisão, para sempre na internet. Num ápice, o beijo tornou-se viral ao ser partilhado vezes sem conta nas redes sociais, o que motivou um rol de críticas pelo comportamento de Rubiales, com centenas de manifestações urbanas a pedir o afastamento do dirigente.

Reavivada na memória a cronologia desta longa história, ainda longe de chegar ao fim, a enorme cobertura mediática valeu, para já, o afastamento absoluto de Luis Rubiales do mundo do futebol durante os próximos três anos. O caso judicial ainda decorre em Espanha.

O comunicado e o contra comunicado

Ainda nem um dia tinha passado desde o momento do beijo de Rubiales a Jennifer Hermoso, já a Real Federação Espanhola se apressava a emitir um comunicado, no qual citava a própria jogadora. Segundo o documento, Jennifer teria desvalorizado a situação. “Foi um gesto mútuo totalmente espontâneo devido à imensa alegria de ganhar um Campeonato do Mundo. O presidente e eu temos uma ótima relação, o comportamento em relação a todas nós tem sido excelente e foi um gesto natural de afeto e gratidão. Ganhámos um Mundial e não nos desviar do que é importante”, teria supostamente dito a avançada de 33 anos em declarações divulgadas pela RFEF à agência EFE. Pretendia a instituição apaziguar um clima de críticas constantes ao presidente da Federação, o que não se concretizou.

De resto, de acordo com o jornal espanhol 'Relevo', as declarações de Jenni Hermoso, em que a jogadora desvalorizava o beijo dado por Luis Rubiales, foram falsificadas e divulgadas pelo departamento de comunicação da Real Federação Espanhola de Futebol, sem nunca terem sido proferidas pela avançada. Uma teoria confirmada mais tarde pela jogadora, através de um outro comunicado da sua exclusiva responsabilidade, já em resposta às declarações de Luis Rubiales, que defendia a ideia do beijo ter tido o consentimento de Jenny.

"Quero esclarecer que em nenhum momento consenti o beijo que Rubiales me deu", disse a jogadora em comunicado divulgado pelo sindicato 'FutPro'. "Não tolero que a minha palavra seja questionada e muito menos que se inventem palavras que eu não tenha dito”, continuou Hermoso, desmentindo de forma categórica a versão do presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, que mantinha a versão de um beijo “espontâneo, mútuo, eufórico e consentido".

No mesmo documento, dezenas de jogadoras espanholas anunciaram que não regressariam à seleção enquanto Luis Rubiales se mantivesse como presidente da federação.

A queixa formalizada de Jennifer Hermoso, a entrada do Ministério Público e a demissão de Rubiales

Com o passar dos dias, a tábua de salvação de Rubiales era cada vez mais uma miragem. Incentivada pelo Ministério Público Espanhol, que só poderia avançar mediante uma queixa formalizada por Hermoso, a jogadora espanhola formalizou, junto da instituição, o passo legal que faltava para que o processo contra o agora antigo presidente da federação espanhola avançasse. Como o acontecimento se deu fora de Espanha, era necessário que a vítima formalizasse uma queixa para que o Ministério Público avançasse com a queixa. Jenni formalizou e deu carta branca à instauração de um processo judicial.

Antes, 16 dias depois de vencer o Mundial, o selecionador Jorge Vilda acabou por ser despedido, considerando a sua saída do cargo como “injusta e inesperada". O técnico tinha sido apanhado num vídeo a aplaudir o discurso de Rubiales, no qual o antigo dirigente desmerecia e ridicularizava as acusações que lhe eram dirigidas. Por esta altura, a mãe de Rubiales fazia uma greve de fome, após fechar-se numa igreja durante dias em defesa do do filho.

Certo é que já depois da suspensão preventiva lançada pela FIFA de 90 dias de suspensão à data, Rubiales anunciou que sairia do cargo de presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, mas com uma ressalva. "Tenho fé na verdade e farei tudo o que estiver ao meu alcance para que ela prevaleça", disse o ex-dirigente espanhol num comunicado divulgado às redações.

Desporto e Justiça: as diferentes velocidades

Se na justiça espanhola o caso promete prolongar-se no tempo, no desporto a condenação efetiva a Rubiales pelo sucedido não se fez esperar. No final de Outubro, cerca de dois meses após o sucedido, a FIFA suspendeu o antigo presidente por três anos.

Em comunicado, o organismo que tutela o futebol mundial disse reiterar o seu compromisso absoluto de respeitar e proteger a integridade de todas as pessoas, e de zelar pelo respeito das normas básicas de conduta. Como tal, ditava o afastamento obrigatório de Luis Rubiales a todas as atividades ligadas ao futebol, em clubes ou seleções. Apesar do expectável longo processo judicial, os tempos do desporto são outros.

Do lado desportivo, depois de ameaçarem não regressar à seleção, a maioria das jogadores participou logo na primeira convocatória da nova selecionadora, Montse Tomé, embora Jennifer tenha regressado à La Roja" apenas no final de Outubro, numa segunda convocatória.

Foi o regresso tão esperado da melhor marcadora de sempre da formação espanhola, com 52 golos em 102 internacionalizações, e não podia ter corrido melhor. Logo no seu primeiro jogo após a polémica no Mundial, a avançada do Pachuca, do México, marcou frente à Itália, depois de entrar aos 67 minutos, garantindo desta forma a vitória da seleção espanhola.

Relativamente ao processo nos tribunais, Rubiales está a ser investigado por "crimes de agressão sexual e coerção", como já foi referido no processo movido pelo Ministério Público espanhol. Segundo a Audiência Nacional, a primeira audição da futebolista Jenni Hermoso está marcada para o dia 2 de janeiro.

O Histórico comprometedor de Rubiales

Da mais recente para a mais antiga, foram várias as vozes que levantaram com testemunhos contra o a antigo dirigente espanhol, que era também vice-presidente da UEFA.

Há dias, também a federação inglesa acusou Rubiales de tocar nas suas jogadoras após o jogo da final. A presidente da Federação Inglesa de Futebol terá acrescentado que "se sentiu profundamente desconfortável e embaraçada" pela forma como Rubiales cumprimentou as jogadoras espanholas, o que incluiu uma palmada nas nádegas de uma delas.

Os presidentes das duas federações finalistas encontravam-se lado a lado durante a cerimónia de entrega de medalhas no final do jogo, que decorreu em agosto, e durante a avaliação do processo contra Rubiales, Debbie Hewitt fez várias alegações sobre a forma como o espanhol "tocou e acarinhou o rosto da jogadora inglesa Laura Coombs e, em seguida, aparentemente beijou com força o rosto da jogadora inglesa Lucy Bronze".

No mesmo dia, minutos antes da polémica em torno do beijo a Jenny, Rubiales foi visto a tocar-se nos nos genitais, em plena tribuna, a curta distância de figuras da Coroa espanhola, como a rainha Letizia e a infanta Sofia, e do Presidente da FIFA, Gianni Infantino.

Para atrás, ficam suspeitas de corrupção de Rubiales num esquema da Real Federação Espanhola, a que também esteve associado Gerard Piqué. Em causa, um alegado favorecimento pago ao antigo jogador, que terá recebido dinheiro pelo facto de ajudar a garantir a mudança de formato da Supertaça e de Espanha para a Arábia Saudita.

O 'El Mundo', que teve acesso às mensagens trocadas entre o então presidente da federação espanhola e dirigentes do Barcelona, revela que Rubiales idealizou um plano para que Piqué recebesse uma comissão de 24 milhões de euros, sem que os clubes envolvidos na competição soubessem do acordo.

A Espanha foi campeã do mundo. Alguém se lembra?

Sem nunca questionar o mediatismo do episódio, que seguramente mereceu e continuará a merecer a reflexão de todos, pena que tenha caído no esquecimento o enorme feito de, pela primeira vez na história, a seleção feminina espanhola ter conquistado o Mundial de Futebol. E Jenni Hermoso, importa lembrar, foi considerada pela crítica uma das melhores jogadoras do torneio. Sabia? É provável que não.